A Édison Freitas de Siqueira Advogados Associados obteve
mais uma importante vitória na defesa judicial dos interesses dos contribuintes
lesados por ilegalidades perpetradas pelo fisco.
Em sede de execução fiscal que tramita perante a Justiça do
Trabalho, o Tribunal acolheu recurso da empresa executada, determinando o
afastamento da Taxa Selic e limitando a taxa de juros em 1% ao mês.
O voto do Desembargador Relator exprime o seguinte
entendimento: em se tratando de multa decorrente de infração a norma
trabalhista e de natureza administrativa, inaplicável o disposto no artigo 13
da Lei n.º 9.065/1995[1], eis que tal
dispositivo trata tão-somente da aplicação da taxa Selic aos débitos
tributários federais. Desta feita, a atualização dos valores executados no
feito em questão não poderia ser efetuada com base na referida lei, devendo ser
aplicada a dicção do CTN em seu artigo 161, § 1.º[2].
Com razão o Eminente Julgador ao determinar o afastamento da
taxa Selic e a utilização dos juros de 1% ao mês. Entretanto, vale a pena
transpor o cerne do entendimento professado pelo Relator do recurso vitorioso,
cabendo tecer algumas importantes considerações acerca da ilegalidade da
aplicação da Taxa Selic em sentido lato, ou seja, na atualização de débitos de
natureza tanto trabalhista, quanto fiscal.
A utilização indiscriminada da Taxa Selic como índice de
correção dos débitos fiscais esbarra em diferentes dispositivos legais; com
efeito, tendo sido criada por meio da Circular nº. 466/1979 do BACEN, resta
evidente a ofensa ao artigo 192 da Constituição Federal[3].
A SELIC foi criada, portanto, com o fito de regulamentar o mercado de Títulos e
Custódias do Sistema Financeiro Nacional e seus índices; seu caráter é,
indubitavelmente, remuneratório.
Assim, sendo a Lei nº 9.065/1995 – através do qual restou
autorizada a aplicação da taxa SELIC para fins tributários – lei ordinária e não complementar, fica clara
a sua incompatibilidade com o texto da Lei Maior.
Além do artigo 192, a utilização da taxa Selic também ofende
o disposto no art. 150, I, o qual determina que “sem prejuízo de outras
garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o
estabeleça”. O princípio da legalidade, neste caso em específico, relaciona-se
intimamente com outro importante princípio: o da segurança jurídica.
É correto afirmar, portanto, que para que a Taxa SELIC
pudesse ser utilizada para fins tributários, haveria a obrigatoriedade de lei complementar
estabelecendo os critérios para tanto. Na inexistência de tal regramento, é o §
1.º do art. 161 do CTN que no direito brasileiro dispõe sobre a aplicação de
juros e correção aos débitos tributários.
Sem dúvida, o processo do qual se originou a decisão ora em
comento busca satisfazer crédito fiscal de natureza não-tributária, porquanto
resultante de multa por descumprimento ao artigo 459, § 1º da CLT; logo, inequívoco tratar-se de multa com cunho
de pena administrativa. Portanto, mesmo que a taxa Selic fosse constitucional,
não caberia, neste caso, o seu uso.
O entendimento por alguns professado em defesa da utilização
da taxa SELIC, é a de que esta possuiria base legal para a sua aplicação já que
a matéria relativa aos juros não foi reservada à Lei Complementar, podendo,
pois, ser veiculada através de lei ordinária. Argumentam, ademais, que a
limitação do percentual de juros prevista no §3º do art. 192 da CF foi revogada
pela EC 40/03.
Nada mais equivocado, no entanto. Conforme alhures
mencionado, a taxa SELIC foi introduzida no sistema normativo e está
regulamentada por meio de circular exarada pelo BACEN. Ela atua como pagamento
pelo uso de dinheiro e é calculada em função da variação de seu custo, que
sofre a influência das flutuações da economia de mercado.
Importa ainda ressaltar que a utilização da Taxa Selic para
fins de correção monetária de débitos fiscais fere importantes princípios norteadores
do direito tributário, oriundos do texto da Carta Magna. A Constituição Federal
de 1988 determinou a repartição de competências na seara tributária, na medida
em que o artigo 145[4] elenca os tributos que
poderão ser instituídos por meio do Poder Legislativo da União Federal,
Estados, Distrito Federal e Municípios; o artigo 146, III[5],
a seu turno, reserva às leis complementares a prerrogativa de estabelecer
normas gerais em matéria tributária.
No âmbito da competência tributária com supedâneo na
autonomia dos entes políticos, importa dizer que a mesma é a atribuição dada
pela Constituição Federal aos entes políticos do
Estado – União Federal, Estados e Municípios – para a instituição de tributos. A competência
tributária conferida a uma entidade federativa não pode ser delegada, atendendo
ao preceituado no artigo 7º do Código Tributário Nacional[6].
Assim, o princípio da indelegabilidade da competência reza
que as competências constitucionalmente definidas não poderão ser transferidas
a outrem.
Muito embora a ausência de consenso na doutrina e
jurisprudência quanto à existência ou não de hierarquia entre leis
complementares e leis ordinárias, a principal distinção que se apresenta é o
fato de a lei complementar exigir quórum qualificado – maioria absoluta dos
membros de cada uma das casas do Congresso Nacional – para sua aprovação, ao
contrário do que ocorre com as leis ordinárias, conforme disposição literal do
texto constitucional[7].
Ora, em estando a taxa SELIC prevista e regulamentada por
meio de ato administrativo do Banco Central, clara está a violação direta ao
princípio da indelegabilidade da competência tributária, uma vez que,
repise-se, a Constituição Federal é clara ao reservar às leis complementares a
prerrogativa de dispor acerca de assuntos relativos à tributação.
O princípio da segurança jurídica encontra denominações
distintas na doutrina brasileira, como em Aliomar Baleeiro,
que o qualifica como princípio da não-surpresa, o qual “destina-se a evitar a
surpresa do contribuinte, reforçando-lhe a segurança e a previsibilidade”[8].
A utilização da taxa SELIC importa em ônus excessivo,
desnecessário e sem fundamento aos contribuintes, vulnerando igualmente o
princípio da segurança jurídica. Este é, ao lado da legalidade, viga mestra do
Estado de Direito, integrando o seu próprio conceito. O entendimento do Supremo
Tribunal Federal assevera que:
A essencialidade do postulado da segurança jurídica e a
necessidade de se respeitarem situações consolidadas no tempo, amparadas pela
boa-fé do cidadão (seja ele servidor público, ou não), representam fatores a
que o Judiciário não pode ficar alheio.[9]
Tal situação apresenta-se em
desconformidade igualmente com os princípios da proporcionalidade e
razoabilidade, os quais representam meios de concretizar o interesse da
coletividade sobre o interesse do Estado, coibindo os excessos, visto que há
que se buscar sempre a adequação dos meios empregados aos fins buscados pela
atuação estatal. O controle dos excessos visa, principalmente, à proteção dos
direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Ressalte-se que pela
aplicação do referido princípio o agir do administrador está adstrito à
determinação daquele, eis que a conduta do agente público afastada da
moralidade é, igualmente, contrária à ordem jurídica.
O entendimento da doutrina é uníssono: os princípios da
proporcionalidade e razoabilidade configuram norte não somente às ações da
Administração Pública, como também servem de parâmetro para o devido processo
legal. A idéia portanto é a de limitação da atuação estatal, em especial quanto
ao poder de polícia e de intervenção estatal na vida privada dos indivíduos.
Nesse sentido,
A restrição de direitos ou prática de atos em que haja
interesses juridicamente relevantes devem levar em consideração a finalidade
pretendida, a legitimidade dos instrumentos aplicados, a necessidade e utilidade
da sua realização a par da adequação, isto é, da justa medida (razoabilidade)
para compatibilizar o sacrifício de um direito ou interesse em detrimento de
outro.[10]
O Estado não encerra sua finalidade em si mesmo: ele é um
mero instrumento destinado à persecução de determinados fins e interesses
sociais.
Portanto se percebe que todos os princípios constitucionais
que norteiam a administração pública, não se resumindo àqueles previstos no
art. 37, mas previstos também em outras passagens da Carta Magna e na
legislação infraconstitucional, desempenham importante papel na limitação dos
poderes do Estado em face dos particulares, papel este consubstanciado no agir
do administrador público, o que visa, em última análise, ao irrestrito amparo
aos direitos e garantias fundamentais.
Nesse sentido:
Limitando liberdades, o Direito limita o poder, pois na
verdade o exercício do poder pressupõe a liberdade. O poder, como se sabe, é a
aptidão dos seres humanos para decidir e fazer valer suas decisões. Apresenta-se
de diversas formas e tem vários fundamentos. Fala-se de poder econômico, poder
político, poder de liderança, etc. A todas essas formas de poder o Direito
impõe limites, para que os poderosos não abusem do poder. O Direito é um
instrumento adequado para o estabelecimento de limites do poder.[11]
A decisão em comento, portanto, prima pela boa técnica
jurídica ao aplicar adequadamente as disposições legais concernentes ao tema,
buscando dar efetividade às normas constitucionais que regem a situação
concreta. Nesse ínterim, urge uma mudança de entendimento e um maior ativismo
por parte dos Tribunais brasileiros, para fins de determinar o afastamento da
aplicação da taxa Selic incidente sobre os débitos fiscais.
Dra. Julia Fiorese Reis
[2] Art. 161. O crédito não integralmente pago no
vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da
falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de
quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária.
§
1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à
taxa de um por cento ao mês.
[3] Art. 192. O sistema financeiro
nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País
e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem,
abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares
que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas
instituições que o integram. (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)
[4] Art. 145.
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
poderão instituir os seguintes tributos:
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia
ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III – contribuição de melhoria, decorrente de obras
públicas.
[5] Art. 146. Cabe à lei complementar:
III – estabelecer normas
gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como,
em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos
fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e
decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo
praticado pelas sociedades cooperativas.
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido
para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes
especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das
contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se
refere o art. 239.
[6] A competência tributária é indelegável, salvo
atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar
leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária
conferida por uma pessoa jurídica a outra.
[7] Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por
maioria absoluta.
[8] BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder
de Tributar. Rio de Janeiro : Forense, 1999, p. 417.
[9] STF, MC no MS n.º 26200, Rel. Min. Celso de Mello, DJU
27/10/2006.
[10] OLIVEIRA FILHO, Francisco José Rodrigues de. O
controle judicial do excesso legislativo e dos atos discricionários da
administração pública no devido processo legal substancial. In Revista Dialética de Direito
Processual, n.º 49, abril. São Paulo : Dialética, 2007, p. 60,
[11] MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao Estudo do
Direito. 2.ª ed. São Paulo : Atlas, 2004, p. 23.