O chinês naturalizado brasileiro Chao En Ming chega diariamente à tarde para trabalhar na Solidez CCTVM, em São Paulo, corretora que criou em 1992. Médico de formação, profissão que exerceu por 15 anos, Chao especializou a corretora em negociação de ações na Bolsa de Valores e de títulos públicos e privados. Essa seria apenas mais uma história profissional no mercado financeiro se, em agosto do ano passado, Chao não tivesse sido condenado à inabilitação temporária, pelo período de dez anos, por uso de práticas “não equitativas” — termo que significa favorecer irregularmente clientes de uma corretora ou a si próprio, em detrimento de outros. O processo administrativo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) foi aberto em 2006, relacionado a supostas irregularidades envolvendo a Fundação de Assistência dos Empregados da Companhia Energética de Brasília (Faceb) entre 2001 e 2003, e julgado apenas em agosto do ano passado.
Chao recorreu contra a decisão ao Conselhinho, como é chamado o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), ligado ao Ministério da Fazenda, o que suspendeu a inabilitação até o julgamento, sem data para ocorrer. Chao, claro, está em seu direito de recorrer até a última instância e provar sua inocência. Seu caso, porém, ilustra um problema que afeta o mercado financeiro e de capitais brasileiro: a morosidade dos trâmites de processo administrativo, o que se reflete não apenas nas inabilitações, mas também em pagamento de multas.
Desde 2008, a CVM puniu com inabilitação — pena aplicada apenas para casos julgados graves ou de reincidência de irregularidades dos envolvidos — 24 pessoas e empresas que atuam no mercado financeiro, entre administradoras de carteiras, administradores de empresas e conselheiros. Um levantamento mostra que 15 deles recorreram contra a decisão no Conselhinho, o que implica a suspensão automática da punição até o novo julgamento. Uma parte segue atuando no mercado. Já o número de absolvições no período chegou a 878.
De acordo com Daniel Tardelli Pessoa, sócio do escritório Levy & Salomão Advogados, mesmo nos casos de inabilitação em que o punido não recorre, o administrador pode simplesmente passar a atuar numa empresa de capital fechado, que não está sob a área de fiscalização da autarquia.
— Claro que é um direito de se recorrer das decisões. E inabilitar alguém de praticar sua profissão é algo muito sério. Mas muitos vão discutir o resultado de seus processos até no Judiciário. Isso coloca o órgão regulador num papel menor do que poderia ter — diz Pessoa.
Reduções de pena
Entre os punidos na CVM, Luiz Gonzaga Murat Junior e Romano Ancelmo Fontana Filho foram inabilitados em 2008 a atuar como administradores de empresas de capital aberto por cinco anos num caso de uso de informação privilegiada na negociação com American Depositary Receipts (ADRs) da Perdigão no mercado americano, no período da oferta hostil de compra feita pela Sadia. Murat Junior recorreu ao Conselhinho e conseguiu reduzir sua pena de cinco anos para dois anos de afastamento do mercado. Ele trabalha atualmente numa produtora de grãos sediada em São Paulo. Já Fontana Filho não recorreu.
Na própria CVM, o prazo médio de julgamento de processos administrativos sancionadores em geral cresceu nos últimos anos: era de 701 dias em 2011 e passou a 794 dias neste ano, segundo dados levantado pelo escritório Levy & Salomão Advogados. Dos 21 processos administrativos sancionadores julgados em 2013, sete se referem a procedimentos iniciados entre 2006 e 2009. Segundo ex-diretora da CVM Norma Parente, atualmente professora da PUC-Rio, a morosidade dos processos prejudica o efeito “educativo” da pena aplicada pela autarquia. Ela defende que a CVM acelere seus processos, estabelecendo prazos para julgamentos.
— Os processos precisam ser mais ágeis. Eles ainda estão julgando ações de 2006, 2007, 2008. É preciso que haja um sistema de prazo para diretores, relatores e colegiados se manifestarem sobre esses processos, como já existe na Justiça comum. E, por questão de transparência, a CVM poderia divulgar os processos que estão lá — explica Norma.
Desde 2008, foram 201 processos administrativos julgados na CVM sobre diferentes irregularidades, com mais de 1.500 acusações. São casos tão diversos como uso de informação privilegiada, negligência de administradores, falta de transparência das empresas e até erro de contabilidade de balanços. São casos de atuais e ex-executivos de empresas como Petrobras, Sadia, Ipiranga, Positivo Informática e os bancos BTG Pactual e Credit Suisse. Do total, 884 acusações contra empresas e pessoas acabaram em absolvições. Outras 595 resultaram em multas.
O esforço de punição pesou pouco, no entanto, no bolso dos acusados. Com a morosidade dos processos e a possibilidade de recursos na Justiça, a maior parte das multas aplicadas pela CVM não foi paga. Segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU), de R$ 1,149 bilhão aplicado em multa pela CVM de 2008 a 2012, só R$ 19,4 milhões foram realmente pagos, o que representa 1,69% do total. Em parte dos casos, mesmo após todas as instâncias, as multas não são pagas porque a empresa simplesmente faliu ou falta patrimônio dos punidos para pagá-las.
Em parte para contornar o não pagamento de multas e agilizar as punições, a CVM passou a adotar nos últimos anos os chamados “termos de compromissos”, que são acordos assinados entre a autarquia e investigados do mercado. Esses acordos são feitos antes de julgamentos, o que significa que não existe um condenação. Somente neste ano foram 18 termos de compromissos, envolvendo 45 acusados, num total de R$ 4,2 milhões. Quem faz acordo pode buscar, inclusive, apenas uma resolução rápida para um processo que pode vir a atrapalhar planos imediatos de carreira ou negócios. O próprio presidente da CVM, Leonardo Gomes Pereira, fez um termo de compromisso no valor de R$ 200 mil antes de ser indicado ao cargo de presidente no ano passado.
Aplicações de multas
Para o ex-presidente da CVM Marcelo Trindade, os processos na autarquia estão sendo julgados cada vez mais rapidamente e as penas são crescentes. Ele acredita, no entanto, que a autarquia tem conseguido avanços na aplicação de multas, mas avalia que ainda falta quadro de pessoal para agilizar processos.
— A CVM acelerou seus julgamentos administrativos nos últimos anos. O gargalo foi e continua sendo o Conselhinho — acredita Trindade.
O chinês naturalizado brasileiro Chao afirma, em entrevista por telefone, que foi “condenado e massacrado antes de um julgamento definitivo”. Ele associa sua condenação a uma manifestação da Associação Nacional dos Acionistas da BM&FBovespa, realizada no ano passado em frente ao prédio da Bolsa.
— Dois meses depois da manifestação, nossa empresa foi julgada na CVM por um processo de muitos anos atrás — explica Chao. — Estamos recorrendo (ao Conselhinho). E, quando se recorre, a sentença fica suspensa até o recurso ser julgado. E depois disso ainda tem a fase judicial.
Procurados, Luiz Gonzaga Murat Junior e Romano Ancelmo Fontana Filho não foram localizados para comentar os recursos ao Conselhinho.