Os números do Monitor da Violência para os dois primeiros meses de 2019 são sinais de que estamos diante de um bom enigma, de um momento em que, após um longo ciclo de crescimento da violência letal, estamos presenciando uma redução dos homicídios que já dura 15 meses. Agora, precisamos identificar com precisão o que provocou esta inflexão para que políticas públicas possam ser mais bem efetivas.
Isso só será possível com o investimento contínuo em monitoramento e avaliação de programas e ações. O Brasil precisa coordenar melhor o seu fluxo de dados e de indicadores sobre medo, violência e crime para que possamos ter clareza sobre quais rumos devem ser perseguidos e/ou quais trilhas nos levam aos inúmeros becos sem saída da segurança pública atual.
É louvável que União e várias unidades da federação estejam investindo milhões de reais em estruturar plataformas tecnológicas de informações criminais. Porém, considerando que o pacto federativo brasileiro optou por delegar o gerenciamento das polícias Civil e Militar aos estados e ao Distrito Federal, o monitoramento não pode estar assentado apenas na ideia de centralização na União dos dados. Temos que garantir autonomias federativas e, ao mesmo tempo, construir pactos políticos e metodológicos que permitam comparabilidade.
Mas esta é uma contradição conceitual que poucos parecem se dar conta. Temos insistido em reforçar a ideia de que a União precisa unificar e gerenciar os sistemas estaduais.
Não à toa, o Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), que foi criado por lei em 2012 com este propósito de unificar registros e já consumiu quase R$ 300 milhões de investimentos, só agora em 2019 conseguiu disponibilizar os dados criminais de 2018 – enquanto o Monitor da Violência já conseguiu obter os dados completos dos dois primeiros meses de 2019.
Imaginem se não houvesse a opção de iniciativas promovidas por organismos independentes como o Monitor da Violência, Anuário Brasileiro de Segurança Pública ou Atlas da Violência? Ainda estaríamos à mercê de dados parciais e em muito baseados em informações fragmentadas e pontuais.
É muito importante louvar o Sinesp, que hoje é uma das maiores plataformas tecnológicas do país (do tamanho do sistema do Imposto de Renda, da Receita Federal, por exemplo). Mas ele foi desenhado para ser uma plataforma de integração tática e operacional da atividade policial do país todo e não, necessariamente, para ser uma ferramenta de monitoramento político e estratégico da segurança pública, cuja premissa é a da transparência e da prestação de contas.
O Sinesp cumpre o fundamental objetivo de dar maior racionalidade e integração aos registros de interesse policial. Todavia, ainda não temos um sistema de indicadores de monitoramento e avaliação das políticas de segurança pública. E, para tanto, não precisamos apenas de tecnologia, mas de coordenação e governança.
Prova disso é que, se olharmos os dados deste primeiro bimestre de 2019, um número chama muito a atenção e pode ser tomado como emblemático do desafio posto. Trata-se da redução de quase 58% no número de homicídios no Ceará, se tomado em relação ao mesmo período de 2018.
Na ausência de avaliações e de evidências sistematizadas, as diversas narrativas sobre o fenômeno deixam de considerar a multicausalidade desse tipo de crime e tudo se transforma numa disputa de narrativas. Cada um vai ter um dado para chamar de seu e interpretar a realidade de acordo com sua convicção.
Alguns analistas vão interpretar tal movimento como em muito associado às dinâmicas do mercado da droga e de armas, que sobretudo a partir de 2014 têm imposto um cenário de confrontos e disputas por territórios. Diversas facções de base prisional foram beneficiadas pelos efeitos perversos das resilientes e frágeis políticas criminal e penitenciária vigentes, que se negaram a tocar nos pontos de estrangulamento do sistema e, no jogo de soma zero vivido na área, optaram por surfar na legislação do pânico.
Nesse meio tempo, as facções foram ganhando força e começaram a desafiar o poder público. E, na guerra por territórios e rotas do tráfico, as mortes cresceram de forma bastante acentuada e, em uma trégua para enfrentar conjuntamente mudanças impostas pelo governo cearense no sistema prisional, os homicídios caíram.
Esta é uma das explicações para, por exemplo, o fato de os ataques contra ônibus, prédios públicos e pontes efetuados no começo do ano não terem gerado nenhuma morte, assim como para que neste período não tenha havido guerra entre as facções.
Já outros analistas e gestores olham para a política pública e identificam os esforços feitos para fazer frente às ameaças. Novas estratégias de repressão foram adotadas e houve a articulação, mesmo que momentânea, em torno de um objetivo comum.
Talvez tenha sido a combinação de ambos os fatores que levaram à queda tão expressiva dos homicídios no Ceará. Seja como for, na ausência de monitoramento sistemático da política e da produção de indicadores demográficos, socioeconômicos e criminais consistentes, dificilmente seremos capazes de identificar os determinantes para a redução da violência letal em todo o país.