O Professor Celso Ribeiro Bastos ensinava que “(…) em linhas gerais, o precatório é uma requisição judicial expedida ao Presidente do Tribunal pelo juiz da execução da sentença em que a Fazenda Pública foi condenada a pagamento de quantia certa, a fim de que sejam expedidas as necessárias ordens de pagamento às respectivas repartições competentes” (Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 4º v., T. III, p. 47)
Quando da promulgação da Constituição Federal, a sistemática aplicável aos precatórios estava prevista no artigo 100 da CF, que determinava que quando houvesse sentença judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública, o pagamento seria realizado através de precatórios, por ordem cronológica de sua apresentação.
Além disso, estabelecia que os precatórios requisitados pelo Presidente do Tribunal onde o processo transitou em julgado até o dia 30 de junho de cada ano, deveriam ser pagos até o final do exercício seguinte, devidamente corrigidos.
Com o advento da Emenda Constitucional 30, de 13 de setembro de 2000, foi modificado o artigo 100 da Constituição Federale incluído o artigo 78 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. As novidades trazidas pela EC 30/2000 podem ser assim resumidas:
a) aos precatórios pendentes de pagamento em 13/09/2000 (aqueles (i)já devidamente inscritos no Tribunal competente; (ii) os que Fazenda deixou de honrar a modo e tempo próprios e (iii) os regularmente inscritos que aguardam o momento de serem pagos) e aos que decorrem de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, vencidos e não pagos, foi conferida autorização para sua utilização na quitação de tributos da entidade devedora;
b) a concessão para decomposição de parcela do precatório, a critério do credor, ou seja, o vencedor de ação contra a Fazenda Pública pode escolher entre receber o crédito do precatório em uma parcela anual, ou em número maior de parcelas ao ano;
c) a permissão para a cessão de créditos decorrentes dos precatórios;
d) a estipulação do prazo máximo de dez anos para pagamento dos créditos, ou de dois anos quando se tratar de precatório original de desapropriação de único imóvel residencial do credor;
e) a determinação para que os precatórios sejam liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas.
Posteriormente foi editada a Emenda Constitucional nº 62/2009 que mudou novamente o sistema de pagamento de precatórios pelos entes políticos.Pela nova Emenda Constitucional foram modificadas novamente as normas que tratam dos pagamentos de tributos, visto que foi inserido um método de compensação automático e obrigatório entre o credor originário (parte da ação) e a Fazenda Pública, que ocorre antes da própria expedição do precatório (tratada adiante).
Em vista disso, a Constituição Federal em vigor atualmente estabelece que: (i) os pagamentos das dívidas fazendárias serão feitos por meio de precatórios; (ii) estes obedecerão a ordem cronológica; (iii) quando da expedição dos precatórios, deles deverá ser abatido a título de compensação, valor correspondente aos débitos constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, (iv) aos precatórios pendentes de pagamento em 13/09/2000 e aos que decorrem de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, vencidos e não pagos, foi conferida autorização para sua utilização na quitação de tributos da entidade devedora;(v) os valores devidos devem ser corrigidos monetariamente no lapso temporal que transcorrer entre a data da expedição do precatório de do efetivo pagamento; (vi) o credor pode ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor.
Poder Liberatório para Pagamento de Tributos
Como já se viu acima, pela dicção das normas constitucionais depreende-se que estas autorizam o sujeito passivo de tributo a extinguir o débito por meio de precatório. Contudo, não são todos os precatórios que tem poder liberatório para pagamento de tributos. Referida qualidade é atribuída apenas aos precatórios pendentes em 14/09/2000 (data de promulgação da EC 30/2000) e aos precatórios que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 vencidos e não pagos pela Fazenda devedora.
Assim, para o precatório tenha poder liberatório para pagamento de tributo, condição essencial é que tenha sido descumprido. Considera-se descumprido o precatório se a prestação anual a ser paga não tenha sido liquidada até o final do exercício (artigo 78, § 2º do ADCT).
Contudo há que se atentar que o pagamento do precatório ocorre em diversas parcelas anuais. Nesse aspecto, o Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que, não satisfeita alguma das parcelas do precatório judicial, opera-se o poder liberatório para pagamento de tributos da Fazenda devedora no limite das parcelas vencidas. Ou seja, o vencimento de apenas uma parcela, não faz vencer toda a dívida e, assim, somente tem qualidade de liberar o pagamento de tributo a parcela que efetivamente não foi paga no seu vencimento.
Eis algumas ementas proferidas pelo STF nesse sentido:
“PRECATÓRIO JUDICIAL. PODER LIBERATÓRIO. 1. O benefício constante do § 2º do art. 78 do ADCT, na redação da EC 30/2000, incide apenas sobre as prestações não liquidadas e não sobre o total do débito constante do precatório. Precedente: ADI 2.851. 2. Agravo improvido.(SS 2589 AgR, Relator(a):Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2006, DJ 22-09-2006 PP-00028 EMENT VOL-02248-01 PP-00166 LEXSTF v. 28, n. 335, 2006, p. 308-310)
EMENTA: CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. COMPENSAÇÃO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO COM DÉBITO DO ESTADO DECORRENTE DE PRECATÓRIO. C.F., art. 100, art. 78, ADCT, introduzido pela EC 30, de 2002. I. – Constitucionalidade da Lei 1.142, de 2002, do Estado de Rondônia, que autoriza a compensação de crédito tributário com débito da Fazenda do Estado, decorrente de precatório judicial pendente de pagamento, no limite das parcelas vencidas a que se refere o art. 78, ADCT/CF, introduzido pela EC 30, de 2000. II. – ADI julgada improcedente.(ADI 2851, Relator(a):Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2004, DJ 03-12-2004 PP-00012 EMENT VOL-02175-01 PP-00187 RIP v. 6, n. 29, 2005, p. 243-248 RDA n. 239, 2005, p. 463-467 RF v. 101, n. 378, 2005, p. 255-259 RTJ VOL-00193-01 PP-00106).
Cessão de Crédito
A Constituição Federal permite a cessão de créditos decorrentes dos precatórios independentemente da concordância do devedor, bem como autoriza também a cessão total ou parcial do crédito a terceiros, esta última por meio da decomposição de parcelas.
A legislação tributária infra-constitucional não trata especificamente da cessão de crédito, contudo a Resolução/CNJ 115/2010 reitera os termos da Constituição Federal afirmando que “o credor de precatório poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos a terceiros, independentemente da concordância do devedor”.
Contudo, deve se atentar que o fisco somente considera válida a cessão, depois de proferida decisão transitada em julgado em relação ao valor devido pela Fazenda. A Receita Federal tem desconsiderado as cessões de precatórios, quando não há certeza em relação ao quantum devido (Acórdão nº 03-32573 de 14 de Agosto de 2009 – Segunda Turma, DRJ/BSB)
No caso a cessão dever ser feita preferencialmente por instrumento público, nos termos do artigo 288 do Código Civil, que estabelece ser “ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1o do art. 654”.
A cessão de precatórios somente produzirá efeitos após comunicação, por meio de petição protocolizada, ao juízo de origem e à entidade devedora, antes da apresentação da requisição ao Tribunal (art. 16, § 3º da Resolução/CNJ 115/2010).
DIFICULDADES E CUIDADOS QUE DEVEM SER OBSERVADOS
Da Aplicação Imediata do Artigo 78 § 2º do ADCT
Não obstante previsto na Constituição Federal, ainda não existe lei no âmbito federal regulando o poder liberatório para pagamento de tributos dos precatórios.
No nosso entendimento, o poder liberatório do precatório não necessita de regulamentação por lei infra-constitucional para ser aplicado imediatamente. A Constituição Federal não autorizou o legislador ordinário a limitar ou exigir outras condições para que se perfaça o poder liberatório do pagamento de tributos pela Fazenda Pública devedora. A norma constitucional em questão se insere naquelas que não necessitam de complementação para surtir efeito.
Por outro lado, há que se atentar que a Receita Federal não tem entendimento unânime quanto à possibilidade de utilização imediata do precatório para pagamento de tributos. Algumas soluções de consultas e decisões administrativas consignam que apesar da Constituição Federal prever tal possibilidade, a matéria precisa ser regulamentada por norma infra-constitucional.
Abaixo seguem duas soluções de consulta. A primeira contrária e a segunda favorável ao detentor do precatório:
“Solução de Consulta nº 57 de 01 de Outubro de 2008- DISIT 04
EMENTA: COMPENSAÇÃO. TÍTULOS PÚBLICOS. TÍTULOS REPRESENTATIVOS DA DÍVIDA PÚBLICA FEDERAL. OBRIGAÇÕES DA ELETROBRÁS. PRECATÓRIOS. PRESTAÇÕES ANUAIS. TRIBUTOS E CONTRIBUIÇÕES FEDERAIS
As prestações anuais dos precatórios pendentes na data da promulgação da Emenda Constitucional nº 30, de 2000, ou decorrentes de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, caso não sejam liquidadas até o final do exercício a que se referem, poderão, em princípio, ser utilizadas na compensação de tributos da entidade política devedora, permitida a cessão dos créditos. No entanto, o direito à utilização das citadas prestações anuais dos precatórios da União, na compensação de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, somente poderá ser exercido após a regulamentação do art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pelo Congresso Nacional e/ou pelo Poder Executivo Federal”.
“Solução de Consulta nº 230 de 25 de Setembro de 2001- DISIT 08
ASSUNTO: Normas Gerais de Direito Tributário
EMENTA: As prestações anuais dos precatórios pendentes na data de promulgação da Emenda Constitucional nº 30, de 2000, e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, terão poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, permitida a cessão dos créditos. A compensação deverá ser requerida conforme disposto nas normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal”.
Compensação de Precatórios com Débitos Constituídos Contra o Credor Original
A Constituição Federal permitiu que no momento da expedição dos precatórios o Poder Público abatesse unilateralmente o valor dos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em Dívida Ativa constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, inclusive parcelas vincendas de parcelamentos (art. 100, § 9º, da CF/88).
Somente não podem ser objeto de abatimento os débitos tributários cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.
A regra foi criada para resguardar os créditos fazendários. Trata-se de direito do Fisco e o particular sequer participa do trâmite prévio à expedição do precatório, que ocorre apenas entre o Executivo e o Judiciário. Vale dizer, a Fazenda informa ao Tribunal sobre a existência de débitos, dentro do prazo decadencial de 30 dias, para que se efetive a compensação.
De se salientar que mesmo que tenha ocorrido cessão de créditos, será realizada eventual compensação de dívidas tributárias do credor originário.
Na prática ocorre o seguinte:
a) O juiz profere decisão garantindo ao titular original do crédito o pagamento através de um precatório, mas antes encaminhamento do precatório ao Tribunal, intimará a Fazenda Pública (ou outro ente devedor) para que informe, em 30 dias, sobre a existência de débitos constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas de parcelamentos (art. 6º da Resolução/CNJ 115/2010);
b) Na hipótese da Fazenda não se manifestar ou deixar de apontar débitos do credor original, perderá o direito de abatimento (art. 6º da Resolução/CNJ 115/2010);
c) Se a Fazenda apontar algum débito do credor original de natureza tributária constituído em seu favor o juiz decidirá a questão, após ouvir a parte contrária, decidindo em seguida (art. 6º da Resolução/CNJ 115/2010);
d) Caso a decisão entenda que a Fazenda realmente tem um crédito tributário contra o vencedor da ação, ou seja, caso se apure que o particular e a Fazenda são ao mesmo tempo credor e devedor um do outro, as duas obrigações serão extintas, até onde se compensarem e o juiz emitirá certificado de compensação para fins de controle orçamentário e financeiro, juntando-os ao processo de expedição do precatório (art. 6º da Resolução/CNJ 115/2010);
e) A compensação se operará no momento da efetiva expedição do certificado de compensação, quando cessará a incidência de correção monetária e juros moratórios sobre os débitos compensados (art. 6º da Resolução/CNJ 115/2010 com a redação da Resolução/CNJ n° 123/2010);
f) O procedimento de compensação, quando realizado no âmbito do Tribunal, não impedirá a inscrição do precatório apresentado até 1º de julho de um ano no orçamento do ano seguinte da entidade devedora, deduzindo-se o valor compensado, caso reconhecida posteriormente a compensação (art. 6º da Resolução/CNJ 115/2010 com a redação da Resolução/CNJ n° 123/2010);
g) A cessão de créditos não alterará a natureza comum ou alimentar do precatório e não prejudicará a compensação, sendo considerado, para esse fim, o credor originário (art. 6º da Resolução/CNJ 115/2010).
Isto faz com que os riscos da compra de precatórios sejam grandes, pois o cessionário pode vir a sofrer uma compensação forçada em decorrência de débito do cedente. E mesmo que o crédito do precatório tenha sido cedido a terceiro pelo credor, a Fazenda pode impugnar a cessão que o credor fez, opondo ao cessionário a compensação do crédito.
Em razão da possibilidade de compensação deve-se atentar quando da compra dos precatórios se o cedente tem dívidas junto ao fisco, pois se for o caso, provavelmente será realizada a compensação entre créditos e débitos, não podendo ser obstada a pedido do particular/credor. O dispositivo constitucional é claro no sentido de garantir a compensação contra o credor original (cedente).
Cabe ressaltar que a autorização para compensação trazida pela EC 62 pode causar inúmeros transtornos, pois na prática, existem muitos lançamentos realizados pela Fazenda com o desconhecimento do devedor.
Precatórios Oriundos de Outras Entidades
Há que se atentar também se o precatório objeto da cessão é originário de ações em que a Fazenda Nacional é parte, ou se outro ente federal é que compõem um dos pólos da ação (ex: autarquia federal). E isto porque a possibilidade de compensação de débito tributário com crédito decorrente de precatório de pessoa jurídica que não seja a Fazenda Nacional é matéria controvertida.
De fato, o Superior Tribunal de Justiça pela sua Primeira Turma firmouentendimento no sentido de que “é ilegítima a pretensão de se compensar débito tributário (devido à administração direta) com crédito de precatório adquirido de terceiros (por cessão) e da responsabilidade de entidade da administração indireta” (RMS 27.706/MG), conforme ementa que abaixo se transcreve a título exemplificativo:
“TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. PRECATÓRIO. DÉBITO DE ICMS. CRÉDITOS DECORRENTES DE AUTARQUIA. DER. AUSÊNCIA DE NORMA ESTADUAL. DÉBITOS TRIBUTÁRIOS DO ESTADO. PRECATÓRIO DE NATUREZA ALIMENTAR. INADMISSIBILIDADE. ART. 78, § 2º, DO ADCT. DECRETO ESTADUAL Nº 418/07. PRECEDENTES. IMPOSSIBILIDADE.
1. A compensação de débito fiscal estadual (ICMS) com crédito de precatório de natureza distinta e entre pessoas jurídicas diversas não é possível quando não previsto em legislação especial. Precedentes: RMS 26802/DF, Rel. p/ Acórdão Ministro Castro Meira, DJe 18/02/2010; RMS 31184/PR, Rel. MinistroCastro Meira, DJe 29/04/2010; RMS 30.229/PR, Rel. MinistroHumberto Martins, DJe 18/02/2010; EDRMS 29.806/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 28.10.09; AgRMS 30.347/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 26.11.09; RMS 24.450/MG, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 8/4/2008, DJe 24/4/2008. (AgRg no RMS 31.592/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/08/2010, DJe 27/08/2010).
No mesmo sentido: AgRg no RMS 31672, AgRg no RMS 31885 PR, AgRg no RMS 31962, AgRg no RMS 31123, AgRg no RMS 31137 PR, AgRg no RMS 31172 PR, AgRg no RMS 31443 PR, AgRg no RMS 31545 PR, RMS 31109 PR.
O Supremo Tribunal Federal ainda não tem jurisprudência consolidada quanto à possibilidade, ou não, de utilização de precatório para pagamento de tributos cedido por terceiro e oriundo de outro ente, que não as Fazendas Públicas.
Contudo, já existe precedente do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a circunstância de o devedor do precatório ser diferente do credor dos tributos que se pretende compensar, não é relevante para impedir a utilização de precatório para quitação de tributos, desde que ambos integrem a mesma esfera política. Assim, se o devedor do precatório for, por exemplo, uma autarquia federal, pode o precatório ser utilizado para quitar tributos federais.
Eis o precedente mencionado:
“DECISÃO:
1. Discute-se no presente recurso extraordinário o reconhecimento do direito à utilização de precatório, cedido por terceiro e oriundo de autarquia previdenciária do Estado-membro, para pagamento de tributos estaduais à Fazenda Pública.
2. O acordão recorrido entendeu não ser possível a compensação por não se confundirem o credor do débito fiscal — Estado do Rio Grande do Sul — e o devedor do crédito oponível — a autarquia previdenciária.
3. O fato de o devedor ser diverso do credor não é relevante, vez que ambos integram a Fazenda Pública do mesmo ente federado [Lei n. 6.830/80]. Além disso, a Constituição do Brasil não impôs limitações aos institutos da cessão e da compensação e o poder liberatório de precatórios para pagamento de tributo resulta da própria lei VOLTAR
A revolução terapêutica e, principalmente as manipulações sobre a vida, a utilização do ser humano e de seus elementos, trouxeram uma nova problemática à sociedade em geral e que já não se restringe apenas à comunidade científica ou filosófica, estendendo-se a discussão em todos os ramos, até mesmo pelo fato de todas estas descobertas estarem envolvidas com diversos interesses.
No campo do Direito, as descobertas fundamentais na atuação das ciências biomédicas são hoje examinadas ao lado dos Direitos Fundamentais devido ao furor da repercussão causada por este tema que paraleliza o vital equilíbrio entre a vida humana, a ética e os direitos dos cidadãos.
Sob seu estatuto epistemológico particular, o Direito também se ocupa da vida. Todavia, o cabedal jurídico ocidental não mais responde às novas e emergentes situações nos campos da Biologia, Medicina, Genética e até mesmo dos ramos das biociências criados em função do avanço tecnocientífico das disciplinas[1].
Emerge, daí, a necessidade da produção de novas normas jurídicas, especialmente que visem à proteção ao ser humano em seu aspecto psíquico e físico, que, consequentemente, implicarão em mudanças na legislação nacional já existente, novas interpretações, normas profissionais, jurisprudências e doutrina.
1. Desdobramentos legais
Antes de verificar quais os efeitos causados, no nosso ordenamento pátrio, cumpre ressalvar que, em decorrência dos avanços da medicina, os embriões humanos passaram a ser constituídos através de dois processos diferentes: in vivo, método biológico de fecundação ou por inseminação artificial, ou ainda por transferência intratubar de gametas; pode, igualmente, ser constituído in vitro, após colheita e mistura de óvulos e de espermatozóides, e depois ser transferido para um útero, evoluindo para o feto caso consiga terminar, com sucesso, a fase de implantação[2].
A possibilidade de pesquisar em embriões só é aqui equacionada porque existem embriões in vitro - os quais só têm razão de ser porque foi permitida ou tolerada a existência de embriões excedentes no uso das técnicas de reprodução assistida. Por isso, a ênfase dada no presente capítulo pertinente e remete para uma prévia e complexa questão em nível jurídico, o embrião excedente das técnicas de fertilização in vitro como sujeito de direito.
A indagação acerca de quando inicia, de fato, o indivíduo humano ontologicamente vivo, tem suscitado debate entre os diferentes ramos do conhecimento, na medida em que se retorna, de modo mais agudo e diante de fatos científicos.
Se a questão relativa ao início da existência do ser humano já se demonstrava tormentosa sob a égide ética, mesmo em se tratando de um ser concebido por meios naturais no ventre da mãe, potencializaram-se as dificuldades diante de fatos inéditos decorrentes da fertilização in vitro. Dentre as implicações advindas desse processo, destacam-se: a) possibilidade de um hiato entre o momento da fecundação e o da gestação, que pode se dar por tempo indefinido; b) existência de embriões crioconservados, denominados excedentes ou excedentários, que não serão utilizados para fins de reprodução; c) questionamento quanto ao momento a partir do qual pode-se considerar existente um embrião
Na esfera jurídica, havendo fertilização in vitro, cumpre distinguir, primeiramente, o embrião do nascituro, entendendo-se esse último como o ser humano concebido e já em gestação que, ao que se sabe até esta data, só pode ocorrer no útero de uma mulher.
Nesse sentido, o Direito sempre conferiu proteção jurídica ao nascituro, embora não haja consenso quanto a sua natureza jurídica, alinhando-se várias teses, conforme ressalta Dalmo Dallari:
[...] desde as que consideram tratar-se de direitos sem sujeito até as que entendem que há no caso só meros estados de vinculação, passando pela retroação da personalidade ao momento da constituição do direito e, finalmente, pelas que sustentam haver lugar entre a concepção e o nascimento a uma personalidade parcial, reduzida, fraccionária.[3]
Todavia, os embriões excedentários, que se encontram criopreservados e sem perspectiva de virem a ser implantados, não são abarcados por essa discussão, não gozando da mesma tutela jurídica a que fazem jus os nascituros.
Assim, o status do embrião criopreservado não se equipara a de um feto, pois só o poderia ser adquirido a partir da introdução do embrião no corpo de uma pessoa do sexo feminino, como tampouco se constitui, juridicamente, em nascituro.
O artigo 2° do vigente Código Civil dispõe que: “A personalidade civil da pessoa começa no nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”[4]
Tendo em conta que o objeto desta análise refere-se à possibilidade jurídica da pesquisa e terapia com células estaminais embrionárias, não está abarcado na presente discussão, por conseguinte, o nascituro, cujo conceito jurídico está ligado ao feto concebido no ventre materno.
Corrobora o sustentado, lição do mestre Silvio Rodrigues, que sintetiza: “Nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno.”[5] Assim, tem-se que a idéia civilista de nascituro está indissoluvelmente ligada à concepção no ventre materno.
O eminente Professor Fábio Ulhoa Coelho, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, explica isso com a sua habitual clareza:
O fato jurídico que define a natureza do embrião in vitro é sua implantação, ou não, in útero. Se ocorrer esse fato, tenderá a ter o destino biológico do ser humano (nascer, crescer, reproduzir e morrer). Será sujeito de direito desde a fertilização, caso venha a nascer com vida.[6]
Assevera o doutrinador, ainda, que no caso de não implantado in útero, o embrião terá destino e natureza jurídica distintos.
Logo, aquilata-se que a influência da evolução de ramos da ciência propiciou à abertura ou à confirmação de categorias jurídicas limitativas, enquanto outras categorias limitativas se fecham, mas nunca de maneira estanque. Assim a lei, embora não negue toda proteção, não reconheceu ao embrião a qualificação de pessoa jurídica e se encaminha por conseqüência no sentido da criação de uma terceira categoria.
De acordo com Cifuentes, para se formar um critério deve-se considerar o anacronismo dos conceitos, quando confrontados com a realidade presente. Refere ainda o autor que:
[...] nossos códigos somente atendiam ao direito natural da fecundação no seio materno; enfocavam um processo orgânico pleno de incógnitas e ignorâncias, quando não baseado em erros, misterioso e oculto. Recorria-se, portanto, a aproximações indutivas e a presunções temporais, hoje inaplicáveis, por inteiro, aos métodos extracorporais. A pessoa devia, pois, estabelecer-se sob conditio juris, com o manejo de ficções, ou então, de artifícios conceptuais da língua. Frente a estes resultados e sistemas, não é possível aplicar a analogia como propõem alguns autores sem maior meditação. Não se está frente a meras relações de caráter patrimonial, a fatos e ato manejáveis por ampliação ou pelo adágio mutatis mutandi; [...] se apresentam diferenças diametrais: na fecundação extracorpórea vêm à luz o momento exato da conjunção dos gametas, sua verdadeira constituição celular e a projeção formativa até o parto. Como é possível aceitar as presunções temporais de algo concreto e provado? Como estabelecer o conceito sobre a base de uma concepção induzida, frente a uma concepção programada e dada à luz em toda sua trajetória?[7]
Conclui o autor do texto que, por sua importância, mereceu transcrição, no sentido de abranger, o método extracorporal, um panorama que não permite sequer comparação, tanto para fixar o começo da sua personalidade, como sua formação e suas vicissitudes.
Desse modo, volvemo-nos, outra vez, ao ponto fundamental que é o ente humano, considerando-o sob todos os ângulos e sob todas as ciências. O centro do problema reside no fato do reconhecimento de direitos em virtude da presença de vida humana, ainda que inconsciente e dependente.
Deverá o Estado, portanto, primar pela proteção dos direitos fundamentais do homem e da mulher, cabendo ao Direito intervir a fim de reprimir abusos, como as experiências com seres humanos, estabelecendo regras de conduta a certas categorias profissionais, de modo a garantir o direito dos indivíduos e a perenidade da espécie humana.
Não se trata da tentativa de conter o avanço da ciência por simples tabus ou preconceitos, tendo em vista os grandes interesses sociais envolvidos, e sim, da busca de um critério de prudência e de responsabilidade para a aceitação das novas intervenções sobre o ser humano e sua descendência. Nesse sentido, a elaboração de normas jurídicas, a partir das reflexões éticas, é importantíssima para evitar que, no intuito de alcançar benefícios meramente individuais, profissionais ou econômicos, se extrapolem os limites éticos.
Posta nestes termos a questão da natureza jurídica do embrião humano, impõe-se examiná-la à luz dos princípios que estruturam o ordenamento jurídico brasileiro. Registre-se que não se cuida na hipótese de mera investigação para fins de classificação teórica. Muito ao contrário, a lacuna jurídica tem ensejado a coisificação do embrião humano.
2. Regulamentação jurídica da investigação em células-tronco embrionárias no sistema normativo brasileiro.
As limitações estabelecidas pelo Direito visam proteger os indivíduos e a sociedade, assegurando respeito aos direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu como valor fundamental a ser tutelado o direito à vida, assegurando o princípio da dignidade humana, o qual representa a base ou o fundamento de todo o ordenamento jurídico.
A proteção da pessoa na Constituição Federal de 1988, bem como a proteção do patrimônio genético da humanidade, demonstra que o Direito possui previsões que se aplicam diretamente aos avanços da ciência e, especialmente, da engenharia genética envolvendo a possibilidade de uso de células estaminais embrionárias derivadas de embriões humanos.
A abordagem jurídica deve ser feita, portanto, a partir dos princípios constitucionais, que visam assegurar à dignidade, inviolabilidade e identidade humanas. Em matéria constitucional, a proteção do ser humano é assegurada por meio uma gama de direitos individuais e coletivos que resguardam, entre eles, o direito à vida (artigo 5º, caput), a dignidade humana (art. 1º, inciso III), bem como, a saúde como direito de todos e dever do Estado (artigo 196).
Com efeito, tem-se que o respeito à pessoa humana é o marco jurídico básico, o suporte inicial que justifica a existência e admite a especificação dos demais direitos, garantida a igualdade de todos perante a lei (igualdade formal) e a igualdade de oportunidades no campo econômico e social (igualdade material).
Destaca-se, por conseguinte, o princípio da dignidade humana, vez que consiste num dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, conforme o artigo 1º, III, da Constituição Federal, e perpassa todas as discussões jurídicas e éticas, no que se refere à investigação em células estaminais embrionárias derivadas de embriões humanos. As implicações da pesquisa científica em células-tronco embrionárias, especificamente, recaem sobre o direito à vida e sobre a dignidade humana.
Observando que a lei representa um instrumento privilegiado para orientar o desenvolvimento das ciências da vida, o Direito, nesse contexto, deve-se indagar se o uso de células estaminais embrionárias coaduna-se com valores constitucionais com elas relacionados.
2.1 Relevância dos princípios constitucionais: o direito à vida e o direito à integridade física.
A questão que reveste o debate sobre a pesquisa em células tronco embrionárias, também chamadas células estaminais embrionárias humanas, e os limites jurídicos, conforme outrora exposto, deve ser tratada à luz dos compromissos jurídicos fundamentais, principalmente, o princípio da proteção à pessoa humana, que atribui unidade e sentido à ordem constitucional.
O artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 assegura a todos aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, o direito à vida:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.[8]
Como acentua Alexandre de Moraes, “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que constitui-se em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina.” [9]
Prossegue o autor ponderando que “[...] a Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência.”[10]
O direito à vida e à integridade física ocupam posição basilar no sistema de proteção ao ser humano e sua dignidade, consagrados no texto constitucional. São o ponto de partida, principalmente no que diz respeito aos limites a estabelecer para o poder das ciências biomédicas.
Mais do que um estado, a vida humana é entendida como um contínuo processo de auto-realização pessoal e social, cujo valor não é suscetível de ser objetivado É bem jurídico fundamental, uma vez que se constitui na origem e suporte dos demais direitos. Sua extinção põe fim à condição de ser humano e a todas as manifestações jurídicas que se apóiam nessa condição. Pontos fundamentais para o Direito são o respectivo início, desde a concepção, e o seu termo final, a morte.
Pressuposto básico da vida, a integridade física também o é da vida em sociedade e do Direito em si. O direito à integridade física compreende a proteção jurídica à vida, ao próprio corpo, quer na sua totalidade, quer em relação a tecidos, órgãos e partes do corpo humano suscetíveis de separação e individualização, quer no tocante ao corpo sem vida – o cadáver – ,e ainda, o direito e à liberdade de alguém submeter-se ou não a exame e tratamento médico.[11]
A proteção jurídica da vida humana e da integridade física tem como causa final a preservação desses bens jurídicos, do começo até o término da vida, do que decorre a importância em determinar-se o momento em que ela começa e se extingue.
O valor da vida e da integridade física tornam, por isso, extremamente importante a sua defesa contra os riscos de sua destruição ou de alteração da estrutura ou funcionamento normal do corpo humano, inclusive a simples ameaça contra a saúde.
O direito à integridade física compreende, também, a saúde individual, tanto orgânica como mental, mas não se confunde com o direito à saúde (CF, art. 196).
No que particularmente diz respeito aos direitos e deveres no contexto da tecnociência, o direito subjetivo que tem a vida humana, como bem jurídico, pressupõe três titulares do dever jurídico de respeitá-lo: a) o próprio indivíduo para consigo mesmo; b) as demais pessoas; e c) o Estado.
No campo da pesquisa, deve-se primar pelo respeito aos princípios gerais da bioética, quais sejam: da autonomia, da beneficência, do não-prejuízo e da justiça e eqüidade. Ao Estado, assiste o dever de respeitar a vida dos cidadãos (CF, art. 5º), e o dever de proteger-lhes a vida, com a utilização de todos os meios jurídicos necessários, assim como o dever de punir os autores de quaisquer atentados contra a vida humana, função típica do direito penal.
A essência da vida está na subjetividade, inexistindo, todavia, para a comunidade científica um conceito único de início da vida humana. Cabe ao direito, mediante um processo plural, transparente e democrático, definir a partir de que momento a vida será passível de proteção jurídica, mormente considerando que o texto constitucional não faz alusão ao estágio da vida humana, definindo tutela ao embrião ou nascituro.
Assim, o direito à vida, possui uma íntima ligação com à dignidade e à integridade física, ou poderia dizer, ainda, a plenitude da vida. Isto significa que o direito à vida não é apenas o direito de sobreviver, mas de viver dignamente.
2.2. Legislação infraconstitucional
O artigo 225, parágrafo 1°, nos incisos II e V, da Constituição Federal de 1988 estabelece a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético, bem como o controle da produção, comercialização, emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco de vida, à qualidade da vida e ao meio ambiente.
Em 24 de março de 2.005 foi publicada a Lei n.º 11.105, Lei de Biossegurança Nacional, regulamentando esses artigos. A política oficial brasileira, mudando um pouco a tendência que se apresentava no projeto que tramitava no Congresso Federal, de cunho extremamente limitador das possibilidades de pesquisas, incluiu o tema das células tronco, especialmente da investigação em embriões humanos, dando origem ao Diploma-Legal.
Evidencia-se, de tal sorte, que despontando do tema proposto por essa Lei da Biossegurança, cujo escopo previsto em sua ementa é de regulamentar o artigo 225 da Constituição Federal, que trata do Meio Ambiente, incluiu essa questão não sem importância, evidentemente, mas um pouco ‘deslocada’ ao que parece dentro do que deveria ser objeto da lei.
Nesse mister, o caput do artigo 1º do sobredito Diploma-Legal traz algumas considerações iniciais, estabelecendo como objetivo da lei, basicamente,
[...] normas de segurança, mecanismos de fiscalização sobre [...] organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente.[12]
Vislumbra-se, portanto, ser o objetivo básico da lei, em consenso ao espírito da ementa, de regulamentar o meio ambiente. Conquanto o tema central da Lei seja a pesquisa e fiscalização com os organismos geneticamente modificados – OGM, a Lei volta-se, repentinamente, a regulamentar a utilização de células tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia. Dizemos “repentinamente” porque esse tema não está sequer mencionado no artigo 1º que define os objetivos da Lei.
Porém, em que pese a relevância social do tema e a necessidade premente de legislação nesta área, observa-se que o legislador tratou da matéria de forma precária e deficiente, tudo sintetizando em breves passagens altamente criticáveis.
No artigo 5º do Diploma-Legal em tela, pretende-se regulamentar a possibilidade de utilização de células tronco embrionárias para pesquisa e terapia. Os embriões passíveis de utilização para tanto são os denominados embriões provenientes de fertilização in vitro. Entretanto, o art. 5º não menciona quais serão, especificamente, os embriões que poderão ser utilizados para a obtenção de células estaminais embrionárias, apenas determinando:
Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.[13]
Oportuno destacar, conforme enfatizado por Judith Martins-Costa et al.[14], que “[...] não existe qualquer critério cientifico que embase o estabelecimento do período de 3 (três) anos”. Acresce, novamente, “[...] a ausência de critérios relativos à coleta dos embriões, deixando-se em aberto a questão de saber o que são ‘embriões inviáveis’ e, se ‘inviáveis’, inviáveis para o quê.”.
O parágrafo primeiro do art. 5º denota como condições legais para a investigação em células estaminais embrionárias a inviabilidade dos embriões e o congelamento por no mínimo três anos, da data de publicação dessa lei, ou se já congelados na data de publicação dessa lei, depois de completarem três anos, contados a partir da data de congelamento. Em qualquer dos casos, faz-se necessária a aquiescência dos genitores e a aprovação do comitê de ética correspondente, de acordo os parágrafos 1º e 2º.
Não obstante à proibição genérica contida no parágrafo 3º do art. 5º, foram incluídas, ainda, no art. 6º outras atividades também consideradas proibidas.
No que tange aos aspectos penais, a Lei de Biossegurança instituiu, também, como crime a prática das condutas acima citadas, cominando sanções, ex vi dos artigos 24 e 25 do referido Texto Legal, que se transcrevem:
Art. 24. Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5o desta Lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.[15]
A repercussão desta lei foi imediata. Muitos dos estudiosos e cientistas classificaram como tímido esse diploma, justamente pelas condicionantes que impôs, principalmente a de ordem temporária ligada à criopreservação[16]. De outra sorte, os opositores à utilização de embriões em investigações manifestaram-se contrários à inovação legislativa, a pretexto de defenderem a vida, vislumbrada nesses embriões.
Se à arena jurídica atribui-se a responsabilidade ética, política e social dessa difícil decisão, a questão passa a assumir extraordinária relevância em face da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn n.º 3510)[17] proposta pelo então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, com o objetivo de obter do Supremo Tribunal Federal a declaração de inconstitucionalidade do artigo quinto e parágrafos da Lei de Biossegurança. A ação tem como fundamento a violação do direito à vida e do princípio da dignidade humana consagrados na Constituição. Apresenta como tese central a afirmação de que “a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação”.
Compulsada a petição do procurador, tem-se que, além da invocação ao artigo 5º da Carta Federal, ele se baseia em textos científicos, articulando que a vida começa na concepção, seguindo orientação religiosa predominante. O embrião, segundo o texto da petição, é ser único e indivisível, baseado nos trabalhos da Dra. Elizabeth Kipman Cerqueira, Prof. Dalton Luiz de Paula Ramos e da Profa. Alice Teixeira Ferreira, segundo a qual “o desenvolvimento do ser humano vai da fecundação à morte, e a pesquisa destruiria o embrião”.
A matéria encontra sub judice, à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Todavia, independentemente do posicionamento a ser adotado, o passo dado pela Lei 11.105 é conseqüência natural do que vem se verificando no mundo, na tentativa de se coadunar as leis à evolução da ciência.
2.2.1. Lei de Biossegurança: críticas necessárias.
Sem prejuízo do exposto sobre a Lei n.º 11.105/05, não se pode deixar de notar a outras situações que ensejam admoestação ao texto legal.
Primeiramente, compulsados os artigos 5º e 6º, inciso III, do Diploma-Legal em apreço, verifica-se o descuido e o modo tecnicamente impreciso do legislador em tratar questões sérias que permeia a Lei, decorrendo relevante falha normativa que proporciona contradição quanto a real possibilidade de pesquisa em embriões humano. Nesse aspecto, bem arrazoou Ivan Ricardo Garisio Sartori:
[...] não se ignora ser intrincada a redação da Lei de Biossegurança ou mesmo conter ela contradição em ponto fundamental, como permitir a pesquisa e a terapia com células embrionárias, ao mesmo tempo em que proíbe engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano (art. 6º, inciso III), contradição essa que mais se destaca se sopesada a definição constante do art. 3o, inciso V, atinente ao Organismo Geneticamente Modificado.
Numa visão leiga da ciência genética e ressalvado engano, parece-me que essa falha, própria da complexidade e da novidade que cerca o tema, está a merecer reparo, à luz de informações técnicas mais consistentes, ou, quando não, maior clareza redacional.[18]
Outra relevante questão diz respeito ao parágrafo 1º do artigo 5º. Ao estipular a necessidade do consentimento dos genitores para a pesquisa com células estaminais embrionárias, supondo-se que os embriões têm genitores, se ingressaria num intrincado campo jurídico, que é o de estabelecer se os embriões são “pessoas”, tendo, portanto, ascendentes, pai e mãe. Desse modo, insurgem, igualmente, complicadas questões práticas, como na hipótese de os genitores dos embriões estiverem desaparecidos, em lugar incerto e não-sabido, ou ainda dissolvido o vínculo conjugal, ou simplesmente abandonado os embriões, a questão do consentimento fica dubitável[19]. Deverá ser criada uma presunção de consentimento?
Pode-se, ainda, mencionar outras situações, tais como o tema da comercialização de gametas e da possibilidade ou não de patenteamento de linhagens de células estaminais adultas ou embrionárias.
Com efeito, a questão jurídica não está definida. A lei não está clara. A ausência de diretrizes a regrarem as questões suscitadas, impedem a adequada compreensão dos limites e prerrogativas estabelecidos na própria Lei com relação ao uso de embriões.
2.3. Legislação correlata.
Muitos dos questionamentos levantados persistem, mesmo em face da aprovação da Lei n.º 11.105/05 e dos princípios consagrados na Carta Magna. Neste momento, porém, é possível recorrer a algumas normas e leis federais correlatas que, se não resolvem a questão em sua totalidade, pelo menos impedem que abusos sejam cometidos, fornecendo subsídios para nortear a prática clínica no uso das tecnologias reprodutivas. A seguir, faremos referência a algumas delas.
No que concerne à aplicabilidade do Código Civil, conforme elucidado no item 1 acerca da idéia jurídica de nascituro a sua perspectiva de vida no seio do ventre materno, tem-se que inapropriada, portanto, a invocação do artigo 2° do Código Civil na abordagem do tema.
Abonando esse entendimento, na jornada de estudos promovida pelo Superior Tribunal de Justiça, sobre o Novo Código Civil, chegou-se à conclusão (n° 2) de que “Sem prejuízo dos direitos da personalidade nele assegurados, o art. 2° do Código Civil não é sede adequada para questões emergentes da reprogenética humana, que deve ser objeto de um estatuto próprio.” [20]
A conclusão obtida por esse grupo de estudos foi o de que as novas questões jurídicas, emergentes do Biodireito, não podem ser resolvidas pelo teor do artigo 2° do Código Civil. Deu-se ainda a sugestão de que sejam objeto de uma regulação própria, ficando aí o convite ao legislador.
Por conseguinte, não há atualmente no direito civil brasileiro, disciplina legal quanto ao embrião humano, na medida em que, pelas razões expostas, tanto o Código Civil de 1916, quanto o de 2002, contêm dispositivos que parecem aplicáveis apenas ao nascituro, ou seja, ao ser concebido e já em gestação no útero de uma mulher.
Em âmbito penal, o Código Penal Brasileiro no seu artigo 124 pune o aborto provocado em si mesma ou consentido que outrem lho provoque a partir do momento da concepção. Este ser que a legislação penal deseja manter vivo com essa tutela é o nascituro: o fruto da união de duas células germinativas que constituíram o ovo, o qual se desenvolverá até o parto – sendo feto – e, após este, continuará se desenvolvendo até que aquele indivíduo chegue à morte. Em qualquer fase da gestação em que seja provocada dolosamente a morte do nascituro, ter-se-á o crime de aborto.
Dessa forma, não há grande polêmica no âmbito penal sobre a existência de vida no ser que se desenvolve no ventre materno. Evidencia-se, então, que ao ser concebido, o nascituro, é salvaguardado um direito: o direito à vida, de forma que a afronta a este direito constitui crime – não o de homicídio, porque se encontra ainda no ventre materno; mas o de aborto. Discorre José Afonso da Silva[21] acerca do direito à vida e à existência:
[...] constitui-se no direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa razão que se considera legítima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade da salvação da própria.
Toda esta conjuntura abarca perfeitamente a discussão em torno daquele ser que resultou de uma concepção intra-uterina. De fato, o Código Penal em vigor, por ser de 1940, não poderia estar dirigindo-se a outro tipo de embrião que o in vivo, resultante da união dos gametas em útero materno.
Logo, a prática da fertilização in vitro não é sua contemporânea e, por isso, a tutela da vida existente também nos embriões laboratoriais não poderia ter sido considerada pelo legislador como algo penalmente relevante porque não era um fato social da época.
Os artigos 124 a 126 do Código Penal brasileiro referem: “Provocar aborto”. A especificação de ter havido a nidação do ovo ou zigoto em útero materno não é uma especificação legal, mas doutrinária. Isso ocorre porque a doutrina se vale do fato de que o Código também usa a expressão “gestante”, e só haverá gestante se existir gravidez.
Logo, não cabendo em Direito Penal o uso de analogia para fins de tipificação, jamais poderiam ser comparadas a criopreservação e a gestação como meio pelo qual se mantém vivo o conceptus. Assim, sopesando-se não ser conferida a mesma esfera de proteção jurídica dos embriões in vivo aos embriões constituídos através do processo in vitro e que estão criopreservados, possível deduzir pela inexistência do tipo penal.
A despeito da tese de que a interrupção da vida de um embrião in vitro seria um fato antijurídico, transcreve-se lição do mestre Damásio de Jesus: “Não basta que o fato seja antijurídico. Exige-se que se amolde a uma norma penal incriminadora. Daí a questão da adequação típica, que consiste em a conduta subsumir-se no tipo penal.”[22]
Por sua vez, o Código de Ética Médica, a par dos princípios constitucionais e normas positivas, estabelece em seu artigo 7º que o “médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente”.[23], jamais utilizando “seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir ou acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”.[24]
Todavia, considerando a questão da destinação de embriões excedentes, originados do processo de fertilização in vitro, que permanece sem um marco jurídico específico, e, assim, até que o Congresso Nacional delibere sobre o tema, as clínicas que realizam reprodução assistida se vêem obrigadas a manterem os citados embriões congelados indefinidamente, o Conselho Federal de Medicina, se viu compelido a editar a Resolução CFM 1.358/92, impondo limites éticos.
Segundo essa resolução, todo esse material, ali significativamente denominado de oócitos e pré-embriões (I, item 6; IV; V, itens 1 e 2; e VI), não era passível de descarte ou destruição (V, item 2), o que, com o advento da atual Lei de Biossegurança, passou a ser permitido, como se infere principalmente do art. 1o e seu parágrafo 1º; e 6o, incisos V e VI, do invocado Diploma-Legal. Essa norma, entretanto, só diz respeito ao exercício da profissão de médico, não tendo poderes para obrigar os cidadãos que não praticam a medicina a obedecê-la.
Por fim, cumpre salientar que embora o ordenamento jurídico brasileiro seja dos mais completos, considerando-se a Constituição do país e a legislação infraconstitucional, não se pode ignorar a velocidade com que as transformações no campo da biotecnociência ocorrem, com seus inegáveis reflexos sociais e, portanto, morais, impõem sérias dificuldades aqueles que nelas buscam orientação e respaldo. Apesar das tentativas de adequação à dinâmica social, como no caso recente da Lei de Biossegurança, diversas questões, aí incluídas as decorrentes da falha legislativa ao elaborar o Diploma-Legal, não são abordadas ou ocorrem de forma incipiente, sem a devida contribuição plural.
A questão é, portanto, tormentosa para todos, do ponto de vista jurídico. E, em que pese todas as circunstâncias expostas, a legislação pátria se situou dentro deste polêmico e atual tema, não bloqueando a pesquisa científica.
No entanto, e concluindo, independente da decisão que venha a tomar o Supremo Tribunal Federal, seja pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, o tema não deixará de ser rico em importância, que por si só, justificam os debates pela imensa relevância não só científica, mas também por razões éticas, econômicas e pelos efeitos que poderá provocar em muitas áreas do conhecimento. E não se pode olvidar que a questão jurídica não está definida, pois a lei não está clara.
[1] XAVIER, Elton Dias. A Bioética e o conceito de pessoa: a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa. 2000, p. 223.
[2] SERRÃO, Daniel. Estatuto do embrião. Bioética – Revista de Bioética e Ética Médica publicada pelo Conselho Federal de Medicina. 2003, p. 110.
[3] DALLARI, Dalmo de Abreu. Bioética e Direitos Humanos. In: Iniciação à bioética. COSTA, Sérgio Ferreira (Coord); GARRAFA, Volnei (Coord); OSELKA, Gabriel (Coord). 1998, p. 235.
[4] BRASIL. Novo Código Civil – Lei 10.406/2002, em vigor a partir de 11.01.03. Yussef Said Cahali (Org.), 2002. “artigos 1º e 2º”.
[5] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 2000.
[6] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. 2003.
[7] CIFUENTES, Santos. El embrión humano. Principio de existencia de la persona. Editorial Astrea. Disponível em: <http://www.astrea.com.ar/libreriavirtual/virtual/autor.jsp?authorCode= 9500>. Acesso em: 20 ago. 2005.
[8] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil – 1988. 2001. “Art. 5º, caput”.
[9] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2000, p. 61.
[10] Id., ibid., p. 62.
[11] AMARAL. Francisco. O poder das ciências biomédicas: os direitos humanos como limite. Disponível em: < http://www.ghente.org/publicacoes/moralidade/direitos_humanos.htm >. Acesso em: 20 ago. 2005.
[12] BRASIL. Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005. Disponível na internet: <https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>. Acesso em: 05 ago. 2005. “Artigo 1º, caput”.
[13] BRASIL. Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005. Disponível na internet: <https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>. Acesso em: 05 ago. 2005. “Artigo 5º, caput”.
[14] MARTINS-COSTA J., FERNANDES M., GOLDIM JR. Lei de Biossegurança - Medusa Legislativa? Jornal da ADUFRGS. maio 2005, p. 19-21.
[15] BRASIL. Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005. Disponível na internet: < https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>. Acesso em: 05 ago. 2005. “Artigos 24 e 25”.
[16] SARTORI, Ivan Ricardo Garisio. Célula-tronco. O direito. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 781, 23 ago. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp? id=7186>. Acesso em: 24 ago. 2005.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3510. Autor: Procurador Geral da República Cláudio Fonteles. Brasília, 16 maio 2005. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/fonteles/manifestacoes/adi/documentos/adi3510celulatronco.pdf> Acesso em: 20 jul. 2005.
[18] SARTORI, Ivan Ricardo Garisio. Célula-tronco. O direito. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 781, 23 ago. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp? id=7186>. Acesso em: 24 ago. 2005.
[19] MARTINS-COSTA J., FERNANDES M., GOLDIM JR. Lei de Biossegurança - Medusa Legislativa? Jornal da ADUFRGS. maio 2005, p. 19-21.
[20] ROSADO, Ruy (Coord.). Enunciado n. 2 aprovado na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, 11-13 set. 2002. Disponível em: <www.cjf.gov.br/revista/enunciados/ enunciados.htm>. Acesso em: 29 jul. 2005.
[21] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 2002, p. 197.
[22] JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 2002, p. 269.
[23] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM n. 1.246, de 8 de janeiro de 1988. Código de ética médica. 6. ed. Brasília: CFM, 2001. Disponível em: <http://www.portal medico.org.br/codigo_etica/codigo_etica.asp?portal=>. Acesso em: 30 jul. 2005. Art. 7º, caput.
[24] Id., Ibid.
Nicole da Silva Paulitsch : Advogada, especialista em Direito Empresarial pela PUC/RS e Graduada em Direito pela Fund. Univ. Federal do Rio Grande/RS
(…)
Dou provimento ao recurso extraordinário, com fundamento no disposto no art. 557, § 1º-A, do CPC. Custas ex lege. Sem honorários”. (RE 550400, Relator(a): Min. EROS GRAU, julgado em 28/08/2007, publicado em DJ 18/09/2007 PP-00080 REPUBLICAÇÃO: DJe-108 DIVULG 21-09-2007 PUBLIC 24-09-2007 DJ 24/09/2007 PP-00119).
Precatórios de Natureza Alimentar
A Constituição Federal define precatório de natureza alimentar no seu artigo 100, § 1º nos seguintes termos: “os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo”
Os precatórios de natureza alimentar têm a vantagem de ter preferência de pagamento sobre os precatórios comuns. Contudo, estes precatórios têm a seguinte desvantagem, não existe ainda consenso nos Tribunais Superiores a respeito da possibilidade de se utilizá-los para compensação com débitos tributários (art. 16 da Resolução/CNJ 115/2010).
O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência consolidada no sentido de afastar pretensão de empresas utilizarem precatórios com o intuito de compensar tributos.
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, não obstante o § 2º do artigo 78 do ADCT determinar que os precatórios relacionados no caput terão poder liberatório do pagamento de tributos, o caput do mesmo artigo 78 exclui os créditos de natureza alimentar e de pequeno valor. Assim, a compensação tributária com precatórios de natureza alimentar é hipótese não prevista no art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que não a permite.
Eis algumas ementas da jurisprudência mencionada:
“CONSTITUCIONAL – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – ART. 78, § 2º, DO ADCT – PODER LIBERATÓRIO DO PAGAMENTO DE TRIBUTOS – CRÉDITO DE NATUREZA ALIMENTAR.
1. As parcelas do precatório submetido à moratória do art. 78 do ADCT, se não liquidadas até o final do prazo previsto, passam a ter poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, nos moldes do § 2º do mesmo dispositivo constitucional.
2. À luz do referido enunciado normativo, ressalvados os créditos de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os previstos no art. 33 do ADCT e suas complementações e ainda os que já tiverem os recursos liberados, os precatórios que forem objeto de parcelamento e cujas parcelas não forem pagas até o final do prazo constitucional, terão eficácia liberatória do pagamento de tributos .
3. Hipótese em que os créditos contidos no precatório objeto de compensação originam-se de honorários de sucumbência em ação indenizatória, qualificando-se como créditos alimentares.
4. Recurso ordinário em mandado de segurança não provido”.
(RMS 31.160/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 08/09/2010)
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO NO MANDADO DE SEGURANÇA. COMPENSAÇÃO DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS COM CRÉDITO DE PRECATÓRIO VENCIDO, E NÃO PAGO. NATUREZA DAS AÇÕES DE ONDE ORIGINADOS OS PRECATÓRIOS. ART. 78, § 2º, DO ADCT. CRÉDITO DE NATUREZA ALIMENTAR. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO STJ.(…)
2. A atual jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que não há falar em poder liberatório do pagamento de tributos, nos termos do art. 78, § 2º, do ADCT, quanto aos precatórios de natureza alimentar. Esse entendimento decorre da literalidade do art. 78, § 2º, do ADCT, cujo teor, explicitamente, ressalva os créditos de natureza alimentícia.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg no RMS 29.544/PR, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/04/2010, DJe 27/04/2010)
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADIN 1.662/SP, decidiu pela inaplicabilidade do artigo 78 do ADCT aos precatórios alimentares. Em vista disso, em tese os precatórios de natureza alimentar não teriam poder liberatório para pagamento de tributos, visto que este poder é conferido pelo artigo 78, § 2º do ADCT.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral dos temas relativos à aplicabilidade imediata do art. 78, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT e à possibilidade de se compensar precatórios de natureza alimentar com débitos tributários (RE 566349 RG). Assim, é possível que o Supremo venha a entender que os precatórios de natureza alimentar adquiridos de terceiros podem ser cedidos e utilizados com efeito liberatório para pagamento de tributos, mas ainda não há qualquer segurança quanto a isso.
Descontos com honorários de advogado, perito e retenções de tributos
Deve se atentar que, parte dos créditos decorrentes de uma ação judicial podem pertencer à outras pessoas, que não o vencedor da ação, tais como advogados, peritos, dentre outros.
Com efeito, além dos honorários de sucumbência que normalmente já estão especificados no processo, ainda pode haver um fator surpresa, pois antes da expedição do precatório, o advogado que participou da ação tem o direito de juntar aos autos o contrato de honorários firmado com o seu cliente e, nesta hipótese, o juiz irá determinar que lhe sejam pagos diretamente os valores a que faz jus, por dedução da quantia a ser recebida pelo seu cliente.Esta possibilidade afeta diretamente o montante a ser pago no precatório, pois pode alterar consideravelmente o valor do crédito constante do precatório.
Além disso, quando do pagamento do crédito decorrente do precatórios, são retidos valores a título de imposto de renda na fonte, bem como os valores a título de contribuição previdenciária.
Finalmente se esclarece que os precatórios serão expedidos individualizadamente, por credor, ainda que exista litisconsórcio.