O Supremo Tribunal Federal discutirá nesta quinta-feira (23/9) se derruba por completo a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/10) ou se volta a discutir se a norma se aplica já nestas eleições e se alcança os casos de políticos condenados ou que renunciaram ao mandato para escapar de processos disciplinares, mesmo antes de as novas regras entrarem em vigor.
A questão sobre a inconstitucionalidade total da lei foi levantada pelo presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso. O presidente disse que a Ficha Limpa é “um caso de arremedo de lei”. Isso porque, segundo o ministro, a tramitação do projeto que se transformou na lei feriu o devido processo legislativo.
Depois de uma discussão tensa em plenário por conta dos argumentos de Peluso, o ministro Dias Toffoli pediu vista do recurso. Mas prometeu trazê-lo para julgamento já nesta quinta. No mérito, por enquanto, apenas o relator do processo, ministro Ayres Britto, proferiu seu voto, favorável à aplicação imediata da lei.
A questão levantada por Peluso surpreendeu. O ministro lembrou que uma emenda do senador Francisco Dornelles (PP-RJ) alterou a redação do projeto que havia sido aprovado na Câmara dos Deputados. Pelas regras, quando o Senado altera os projetos de lei que nascem na Câmara dos Deputados, os textos devem voltar para nova análise dos deputados. E vice-versa.
Na época, o Senado considerou que por se tratar de mera mudança de redação, do tempo verbal, não seria necessário submeter o projeto a nova votação na Câmara. A emenda de Dornelles alterou cinco alíneas do projeto, substituindo a expressão “que tenham sido” por “que forem”. É nesta mudança que se funda a interpretação de que a regra abrange os casos de políticos condenados antes de sua vigência.
Para o presidente do STF, o caso está muito longe de ser uma mera emenda para adequar a redação e sua tramitação irregular feriu o parágrafo único do artigo 65 da Constituição Federal. A norma fixa o seguinte: “Art. 65 O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora”.
De acordo com Peluso, “não houve mera mudança redacional. O que está em jogo é saber se a lei apanha ou não os atos ocorridos antes da sua vigência ou somente os atos futuros. Lei não pode ser feita de qualquer jeito. A corte precisa se pronunciar”.
A questão levantada por Peluso causou um discussão intensa entre os ministros. Ayres Britto e Ricardo Lewandowski se mostraram inconformados pelo fato de o presidente propor essa discussão em um Recurso Extraordinário, sem pedido expresso da defesa do candidato ao governo do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PSC).
“Juiz não age de ofício e a causa de pedir em Recurso Extraordinário não é aberta”, reagiu Lewandowski. “Está me parecendo um salto triplo carpado hermenêutico”, ironizou Britto. Ao que Peluso respondeu: “Isso me parece muito interessante do ponto de vista publicitário, mas não do jurídico”. Em seguida, Britto voltou a protestar: “Estamos transformando Recurso Extraordinário em Ação Direta de Inconstitucionalidade”.
A discussão foi acalorada porque parte dos ministros entende que o Supremo, em Recurso Extraordinário, só pode se manifestar sobre os pontos levantados pela defesa. Outros entendem que não, que mesmo sem o pedido expresso, a Corte pode agir. Para o advogado Vicente Coelho Araújo, da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados, é possível discutir a questão mesmo que não tenha sido colocada pela defesa se for para declarar a inconstitucionalidade da lei.
“Suponhamos que se verifique, em um julgamento, que uma lei que determina o confisco de bens foi sancionada pelo presidente da República sem passar por uma das casas legislativas. O STF teria de julgar o confisco sem se ater para o fato de que a lei tem flagrante inconstitucionalidade formal? Creio que não”, afirma Araújo.
Aplicação da lei
Até a discussão levantada pelo presidente Peluso, discutiu-se os mesmos pontos da lei contestados por Roriz no Tribunal Superior Eleitoral: sua aplicação imediata e seus efeitos sobre os casos de políticos condenados mesmo antes de as novas regras entrarem em vigor.
O relator do recurso, ministro Ayres Britto, manteve intacta a decisão do TSE. A norma se aplica já nestas eleições, que não fere o princípio da irretroatividade da lei porque critério de inelegibilidade não é punição e que alcança os casos em que políticos renunciaram ao mandato para escapar de processos disciplinares, mesmo antes de as novas regras entrarem em vigor.
Britto atacou cada um dos pontos levantados pela defesa de Roriz. De acordo com ele, vem da própria Constituição Federal a determinação de que a lei deve fixar hipóteses de inelegibilidade considerando a vida pregressa dos candidatos. Por isso, para o ministro, não se pode sustentar que a Lei da Ficha Limpa fere o princípio da irretroatividade ao barrar a candidatura de quem foi condenado ou renunciou para escapar de cassação antes de as regras entrarem em vigor.
O ministro citou o parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição: “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato, considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
Sobre o caso concreto, Ayres Britto reforçou que a renúncia para escapar de cassação é uma “típica modalidade de confissão, uma confissão de que não tem como se safar da acusação”. Para Britto, o candidato tem responsabilidades morais. “Candidato vem de cândido, puro, limpo, no sentido ético.” O ministro também afirmou que são necessárias regras “que salvem a política dos políticos avessos ao princípio da probidade administrativa”.
O advogado Pedro Gordilho, que representa Joaquim Roriz, sustentou que não se pedia, no recurso, a declaração de inconstitucionalidade da lei. Mas sim interpretação do TSE que firmou sua aplicação imediata e a retroatividade para alcançar o ato de renúncia de seu cliente, em 2007.
De acordo com o advogado, há um óbice específico no caso de Roriz. Mesmo antes de decidir pela instauração do processo, o Senado acolheu a renúncia do então senador e nem mesmo o PSOL, que havia pedido a abertura do processo, requereu o andamento do processo. Para Gordilho, isso revela que o Senado reconheceu que a representação não era capaz de se transformar em um processo.
E, segundo Pedro Gordilho, a Lei da Ficha Limpa é clara ao prever a inelegibilidade dos políticos que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição “capaz de autorizar a abertura de processo”. Disse também que Roriz sequer foi comunicado da reunião do conselho no Senado. Os argumentos, contudo, não surtiram efeito.
“A renúncia se deu antes de qualquer chance de o Senado deliberar sobre o caso. Assim, não se pode verificar se a representação seria ou não capaz de abrir processo de cassação conta ele”, afirmou o ministro Britto. “Quem abre mão do seu mandato de forma unilateral, observando apenas a sua vontade, trai o cargo que, ao assumir, jurou cumprir com dignidade e devoção, trai o partido sob cuja legenda se elegeu e trai o próprio eleitorado”, anotou o ministro.
Caso Roriz
O Supremo retomará, nesta quinta, o julgamento do recurso de Roriz contra a decisão do TSE que rejeitou seu registro por quatro votos a dois. O candidato ao governo distrital foi enquadrado na nova legislação em razão da renúncia ao mandato de senador em 2007, pouco antes de o Senado decidir se abriria processo por quebra de decoro parlamentar contra ele. A Justiça Eleitoral entendeu que ele renunciou para escapar do processo, o que pela nova lei é um critério de inelegibilidade.
Joaquim Roriz foi eleito senador em 2006, com 51,83% dos votos válidos. Seu mandato terminaria em 2014. De acordo com a nova regra, o prazo de oito anos em que o político fica inelegível começa a contar de quando terminaria seu mandato. Logo, Roriz não poderia concorrer a nenhum cargo eletivo até 2022. A proibição de concorrer às eleições para os políticos sob investigação administrativa que renunciam ao mandato está prevista na letra k do artigo 1ª da lei.
De acordo com o dispositivo, são inelegíveis “o presidente da República, o governador de Estado e do Distrito Federal, o prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura”.