A decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, que trata da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, não vai apenas vincular todo o Judiciário e a administração pública. Também pode sinalizar aos parlamentares, que vão analisar a reforma do Código Penal, até que ponto podem alterar a legislação sobre o aborto. O texto da reforma elaborado por uma comissão de juristas prevê a ampliação das hipóteses legais de interrupção da gravidez. O julgamento no STF começa às 9h, nesta quarta-feira (11/4).
Hoje, o Judiciário se depara com pedidos de interrupção de diferentes maneiras. Há gestantes que entram com pedidos de Habeas Corpus para obter autorização para interromper a gestação de fetos que, por má-formação congênita, não apresentam o fechamento do tubo neural. Pedem que, ao obter a ordem, não sejam enquadradas no artigo 124 do Código Penal, que prevê pena de um a três anos de detenção.
Os juízes que não concedem o HC se baseiam na falta de previsão legal para esse tipo de procedimento. Portanto, entendem não caber ao Judiciário ampliar as hipóteses de aborto. Já os que concedem a ordem tomam por base os princípios constitucionais, como da dignidade humana. Para esses, impedir que uma gestante de feto anecéfalo interrompa a gestação equivale a submetê-la à tortura.
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e integrante da comissão de reforma do Código Penal, José Muiños Piñeiro Filho avalia que se o Supremo permitir a interrupção da gravidez em caso de anencefalia, a proposta de modificação da lei ganha força no Congresso, a depender dos fundamentos da decisão.
De acordo com a proposta, o artigo 128 do Código Penal, que hoje isenta de punição o aborto praticado para salvar a vida da gestante e em gravidez decorrente de estupro, passa a ter a seguinte redação: “Não há crime se: I – houver risco à vida ou à saúde da gestante; II – a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; III – comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”. Além desses itens, a comissão incluiu outro que, caso seja aprovado, promete gerar polêmica. De acordo com o inciso IV da proposta, deixa de ser punível o aborto praticado “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade”.
Jurisprudência em formação
O próprio desembargador Muiños foi relator de um Habeas Corpus, julgado no início de março, cujo acórdão aborda vários aspectos jurídicos da questão, passando pela história da legislação quanto ao aborto, pelas leis de outros países sobre o tema e mesmo por uma análise dos oito pedidos feitos nos últimos dez anos no TJ fluminense.
No acórdão, o relator lista os projetos de lei que já tramitaram no Congresso sobre o tema. Um deles ficou mais de 17 anos em trâmite até ser rejeitado e arquivado em 2008. “Sendo ainda inexistente legislação específica sobre o tema, ao Judiciário é dada a árdua tarefa de decidir a questão, socorrendo-se da análise dos julgados até agora produzidos nos diversos tribunais do país”, disse no voto.
Ainda de acordo com o desembargador, “a jurisprudência nos tribunais superiores é escassa, pois os casos que lá chegaram restaram, em sua maioria, prejudicados, pela perda de objeto”.
No voto, o desembargador analisa as duas hipóteses — risco para a mãe e gravidez decorrente de estupro — em que o legislador isentou de crime quem pratica o aborto. “Em ambos os casos, na ponderação de interesses entre o direito à vida do feto e o direito à integridade física e psíquica da gestante, este prevaleceu sobre aquele, revelando-se, assim, a tendência adotada pelo legislador”, disse.
No caso do estupro, argumenta, “se é permitido sacrificar a vida de um feto, até mesmo saudável — já que a lei sequer perquire a respeito de sua viabilidade — em favor do bem-estar físico e psíquico da mãe, não haveria qualquer motivo para que se lhe negasse a autorização para a interrupção da gestação, se o feto não tem possibilidade de sobreviver fora do útero e se a gestante, por este motivo, está sendo submetida a intenso sofrimento”.
Outro dado sobre a discussão do tema nos tribunais apresentado por Muiños foi o levantamento feito no TJ do Rio sobre os casos de interrupção da gravidez. Sete dos oito pedidos apresentados à segunda instância entre 2003 e 2011, foram feitos pela Defensoria Pública do estado. Para o desembargador, além da questão jurídica, há um problema de saúde pública. “Recorre ao Judiciário quem não possui condições financeiras de realizar o procedimento, ainda que de forma clandestina, dentro de condições adequadas de assepsia”, diz no voto.
Dos casos listados na corte, três diziam respeito a fetos anencéfalos. Os outros se referiam a outras malformações congênitas. “A 5ª Câmara Criminal, em caso de fetos xifópagos [quando os gêmeos são unidos pelo tórax e abdômen], em que se concedeu a ordem, por unanimidade; a 3ª Câmara Criminal, em caso de malformação cardíaca com lesão no cerebelo irreversível, por maioria, pela concessão da ordem; a 6ª Câmara Criminal, com a denegação da ordem, em casos de Síndrome de Patau (trissomia do cromossomo 13) e holoprosencefalia; e, novamente, a 2ª Câmara Criminal, denegando a ordem à unanimidade de votos, em caso de malformação congênita, em que não havia prova suficiente acerca da inviabilidade da vida”, resumiu o relator.
Em um dos casos citados pelo acórdão, o TJ do Rio autorizou a interrupção da gravidez de um feto com Síndrome de Edwards. “A Síndrome de Edwards, considerada um acidente genético que não incrementa substancialmente o risco de recorrência, tem caráter irreversível e decorre de uma triplicata de genes localizados no cromossomo. Em consequência deste excesso de material genético, há uma desestruturação do processo de desenvolvimento humano acarretando graves malformações cardíacas, lesões no sistema nervoso central, especialmente no cerebelo e na coluna vertebral — espinha bífica — entre diversas outras morbidades. A maioria dos casos evolui para o aborto espontâneo. A sobrevida média dos bebês nascidos com trissomia do 18 é de 4 dias; cerca de 97% desses bebês morrem nos primeiros 6 meses de vida. Aqueles que sobrevivem além deste prazo apresentam retardo mental profundo, com dependência física e social permanente, além de convulsões. Finalmente, a síndrome de Edwards aumenta o risco de complicações maternas, como a pré-eclâmpsia”, afirmou a relatora do Habeas Corpus, desembargadora Suimei Cavalieri, citando laudo do Instituto Fernandes Figueira.
Por maioria, a 3ª Câmara Criminal do TJ do Rio concedeu a ordem para permitir a interrupção. “Na espécie, é induvidoso que o desenvolvimento do processo gestacional, quando os sofisticados avanços tecnológicos no campo da biomedicina possibilitaram o diagnóstico precoce e seguro de patologia grave e incurável do feto, impõe à grávida situação degradante e desumana, atentando contra sua dignidade”, afirmou a desembargadora.
ADPF
No pedido feito ao Supremo, através da ADPF, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), representada pelo constitucionalista Luís Roberto Barroso, explica em termos médicos o que é a anencefalia. Insiste que o Código Penal de 1940 não previu a hipótese de excludente de criminalidade no caso de interrupção da gravidez de feto anencéfalo porque naquela época os procedimentos médicos não haviam evoluído a ponto de detectar anomalias genéticas.
Barroso sustenta que a discussão acerca da interrupção da gravidez de feto anencéfalo é diferente da que envolve um feto viável. Neste último caso, há a “ponderação de bens supostamente em tensão: de um lado, a potencialidade de vida do nascituro e, de outro, a liberdade e autonomia individuais da gestante”. Já no caso de feto anencéfalo, continua, “há certeza científica de que o feto não tem potencialidade de vida extra-uterina”. Diante disso, argumenta o advogado, o foco deve estar na gestante.
A CNTS classifica a situação da gestante como equivalente a alguém submetida à tortura. “A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro do seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica”, diz.
A ação teve início em junho de 2004. Em julho, o relator do caso, ministro Marco Aurélio, decidiu sobrestar os processos que ainda não haviam transitado em julgado, mas reconheceu o direito da gestante a se submeter à cirurgia desde que haja laudo médico atestando a anencefalia.
Antes mesmo de entrar no mérito da discussão, os ministros do Supremo já se depararam com aspectos técnicos polêmicos, entre eles a concessão da liminar. Uma questão de ordem, que pretendia discutir o cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para o tema, fez com que os ministros passassem a debater a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio em reconhecer o direito da gestante à interrupção da gravidez.
“Como o feto é pessoa e a mãe não corre perigo, a liminar acaba afrontando a dignidade do ser que o feto é”, afirmou o hoje aposentado ministro Eros Grau. Para ele, a liminar estava “autorizando uma terceira modalidade de aborto não prevista na Constituição”. Votaram no sentido de negar a liminar os ministros já aposentados Ellen Gracie, Carlos Velloso e Nelson Jobim.
Posições conhecidas
Dos que continuam a compor a corte, também negaram a liminar os ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes. “A vida intra-uterina, ainda quando concebível como projeto de vida, é objeto de tutela jurídico-normativa por várias formas”, afirmou o ministro Peluso na ocasião. “A história da criminalização do aborto mostra que essa tutela se fundamenta na necessidade de preservar a dignidade dessa vida intra-uterina, independentemente das eventuais deformidades que o feto possa apresentar, como tem apresentado no curso da história”, completou.
Peluso também fez várias considerações acerca dos argumentos levados pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, entre elas a da dignidade da gestante. “O sistema jurídico repudia, em relação ao sofrimento, apenas os atos injustos que o causem. O sofrimento provindo de um ato antijurídico, esse não pode ser admitido pela ordem normativa. Mas não é esse o caso de eventual sofrimento materno, ou pelo menos não o é de regra”, disse.
Já Joaquim Barbosa fundamentou seu voto com base em uma questão técnica: se uma questão de ordem e um pedido de vista suspenderam o julgamento para se analisar se cabia a ADPF, não havia sentido em conceder a liminar. “Só se poderá falar em cautelar quando plenamente assegurado, em decisão plenária dessa corte, que o tribunal irá se pronunciar sobre o mérito da matéria posta”, disse na ocasião. O ministro afirmou, ainda, que estava convencido da admissibilidade da ação. “Indefiro a liminar, neste momento, assinalando, no entanto, que não hesitaria em concedê-la no momento processual seguinte, caso este se apresente”, completou.
O ministro Gilmar Mendes também negou a liminar pela questão técnica e não comentou qualquer aspecto do mérito da discussão.
Também na ocasião do julgamento da liminar, o ministro Carlos Ayres Britto, disse que teve suas convicções abaladas depois de ouvir o procurador-geral da República Cláudio Fonteles — contrário à admissibilidade da ação. “Quando as leis penais naturalmente criminalizam o aborto, elas o fazem no pressuposto da interrupção de uma vida em gestação, ou seja, o que se procura impedir é que, pelo aborto, se interrompa um destino, se inviabilize uma trajetória mundana, se impeça alguém de ter um destino próprio extra-uterino — não pode ser diferente”, disse. Depois de externar suas reflexões sobre o tema, Britto endossou a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio.
De agosto de 2004, quando se travaram as discussões sobre o tema, até o julgamento do mérito, a composição da Suprema Corte mudou, com a entrada de cinco novos ministros: Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber.
Contra o aborto
Pelo menos duas entidades, apesar de não aceitas como amici curiae na ADPF, entregaram nesta terça memoriais aos ministros protestando contra a liberação do aborto de anencéfalo. A União dos Juristas Católicos de São Paulo e a União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro contaram com o apoio de celebridades do Direito, como os advogados e professores Célio de Oliveira Borja, Ives Gandra da Silva Martins, Nelson Nery Júnior e Paulo de Barros Carvalho — alguns, diretores dessas entidades.
Para eles, a ação visa a criar uma terceira hipótese de impunidade ao aborto, não prevista no Código Penal — o aborto por má formação fetal — o que não seria possível ao Judiciário fazer. “Ora, se nem nas omissões inconstitucionais do Parlamento pode a Suprema Corte legislar, com muito maior razão, não poderá legislar em hipótese em que o Congresso não legisla porque todas as dezenas de projetos de leis que cuidam do aborto não conseguiram passar pelas comissões parlamentares (…); a grande maioria do povo brasileiro é contrária à legalização do homicídio uteino; e não pertence à cultura do povo brasileiro provocar a morte de alguém pelo fato de não haver tratamento curativo para uma doença”.
As entidades também contestam que a anencefalia causa morte certa. Citando laudos médicos internacionais, elas defendem que a criança com anencefalia pode respirar espontaneamente, já que a insuficiência no fechamento da porção anterior do tubo neural implica “em perda de uma expressiva parte do encéfalo, restando uma outra parte”. E mencionam o caso de uma menina brasileira que, com a doença diagnosticada e acompanhada por médicos, vive há mais de dois anos.
O perigo de liberar o aborto nesses casos, dizem os advogados, é “a dificuldade de uma precisa definição diagnóstica, principalmente em casos de formas mais atenuadas da Anencefalia, com menor comprometimento cerebral”. Na opinião deles, a adição obrigatória de ácido fólico às farinhas vendidas no país, determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária em 2004, pode reduzir os casos da doença. “Para esclarecer este ponto, é necessário investigar cientificamente o que vai ocorrer nestes próximos anos e esta é uma razão adicional para não acolher a tese da ADPF 54”, dizem.
“Colide com o ideal da dignidade humana matar-se o nascituro a pretexto de proporcionar o conforto psicológico da mãe”, asseveram as entidades católicas. Para elas, tanto a Constituição quanto o Código Civil garantem a proteção do Estado ao direito à vida não só dos nascidos, mas também dos nascituros.