Quem paga \”na verdade\” o tributo indireto?
4 de maio de 2022O sistema de registro de preços na nova Lei de Licitações
11 de maio de 2022Em 3 de maio de 2021, foi promulgada a Lei nº 14.148, conhecida como \”Lei Perse\” (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), que trouxe expressivos benefícios fiscais relativos a tributos federais ao setor de eventos.
Com efeito, o presente artigo pretende abordar o artigo 4º dessa Lei, que concedeu, especificamente às pessoas jurídicas de que trata o artigo 2º desta Lei, por um prazo de 60 meses, a redução de alíquota para zero para os seguintes tributos federais: 1) Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição PIS/Pasep); 2) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); 3) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); e 4) Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ).
Sendo certo que, nessa hipótese, a alíquota zero \”corresponde ao estabelecimento de alíquota nula, resulta em tributo sem nenhuma expressão econômica\”, isto é, em que pese a incidência do fato gerador do tributo, o quantitativo financeiro será inexistente.
Como bem demarcado por Ruy Barbosa Nogueira, o instituto da alíquota zero difere, significativamente, dos demais incentivos fiscais, in verbis:
\”[…] o Supremo Tribunal Federal, ao depois, examinando a natureza jurídico-fiscal da \’alíquota zero\’, veio a assentar, pacificamente, que a alíquota zero nada tem a ver com a não incidência, nem com a isenção. Que a alíquota zero, como categoria da técnica fiscal, significa tributação qualificada ou incidência cuja alíquota é zero e essa alíquota mantém ou qualifica a hipótese como de incidência\”.
Nessa perspectiva, a justificativa para justificar esse benefício fiscal ao setor de eventos, foi fundamentada pelo incomensurável déficit que essa área econômica sofreu em virtude da pandemia da Covid-19.
Nada obstante, destaque-se que o referido artigo 4º havia sido vetado pelo atual presidente da República, de modo que a Câmara dos Deputados promoveu a derrubada do veto, como bem será observado doravante.
Como já esclarecido, frise-se que, conforme o artigo 2º da lei do Perse, os contribuintes enquadrados nesse benefício fiscal são os compreendidos dentro do setor de eventos (artigo 2º, §1º), o qual se incluem: organizadoras de eventos, hotelaria, administração de salas e de prestação de serviços turísticos, conforme artigo 21 da Lei Geral do Turismo. Neste último caso, se abrangem também as agências de turismo, as transportadoras turísticas, os parques temáticos e os acampamentos turísticos.
Ressalta-se que, conforme a Portaria do Ministério da Economia de nº 7.163/2021, podem se enquadrar ainda dentro desse setor os restaurantes e similares, que possuam inscrição regular no Cadastur desde a época da publicação da Lei nº 14.148/2021, o que ocorreu em 04 de maio de 2021.
Quanto à aplicabilidade dos benefícios fiscais in casu, destaca-se que a sua vigência, prevista no artigo 22 da Lei Perse, deve ser entendida como de aplicabilidade imediata, visto a expressa previsão legal. Por outro lado, conforme preceitua o princípio da irretroatividade (artigo 150, inciso III, CF/88), a Lei não pode atingir fatos ocorridos antes do início de vigência da lei. Assim sendo, a estipulação da alíquota zero para os tributos vistos alhures deverá ser computada a partir de 18 de março de 2022.
Contudo, é bom salientar que os contribuintes enquadrados nesses benefícios só terão como termo inicial de vigência tal data, se preenchido as seguintes condicionantes: 1) estar em atividade com data anterior à promulgação das Lei Perse, apresentar Cnae previsto na Portaria ME nº 7.163 de 21 de junho de 2021; e 2) apresentar situação regular no Cadastur, nos termos dos artigos 21 e 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008 (dispõe sobre a Política Nacional de Turismo).
Da análise da constitucionalidade
De forma preliminar, quanto ao tema estudado, vale realçar que as disposições supramencionadas deverão ser melhor regulamentadas, por exemplo, por ato da Receita Federal, motivo pelo qual será exigido um acompanhamento e atenção quanto a matéria.
Todavia, conforme exigência do §2º do artigo 2º da Lei Perse, o Ministério da Economia, por meio da Portaria ME 7.163, de 21 de junho de 2021, já publicou os códigos de Cnaes que estarão contemplados como Setor de Eventos para fins de aplicação da Lei Perse. Observa-se que nessa resolução houve a previsão de quase 90 códigos Cnae, sendo que alguns deles, inclusive, não possui uma relação muito evidente com o setor de eventos.
Vale lembrar, por oportuno, as razões de veto apresentadas à época pelo presidente da República. Em síntese, alegou-se óbice jurídico pela possível renúncia de receita sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que a informação do respectivo impacto orçamentário.
Assim, tendo em consideração que a regulamentação da Lei Perse se encontra ainda incompleta, o que pode modificar a presente análise, importa verificar a constitucionalidade da norma de forma estrita. Para isso, serão examinados os principais pontos: 1) competência normativa; 2) competência específica dos benefícios fiscais; 3) competência de iniciativa; e 4) impacto orçamentário aos cofres públicos.
Quanto à competência normativa, verifica-se que a Lei Perse trata de uma Lei Federal Ordinária, cujo objeto compreende somente tributos de competência da União e que não exigem a sua instituição por meio de Lei Complementar, ou seja, evidencia-se, em linhas gerais, o cumprimento desse primeiro critério.
No que tange à competência específica, segundo ponto, vale verificar o requisito de lei específica para a concessão de benefícios fiscais, conforme artigo 150, §6º, CF e artigo 176 do CTN. De fato, percebe-se que esse requisito também se encontra preenchido, uma vez que a Lei nº 14.148/2021 cuida, especificamente, do \”Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos\” (Perse), conforme exige a jurisprudência dos Tribunais superiores sobre a matéria.
Quanto à inciativa para a criação desse Lei ao Setor de Eventos, sem embargo da controvérsia da questão, em razão da iniciativa ter sido advinda da Câmara dos Deputados (por meio do deputado federal Felipe Carreras — PSB/PE), verifica-se que poderão surgir questionamentos no sentido de que a iniciativa de lei em matéria tributária é privativa do Chefe do Poder Executivo, uma vez que se trata de matéria eminentemente orçamentária.
Isso decorre da leitura do parágrafo §2º do artigo 165 da CF/88, quando positiva ser de iniciativa privativa do Chefe do Executivo, o estabelecimento de diretrizes orçamentárias, as quais, entre outras matérias, abrange as alterações na legislação tributária.
Acontece, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 743.480/MG, sedimentou a jurisprudência \”a fim de assentar a inexistência de reserva de iniciativa para leis de natureza tributária, inclusive as que concedem renúncia fiscal\”. Consequentemente, de acordo com a alínea \”b\”, §1º do artigo 61 da CF/88, a única matéria tributária que deve ser considerada como privativa do Presidente da República são apenas as leis que versem sobre os Territórios Federais integrarem a União.
Como último critério da análise de constitucionalidade, temos o requisito da estimativa de impacto orçamentário aos cofres públicos para a concessão de um benefício fiscal. Tal exigência originou-se, com afinco, após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do RE 572.772/SC, julgado em 18 de junho de 2008, que tratava sobre a constitucionalidade do incentivo fiscal de ICMS e o seus efeitos no orçamento nos Municípios.
Posteriormente a esse julgado, em 2018, por meio do julgamento do RE 705.423/SE [14], com repercussão geral reconhecida, o Supremo Tribunal Federal também enfrentou a questão do impacto orçamentário aos cofres públicos de benefícios fiscais. Nesse processo, por outro lado, se discutiram benefícios fiscais concedidos pela União, relativos ao Imposto de Renda (IR) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas quotas devidas às municipalidades.
Nesse supracitado caso, o Supremo fixou a tese no sentido da constitucionalidade da concessão de incentivos fiscais relativos ao IR e ao IPI por parte da União em relação a tal Fundo de Participação de Municípios.
Impende realçar, ainda, que a Lei Perse, conforme o seu artigo 5º, traz uma série de medidas para financiar os benefícios fiscais, justamente com o fim de não incorrer em inconstitucionalidade por tal fundamento. Entre as formas de financiamento, a Lei Perse prevê, além de recursos orçamentários do Tesouro Nacional, a possibilidade de utilização de fontes, tais como: o valor referente a 3% do dinheiro arrecadado com as loterias; recursos de emissão de títulos do Tesouro Nacional para ações emergenciais e temporárias; dotação orçamentária específica; e, de forma genérica, a possibilidade de outras fontes; razões pelas quais se constata como também preenchido esse último requisito.
Da conclusão
Diante o exposto, conclui-se que, em uma visão geral, o benefício fiscal instituído pela Lei nº 14.148/21 (Lei Perse) é um importante mecanismo que permite ao Estado agir de forma interventiva no domínio econômico e no exercício de sua competência tributária, com a finalidade de materializar determinada política pública, revestindo-se de aparente constitucionalidade, ante ao cumprimento dos requisitos previstos na Constituição Federal de 1988 e em consonância com entendimentos do Pretório Excelso.
Ainda assim, observa-se a possibilidade do controle de constitucionalidade da Lei Perse, por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade, com a possível alegação de vício de iniciativa ou não previsão de estimativa de impacto orçamentário, tendo em consideração que esses temas são constantemente enfrentados pelo próprio STF.
Finalmente, é bom lembrar que ainda será necessário aguardar os próximos capítulos sobre esse importante tema tributário de intervenção econômica, notadamente, o decreto de regulamentação em nível infralegal.