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12 de março de 2025A 3ª Turma do STJ indeferiu pedido de desistência de recurso especial formulado pelo próprio recorrente, ao argumento de que a demanda cuidava de tema inédito, nunca enfrentado no Superior Tribunal de Justiça, seria apta a formar um leading case, e, logo, com forte interesse público.
Com isso, apesar da expressa dicção do caput do artigo 998 do CPC, segundo o qual “o recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”, o STJ denegou requerimento nesse sentido formulado antes do julgamento, destacando, ademais, que a parte recorrente não pode adotar estratagemas, entre as quais desistir do seu recurso, para evitar a formação da jurisprudência.
Vale dizer que esse entendimento criou uma “nova situação de excepcionalidade”, além daquela prevista no parágrafo único do artigo 998 do CPC: “a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”.
Daí a necessária — e respeitosa — reflexão que se deve fazer a respeito dessa recente construção jurisprudencial do STJ fora da exceção prevista em lei (parágrafo único, artigo 998) e cuja aplicação poderá ser reproduzida por todos os tribunais do país, no sentido de obstar o direito potestativo da parte recorrente de desistir de seu recurso, ao argumento de que a questão de fundo teria certo interesse público. É que, deveras, essa faculdade prevista no caput do artigo 998 do CPC está fundada no princípio da inércia da Jurisdição, no sentido de que o processo se desenvolve apenas por iniciativa da parte (artigo 2º, CPC), salvo, frisamos, as específicas exceções da lei.
Cuida-se de regramento caro ao sistema jurídico, pois guarda suas raízes no direito constitucional, segundo o qual a prestação da tutela jurisdicional depende do pedido da parte interessada (artigo 5º, XXXIV e XXXV, CF); como também da observância do devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV, CF), que reserva à parte-recorrente o direito de dispor do bem da vida tutelado, abdicando do apelo interposto, seu exclusivo critério, sem condição nem termo, a despeito da anuência da outra parte, inclusive oralmente na própria sessão de julgamento; e, por conseguinte, conformar-se com a coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, CF).
Por outro lado, apesar de a jurisprudência ser considerada, atualmente, típica fonte de direito (artigo 927, CPC), para sua produção o Judiciário precisa ser legitimamente provocado, sob pena de violação da sua missão constitucional, à luz do princípio da separação dos poderes (artigo 2º, CF). Sempre com o devido respeito às opiniões em contrário, não me parece salutar essa enorme flexibilização do princípio constitucional da inércia da Jurisdição (estampado no artigo 998 do CPC), para obrigar que a parte, contra sua própria vontade, e sem expressa previsão legal, seja surpreendentemente sentenciada, submetendo-se a uma outra coisa julgada, diversa da qual se conformou em razão de íntimos e múltiplos motivos.
É o litigante quem decide, pela provocação, a sorte da sua causa e, conquanto a res in iudicium deducta possa ter algum relevo extraordinário transcendente aos seus interesses particulares (v.g., discussão sobre juízo de legalidade ou a interpretação de uma importante norma federal), esse direito, salvo previsão legal, não pode ser restringido, nem considerado “estratagema” (punível, se o caso, com pena por prática litigância de má-fé, pelo desrespeito à Corte consistente no aviso tardio da desistência, e não com o julgamento compulsório da causa), consoante o próprio STJ, em valioso precedente, obtemperou:
O julgamento, de ofício, de recurso do qual a parte desistiu expressamente e a tempo resulta na criação, sem previsão legal, de uma nova espécie de remessa necessária. Até mesmo na hipótese em que há notório interesse público envolvido, como no julgamento de causas repetitivas, a lei processual admite a possibilidade de desistência do recurso (§ único, do art. 998, do CPC). A reprimenda para a eventual prática de litigância de má-fé pelo sujeito processual jamais pode consistir no julgamento do recurso do qual desistiu, ante a previsão expressa do art. 81 do CPC.
Não obstante, o fato é que a jurisprudência dos tribunais superiores avança para relativizar o direito do postulante, em certas circunstâncias, de abdicar do julgamento do recurso especial ou extraordinário e, com isso, evitar a apreciação de temas relevantes postos na causa. Tal entendimento é consectário da chamada “função nomofilácica“ dos tribunais superiores de ditar, objetivamente (com efeitos erga omnes) e com força vinculante, nos moldes dos sistemas jurídicos da common law, a interpretação uniforme do direito federal e da Constituição no âmbito nacional.
Não por outro motivo o STF decidiu que, mesmo nas hipóteses em que RE perde o objeto, é possível passar ao exame do apelo extremo prejudicado apenas “em tese”, quando se tratar de “questão de grande relevo” (v. ARE 1.054.490 QO RJ), apreciando, daí, a repercussão geral — e, depois, seu próprio mérito que, neste caso, pensamos, não será passível de se tutelar o caso concreto, isto é, não fará coisa julgada entre as partes, em razão da própria impossibilidade jurídica resultante da perda do objeto do recurso.
Nessa linha, lembramos que alguns ordenamentos estrangeiros costumam adotar tal solução intermediária, prevista em lei, para permitir o julgamento pelos tribunais superiores (Cortes de Cassação) de casos jurídicos importantes (leading cases), com vistas à formação de jurisprudência orientativa sobre o tema, a despeito da vontade dos litigantes.
Na Espanha, há previsão do chamado “recurso de cassação no interesse da lei“, de titularidade do Ministério Público, interposto só com o propósito de formar precedente sobre o caso de interesse público, mas deixando intacto o teor do acórdão recorrido no tocante aos seus efeitos inter-partes (dada a ausência de interposição de recurso de cassação de um dos litigantes). Nesta situação, o julgado formado a partir da provocação do recurso no interesse da lei possuirá um efeito prospectivo, sem efeito de coisa julgada, ou seja, valerá apenas como norma reguladora de circunstâncias similares para o futuro (= efeitos ex nunc).
De igual forma, no Código de Processo Civil italiano, por meio da aplicação do seu artigo 363, é possível fazer uso da “enunciação de um princípio de direito” (principio di diritto nel’interesse della legge), a fim de que, nas hipóteses nas quais a parte não tiver interposto recurso de cassação, possa o procurador-geral apresentar um fundamentado requerimento à Corte ad quem, a fim de que esta enuncie o princípio de direito que, no interesse da lei, entende correto com relação ao tema julgado em segundo grau.
O dispositivo em questão (artigo 363), editado em 2006 para substituir o antigo ricorso nell’interesse della legge (então similar ao do sistema espanhol), permite também que a Corte de Cassação enuncie (ex officio) o preceito de direito que entende correto aplicar ao caso sub iudice se o recurso de cassação interposto por qualquer das partes for declarado inadmissível, desde que a questão de direito apreciada seja de “particular importância”.
A característica marcante deste instituto processual é que este julgamento da Corte de Cassação (tanto a pedido do procurador, como ex officio) igualmente servirá de guia jurisprudencial (precedente forte ou leading case), não afetando o caso julgado em si, cuja solução continuará a ser ditada pelo acórdão de segundo grau, mesmo que este esteja juridicamente equivocado (inclusive para respeitar a coisa julgada e o princípio da inércia jurisdicional).
São, portanto, representações existentes no direito comparado da importância da função “nomofilácica” atribuída às Cortes de Cassação, e, também, aos tribunais constitucionais, cujas decisões devem guiar uniformemente os tribunais subalternos, excepcionando, com isso, o princípio da inércia jurisdicional, comum a todos os sistemas jurídicos dos países civilizados.
Portanto, de lege ferenda, talvez fosse salutar a alteração da atual redação do artigo 998 do CPC para disciplinar, no sistema processual brasileiro, os recursos no interesse da lei, por provocação do Ministério Público, ou a possibilidade de os tribunais superiores decidirem ex officio (enunciarem interpretações legais), em dadas circunstâncias (relevante interesse social, público ou econômico do objeto da causa), a despeito da postura do recorrente (e de eventual pedido de desistência do recurso especial) — ampliando, com isso, e por iniciativa do Legislativo, a permissão já prevista no parágrafo único do artigo 988 do CPC, única forma de, legalmente, suplantar a desistência manifestada pelo recorrente.
O precedente formado a partir daí (leading case), contra a vontade da parte que abdicou do recurso, teria efeitos futuros, isto é, válidos a partir da publicação do julgamento, sem aplicação ao caso concreto (pura prospecção de efeitos), além, é claro, do efeito vinculante imediato em relação aos juízos e tribunais nacionais de grau inferior, resultado do reconhecimento da grande expressão jurídica do processo.
São, portanto, estas as nossas singelas ponderações a respeito deste tema interessante de direito jurisprudencial que trazemos à reflexão, com vistas à sistematização dos limites legais impostos ao Judiciário quanto ao requerimento de desistência do recurso formulado pelo recorrente, à luz da atual redação do artigo 998 do CPC.
Fonte: Conjur