Já convencido que o governo Barack Obama não tem condições de mudar no Congresso dos Estados Unidos os subsídios ao algodão, considerados ilegais pela Organização Mundial do Comércio (OMC), o governo brasileiro fortaleceu, nesta semana, as credenciais do Brasil para negociar compensações financeiras ou comerciais aos produtores e à economia brasileira. Medida provisória publicada ontem no “Diário Oficial” prevê um leque de direitos de propriedade intelectual, que poderão ser ignorados pelo Brasil, em retaliação aos subsídios ilegais.
A medida, que ainda terá de ser regulamentada pelos ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex), o que poderá acontecer na próxima reunião em março, não trata especificamente dos EUA ou do caso de algodão. Ela cria as condições legais para que o Brasil adote a chamada “retaliação cruzada”, atingindo interesses de empresas estrangeiras no campo dos direitos de marcas, patentes e similares sempre que quiser punir países que, como os EUA, desrespeitarem as regras da OMC.
O governo, na semana passada, definiu uma lista de 222 produtos americanos que poderão sofrer retaliações comerciais, com aumento de tarifas para entrada no país. Entre os produtos, estão medicamentos de laboratórios dos EUA, mas o governo teve o cuidado de evitar colocar na lista bens de capital, insumos importantes para a indústria e produtos sem similares disponíveis no Brasil. Com o arsenal de retaliações, os diplomatas brasileiros devem se reunir em março com enviados do governo dos EUA para negociar formas de compensação ao Brasil.
“O Brasil tem um caso na OMC que dura sete anos contra os subsídios ao algodão nos EUA. Quando ganhamos na primeira instância, jornais americanos disseram: ‘sabíamos que subsídios eram imorais, hoje sabemos que são ilegais'”, lembrou o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, ao comentar a MP, ontem. “O que o Brasil está fazendo é dando todos os passos internos para poder aplicar essas retaliações”, explicou. “Mantemos a esperança de que, daqui até o momento da aplicação das retaliações, surja uma proposta que nos convença que há outra saída.”
Na semana passada, o embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, com uma franqueza pouco usual na diplomacia, alertou que “retaliações sempre levam a contrarretaliações”. Assessores do diplomata minimizaram, depois, a declaração, argumentando que Shannon falava apenas “em tese”. Amorim não quis transformar o episódio em fonte de atrito. Ao Valor, disse não ter ouvido Shannon fazer a declaração, e, quando ouviu um pedido para ouvir a gravação da entrevista, respondeu que preferia não escutá-la.
“Se tivesse ouvido diria que é absurda”, comentou ontem, ao lhe perguntarem novamente sobre a ameaça de contrarretaliações. “Não faz sentido, porque a retaliação é uma ação autorizada pela OMC”, comentou. “Não preferimos a via do contencioso, mas não podemos nos curvar só porque um país é mais forte”, disse o ministro, lembrando que “a lei internacional se aplica a todos os países, pequenos ou grandes”, disse o ministro. “A ideia é não retaliar, mas precisamos uma proposta política específica.”
“Os EUA obrigam o Brasil a retaliar. Já deveriam ter alterado o subsídio ao algodão como os europeus alteraram o do açúcar, há muito tempo”, comentou o especialista Pedro Camargo Neto, um dos principais impulsionadores do processo contra os EUA na OMC. Ele criticou o governo pela demora em baixar a MP editada ontem. “Falta uma estratégia de divulgação em Washington”, disse. “O Brasil precisa explicar à opinião pública americana o que está acontecendo.”
Se acionada a retaliação cruzada (punição em direitos de propriedade intelectual em represália à ilegalidade no terreno comercial), a medida que tem mais apelo, para os técnicos, é a chamada “importação paralela”, pela qual o Brasil poderia importar medicamentos ou outros produtos sem necessidade de levar em conta patentes ou outras restrições do acordo de propriedade intelectual. Essa medida tem a vantagem de poder ser cancelada imediatamente, tão logo os EUA cumpram suas obrigações internacionais.
A MP editada ontem tem um elenco extenso de medidas nesse campo, porém. Ela autoriza o Brasil a suspender remessa de royalties ou remuneração de licenças (o que poderia afetar até os pagamentos de direitos por filmes, por exemplo). Um artigo permite ao governo retardar a aprovação de pedidos de licenciamento ou garantia de direitos de propriedade intelectual, encurtando a validade de patentes, por exemplo. Permite licenciamento para uso não comercial, sem autorização do titular dos direitos, e suspensão de direitos por tempo indeterminado. O alcance da medida também é amplo: atinge desde direitos de autor e conexos a indicações geográficas e desenhos de circuitos integrados.