O furto de um chinelo de R$ 16 chamou a atenção do Brasil inteiro na semana passada ao se tornar pauta de discussão para os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – acostumados a julgar processos envolvendo planos econômicos, regras tributárias, crimes de colarinho branco e a constitucionalidade de leis que atingem milhares de pessoas. Mas o caso do mineiro – que foi condenado a um ano de prisão e 10 dias-multa pela Justiça estadual – não é o único processo inexpressivo a abarrotar a mais alta corte do Judiciário brasileiro. No cotidiano dos magistrados, eles já se
debruçaram – e ainda se debruçam – em assuntos como o furto de fraldas e colchões, galinhas, bijuterias, roupas no varal, copos e até de um pote de manteiga, vendido em São Paulo, em 2005, por R$ 3,10. Em relação a chinelos não há só um caso para ser analisado. Existe uma fila de 11 processos aguardando julgamento.
De que maneira esses casos, conhecidos como de “pequeno potencial ofensivo”, conseguem chegar ao Supremo, ninguém sabe explicar. Nem mesmo o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) tem uma resposta à indagação: “Nem um marciano saberia explicar”, diz João Ricardo Costa, que é juiz no Rio Grande do Sul. Brincadeiras à parte, ele argumenta que o grande problema é a legislação brasileira, que permite uma série de recursos e não traz nenhuma vedação ao julgamento desse tipo de ação por um tribunal superior – além do STF, há o Superior Tribunal de Justiça (STJ). “O sistema não veda que esses casos subam para os tribunais superiores. E qual advogado não vai fazer tudo que é possível por seu cliente?”, afirma.
Na grande maioria, os processos se referem a recursos para reformar decisões da Justiça estadual ou do STJ que não tenham agradado aos advogados dos acusados ou ao Ministério Público – que é sempre o autor da ação. A justificativa é a mesma: pedem a aplicação do princípio da insignificância ou da bagatela. A teoria é adotada sempre que se considera que o ato praticado não é um crime relevante – o que significa a absolvição do réu, e não apenas a diminuição ou substituição da pena. Para aplicar a regra, o magistrado tem que verificar o grau da ofensividade da conduta, periculosidade social da ação, reprovação do comportamento e a lesão jurídica provocada. Como a decisão parte do livre convencimento do juiz, há sentenças tão diferentes entre os magistrados.
Padrão
Essa, aliás, é a alegação de quem defende a existência de tantos recursos no direito – especialmente os advogados. Uma redução nas possibilidades de revisão das decisões é vista como limitação ao direito de defesa e do contraditório. “Estamos fora dos padrões internacionais de recursos”, rebate João Ricardo Costa. Para ele, os crimes de bagatela não deveriam passar da segunda instância do Judiciário, ou seja, os tribunais de Justiça. Uma boa alternativa para resolver a questão do excesso de recursos, na sua avaliação, é aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 15, em tramitação no Senado. O texto prevê o fim dos recursos especial e extraordinário – apresentados no STJ e STF, respectivamente. A proposta é que eles sejam substituídos por ações rescisórias para modificar a sentença, mas sem efeito suspensivo.
E quanto ao caso do mineiro ladrão de chinelos? No dia 1º, o relator da ação no STF, Luís Roberto Barroso, concedeu uma liminar para a aplicar o princípio da insignificância, suspendendo aplicação da pena imposta pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Como ele é reincidente, foi condenado a um ano de prisão em regime semiaberto, no qual ele pode trabalhar durante o dia e dormir na prisão à noite. Na terça-feira passada, a Turma julgadora do recurso optou por encaminhar a discussão para o plenário, situação em que os 11 ministros da Corte votam. O objetivo é encontrar um consenso se há ou não restrição de liberdade para esse tipo de crime, possibilitando a mesma interpretação para casos futuros. Ainda não há previsão de julgamento.
Chinelos
Há hoje no STF 11 ações envolvendo o furto de chinelos. Os condenados recorreram ao STF com o argumento do princípio da bagatela para tentar se ver livres de penas de detenção – que variaram de regime fechado e semiaberto – e pagamento de multas.
Galinheiro
A.M.G. foi acusado de furtar um galo e uma galinha avaliados em R$ 40 em Rochedo de Minas, na Zona da Mata. O autor do crime foi preso e teve habeas corpus negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em maio deste ano, a Primeira Turma do STF determinou o trancamento da ação penal pelo princípio da insignificância.
Cadeiras e copos
Depois de furtar seis cadeiras, dois microfones, um violão e duas caixas de copos – valor somado de R$ 202 –, L.V.M. conseguiu que o processo fosse extinto pela Justiça de primeira instância e pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Mas o Ministério Público conseguiu reverter as decisões no STJ, que afastou a aplicação do princípio da bagatela. A defesa recorreu ao STF alegando a prescrição do crime, ocorrido em maio de 2002. O STF negou a liminar pedida, sob o argumento de não ter indícios suficientes.
Relógio de pulso
G.A.F. foi acusado de furtar um relógio de pulso e ainda dar um tapa no rosto da vítima. A Justiça de primeira instância o condenou pelo crime de roubo consumado. O Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo (Tacrim) – hoje extinto – acolheu a tese de que o crime não se consumiu e reduziu a pena para três anos e quatro meses. A decisão foi mantida pelo TJ. O caso foi para o STJ, que restabeleceu a sentença inicial de cinco anos de detenção em regime fechado. Em maio de 2006, o STF manteve a decisão.
Repouso noturno
D.S. e J.C.A. foram acusados de furtar um colchão de casal, uma caixa de isopor, três metros de tábuas e cinco galinhas – bens avaliados em R$ 176. O TJ do Rio Grande do Sul absolveu os acusados com base no princípio da insignificância. O Ministério Público gaúcho recorreu ao STJ, que acatou o recurso pelo fato de o furto ter ocorrido por mais de uma pessoa e durante o “repouso noturno”, demonstrando “audácia” dos agentes. A Defensoria Pública da União recorreu então ao STF, que em junho do ano passado manteve decisão do STJ.
Brincos
S.L.A. saiu correndo de uma loja depois de experimentar um brinco, colar e pingente banhados a prata, no valor de R$ 140. A tentativa de furto foi em março de 2008, e a mulher foi absolvida pela Justiça de primeira instância do Rio Grande do Sul. O MP recorreu ao TJ, que reformou a sentença. A defesa recorreu ao STJ, que manteve o entendimento estadual. No STF, os advogados conseguiram a aplicação do princípio da bagatela e o trancamento da ação penal em março de 2011.
Chocolates
E.S.P. foi condenado pela Justiça mineira a um ano e três meses de reclusão pelo furto de seis barras de chocolate avaliadas em R$ 31,80. A ação chegou ao Supremo depois de ter sido negada uma liminar pelo STJ. O rapaz teve a liminar negada também pelo STF, em fevereiro de 2012, com o argumento de que, embora os bens tenham valores ínfimos, o condenado é contumaz na prática de crimes contra o patrimônio e porque furtou os chocolates para trocá-los por drogas.
Roupas no varal
R.A.V. cometeu o crime de furto de três blusas em um varal de uma casa em Tapes, no Rio Grande do Sul, avaliadas em R$ 60. O Ministério Público denunciou o caso à Justiça, que o rejeitou. O MP recorreu então ao TJ, que determinou o recebimento da denúncia. A defesa impetrou habeas corpus no STJ para restabelecer a decisão de primeira instância, mas não obteve êxito. Em recurso ao Supremo, a Segunda Turma determinou o trancamento da ação penal em fevereiro deste ano.
Pacote de fraldas
F.B.M. foi presa em flagrante, em março de 2011, e condenada a quatro meses de reclusão, em regime semiaberto, por tentativa de furto de um pacote de fraldas em São Paulo. Na esperança de reverter a pena, os advogados recorreram à Justiça paulista e ao STJ, mas não obtiveram êxito. A mulher chegou a ficar presa durante dois meses e 10 dias, quando então passaria a ter direito ao regime aberto. No recurso ao STF, a Primeira Turma determinou o trancamento da ação penal em junho deste ano.
Pote de manteiga
A.A.S foi condenada a quatro anos de prisão no regime semiaberto por ter tentado roubar um pote de manteiga, vendido a R$ 3,10, em novembro de 2005, em São Paulo. Na ocasião, ela alegou ter sido um ato de desespero ao ver o filho de dois anos passar fome. Ela chegou a ficar presa durante 128 dias e teve um pedido de habeas corpus negado pelo TJ paulista, até que conseguiu a liberdade no STJ, que reformou a sentença para o regime semiaberto. Os advogados recorreram ao STF e o processo foi arquivado em abril de 2006.