Acionistas invocam direitos e levam empresas a mudar
A união da AmBev com a belga Interbrew, anunciada no início de março, marcou uma nova postura dos acionistas minoritários. Estes tentam, pela primeira vez desde a reforma da Lei das S.As., há três anos, esboçar uma reação mais organizada para fazer valer seus direitos, mas foi no episódio AmBev que conseguiram levar os controladores da empresa a dar explicações públicas sobre a transação. Em reunião realizada na Bovespa, dia 16 de março, executivos da companhia procuraram responder às questões levantadas pelos minoritários. Não houve mudanças na operação, mas ficou evidente que os tempos de passividade estão ficando para trás.
“A vantagem do controlador vis-à-vis o preferencialista ficou transparente e clara como nunca”, enfatiza Thomas Tosta de Sá, ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), diretor da Mercatto e coordenador do Plano Diretor do Mercado de Capitais. “Já se sabia que os minoritários tinham tratamento pouco adequado, mas a reação deles no caso da AmBev mostra de forma clara que a situação está mudando.”
Mercados de capitais precisam, para crescer, de milhões de pessoas dispostas a comprar ações, participar dos lucros das empresas e, naturalmente, ser muito bem tratadas, não só no dia-a-dia mas também na hora de transferência do controle, para que seu capital não se dilua. A existência de duas classes de ações – ordinárias e preferenciais – é, porém, um obstáculo, pois as preferenciais são menos protegidas do que as ordinárias.
Mas só a ação dos próprios minoritários, enfatiza Tosta de Sá, permitirá mudar sua situação. “É verdade que a Lei das S.As. tem falhas no tratamento a esse acionista”, reconhece. “Mas quem tem de demandar melhoria na qualidade das ações preferenciais são esses acionistas, é o investidor. É dessa forma que a situação vai mudar para melhor. A responsabilidade é deles, e do mercado de capitais, dizer o que se deve fazer para aperfeiçoar o quadro atual.”
Eliane Lustosa, que foi diretora financeira e de investimento da Petros (o fundo de pensão da Petrobrás) e é hoje conselheira do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), concorda com Tosta de Sá. “A reação é extremamente positiva para o mercado. É preciso acabar com o privilégio dos controladores”, afirma ela. Ainda hoje, por lei, “acionistas com menos de 20% do capital total podem controlar uma empresa aberta”.
A transação da AmBev com a Interbrew mostrou, na prática, essa realidade. Sociedades anônimas podem ter seu capital formado por 2/3 de ações preferenciais (sem direito de voto nas assembléias) e 1/3 de ações ordinárias (com direito de voto). Ou seja, com metade mais uma das ações ordinárias (16,67% do total das ações) é possível controlar uma empresa.
Isso não mudará tão cedo. Nas empresas que já são abertas, apenas nas novas emissões a metade, no máximo, será de preferenciais e a outra metade, no mínimo, de ordinárias.
É precária a proteção aos preferencialistas – os titulares de ações preferenciais. Estes detêm mais de 22 bilhões de ações da AmBev e nada haviam ganhado com a transação nos dias seguintes ao negócio. Já os titulares de ações ordinárias têm direito de receber 80% do valor pago aos controladores. “Os especialistas conheciam esse quadro, mas os investidores nem sempre estão atentos”, lembra Eliane. “Com esse caso, o cenário passou a mudar. Não é só pela legislação que haverá mudanças na situação dos minoritários. A mudança está vindo com a conscientização desses acionistas, que devem se tornar mais seletivos em suas decisões de investimento e, assim, exigir modificações.”
Ante a reação dos minoritários, a direção da AmBev procurou se justificar. “Não soubemos explicar direito a operação”, desculpou-se o diretor de Relações com Investidores da empresa, Felipe Dutra. A questão é mais complexa. Os minoritários, realmente, avaliaram a transação de maneira bem diferente da direção da AmBev. Num lado, Dutra calcula que o valor de mercado da companhia (que corresponde às cotações em Bolsa, multiplicadas pelo número total de ações) seria de US$ 18,8 bilhões na hora da venda do controle. No outro, constatou-se que nos dias que se seguiram à transação o valor de mercado da empresa foi reduzido em cerca de US$ 5 bilhões.
Há uma diferença importante no caso AmBev. Do capital da empresa participam acionistas com poder de fogo, como a Previ, o maior fundo de pensão do País, com patrimônio de R$ 57,8 bilhões, em dezembro de 2003. A Previ é uma minoritária com 3 bilhões de ações preferenciais da AmBev e calcula ter perdido R$ 1 bilhão na venda do controle. Estuda abrir um processo, pedindo providências ao órgão máximo de fiscalização do mercado de capitais, a CVM.
A Previ é, portanto, um “grande minoritário”, como são conhecidos os acionistas que, mesmo estando fora do grupo de controle, têm peso suficiente para questionar as iniciativas dos controladores. “A reação dos minoritários começou por esse grupo, há três anos”, recorda Eliane Lustosa. Então na diretoria da Petros, ela foi uma das primeiras a participar de embates semelhantes. “Mas hoje eles ganharam muitos outros aliados, incluindo investidores individuais.”
Os investidores individuais (pessoas físicas) ajudam a fazer pressão para mudar as regras, em favor dos minoritários. “Hoje temos mais de 200 casos de minoritários protestando contra o que consideram abuso dos demais acionistas”, afirma Waldir Luiz Corrêa, presidente da Associação Nacional dos Investidores do Mercado de Capitais (Animec), a mais visível das organizações defensoras dos minoritários.
Na CVM, o aumento das interpelações dos minoritários contra atos dos controladores já foi percebido. Em março, havia 56 processos de reclamação ou consulta desses acionistas. As principais queixas são em relação aos dividendos (cálculo ou distribuição) e abuso de poder dos controladores.
Grande parte desses casos ganhou destaque no início deste ano. Em janeiro, por exemplo, quatro acionistas da Rhodia-Ster, da área petroquímica, conseguiram uma liminar na Justiça para impedir que o controlador votasse em assembléia convocada pelos minoritários para abrir processo contra os administradores. Esses minoritários, que haviam conseguido evitar o fechamento de capital da Rhodia-Ster no ano passado, são duas pessoas jurídicas, a Hedging-Griffo e a Sumatra Cafés. A liminar foi cassada em fevereiro e os executivos escolhidos pelos controladores (o grupo italiano M&G – Mossi & Ghisolfi International) voltaram a ocupar suas posições no conselho. Mas os minoritários insistem em questionar as práticas dos controladores, principalmente em relação às taxas de juros cobradas em empréstimos entre a Rhodia-Ster e a M&G.
Até direito a voto – Há outros exemplos de reação dos minoritários. Na Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina, por exemplo, eles chegaram a conseguir na Justiça liminar que conferiu direito de voto aos titulares de ações preferenciais nominativas. A liminar foi suspensa, mas a questão continua em discussão na Justiça.
O exemplo da Cataguazes é analisado pela advogada Ana Tereza Basílio, do escritório Trench, Rossi e Watanabe, que representa um dos minoritários (o Fondelec Essential Service Growth Fund). A obtenção do direito a voto, na ocasião da liminar, esclarece, aconteceu com base na Lei das S.As. “A legislação prevê esse direito quando a empresa deixa de pagar dividendos por três exercícios”, afirma Ana. Os minoritários argumentam que isso aconteceu na Cataguazes, mas os controladores (a família Botelho) alegam ter pagado dividendos intermediários.
Também na Cataguazes há casos de “grandes minoritários”. O grupo dos preferencialistas, além do Fondelec (com 13% do total dessas ações da empresa), inclui a Funcef (15,1% das preferenciais), a Alliant Energy Holdings do Brasil (50,4% desses papéis) e mais 13 mil investidores com 8% das ações. Os minoritários tentam pôr em discussão mudanças estatutárias feitas pelos controladores. “Para aprovar as modificações, seria necessário ter realizado uma assembléia especial dos preferencialistas, como prevê a Lei das S.As.”, diz Ana Tereza.
Outra ação dos minoritários alcançou repercussão. Foi a reclamação da Animec à CVM quanto à venda da Embratel para o grupo mexicano Telmex, ainda não concluída. A Animec quer que a CVM determine à Embrapar, controladora da Embratel, a divulgação de fato relevante para esclarecer o motivo da recusa de uma oferta superior à da Telmex, evitando o risco de prejuízos para os minoritários.
Mais um degrau – A fase de reações em série dos minoritários é parte de um processo marcado por altos e baixos no tratamento a esses acionistas, nota Thomas Tosta de Sá. “Os controladores ganharam força no início dos anos 70”, lembra. “Na época, era preciso fortalecer o empresário nacional, que era a parte mais fraca do tripé formado também pelas estatais e por companhias estrangeiras. O empresário brasileiro passou a contar com linhas do BNDES para competir com os outros dois gigantes e, além disso, fez-se uma revisão da legislação para dar alavancagem ao controlador.” Para fortalecer a empresa nacional, a lei permitiu controlar a empresa com poucas ações ordinárias.
Com a ampliação do mercado, as empresas passaram a dar mais informações aos acionistas, sob a pressão dos fundos de pensão, que são grandes investidores em ações, e, a partir dos anos 90, dos investidores estrangeiros. “As mudanças tiveram influência direta na situação dos minoritários, mas estes não alcançaram o tratamento que reivindicavam”, avalia Tosta de Sá. “Quando aconteceu a revisão da Lei das S.As., um dos pontos que mais se defendiam era a adoção de ações ordinárias, exclusivamente. No entanto, a tese não vingou.”
Novo Mercado – Um alento para os minoritários surgiu com a criação, pela Bovespa, do Novo Mercado, com a definição de níveis de governança corporativa que agregam valor econômico às ações. Mas falta muito por fazer. Reformada em 2001, a Lei das S.As. passou a prever, nas transferências de controle, que as ações ordinárias fariam jus a 80% do prêmio recebido pelos controladores, o chamado tag along. Em outros países, como nos Estados Unidos e no Reino Unido, os compradores pagam o mesmo valor aos minoritários e controladores. No Brasil, poucas empresas incluem o tag along aos preferencialistas em suas regras internas, como a siderúrgica Gerdau e o Banco Itaú.
“Os movimentos dos investidores são os que mostram melhores resultados”, nota Thomas Tosta de Sá. Parece ser este o melhor caminho para a mudança das regras, em favor dos minoritários. Em outros países, a pressão deu resultado. O México mudou a legislação em 2001 para instituir o tag along a todos os minoritários.
Em parte, será apenas a reconquista de direitos antigos. “Antes de 1997 o tag along era de 100%”, lembra Eliane Lustosa. “A mudança aconteceu com as privatizações, a regra mudou e a transferência do prêmio de controle passou a ser de 80%. Com a conscientização dos investidores, pode-se voltar ao quadro anterior, o que pode atrair mais aplicadores para o mercado de capitais.
\”Seria ideal que todas as ações passassem a ser ordinárias, ou seja, que todos os acionistas passassem a ter direitos iguais. É o que defende, por exemplo, Waldir Corrêa, da Animec. Antes disso, o importante para os minoritários é que esses temas estejam em discussão. “O tema envolve investidores de porte e milhões de pessoas físicas”, diz Corrêa. “No caso da telefonia, por exemplo, o número de minoritários pessoas físicas é enorme (no passado, quem comprava um telefone também adquiria ações da companhia que vendia a linha). E existem os milhares de participantes nos fundos da Petrobrás e da Vale do Rio Doce que usaram recursos do Fundo de Garantia.”