É de todos conhecida a resistência dos Tribunais brasileiros em aceitar, via de regra, os pedidos manejados pelos contribuintes com o fito de assegurar a compensação de débitos fiscais com créditos de precatórios. Sob o pálio dos mais diversos e equivocados argumentos, os julgadores solapam as pretensões dos cidadãos, contribuindo, com isto, para perpetuar uma política fiscal desleal e injusta.
Por sorte, todavia, alguns Juízes mais lúcidos estão mudando este cenário. É o caso de sentença exarada pela Juíza da 6ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre – RS, no qual o pedido do impetrante restou referendado pela Magistrada. No entender da julgadora, obstar a compensação de débitos tributários com créditos de precatórios configura, acima de tudo, ofensa grave a preceitos constitucionais.
No âmbito da legislação do Estado do Rio Grande do Sul, em específico, vale frisar que já existiu lei que autorizava a compensação de débitos fiscais com precatórios; referido diploma legal restou posteriormente revogado. No caso em tela, todavia, a Juíza entendeu que, não obstante a inexistência de lei ordinária a regular o procedimento pretendido, não existe óbice a tal; muito pelo contrário, visto que da leitura do texto da Constituição Federal extraímos subsídios que embasam o provimento do pleito.
Colacionamos abaixo alguns dos trechos mais significativos da sentença ora em comento, in verbis:
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No Direito Tributário, a compensação é uma modalidade de extinção da obrigação tributária, e está prevista no artigo 170 do Código Tributário Nacional.
Como preleciona Alexandre Barros Castro, na obra Teoria e Prática do Direito Processual Tributário, E. Saraiva, 2ª edição, pág. 68: “O CTN aceita compensação do crédito tributário como créditos líquidos, certos e exigíveis (vencidos ou por vencer) de titularidade do credor em face da Fazenda Pública, devendo ser aplicado, no que se refere aos créditos vincendos, o imperativo contido no art. 170, parágrafo único, do Diploma tributário, onde se criou um limite, não se podendo conceder redução que exceda à taxa de 1% ao mês, pelo tempo decorrido entre a data de compensação e a do vencimento.”
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Saliento que não se está a afastar o poder de discricionariedade da Administração Pública, todavia há que se considerar os princípios constitucionais, os quais devem ser assegurados.
E, nesse ponto, tenho a destacar o da igualdade, que me parece ferido quando se têm notícias de que há mais de três anos não estão sendo pagos os precatórios.
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Ora, o Estado cobra bem os seus débitos, não somente através dos executivos fiscais, mas, sobretudo, com as medidas coativas que utiliza, como exemplo o indeferimento de emissão de AIDFs, condicionando-as ao pagamento da dívida. Agindo dessa forma, acaba coagindo a empresa a pagar a dívida tributária, sem discuti-la ou compensá-la, para não ver inviabilidade a continuidade do exercício regular de suas atividades.
Possibilitar-se a compensação não é criar um ônus ao Erário, muito pelo contrário, é permitir-se que ele se desonere também de suas dívidas, que não são poucas, traduzindo, na prática, o verdadeiro sentido do mencionado princípio constitucional da igualdade.
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A compensação através da via processual do Mandado de Segurança veio igualmente reconhecida pelo STJ, através dos verbetes das Súmulas números 212 e 213.
De outra banda, se o precatório tem caráter alimentar, maior razão para seu pagamento antecipado.
Assim, o Estado deixa de desembolsar valor superior à dívida, que está em atraso, compensando com a dívida da autora que, em evidente dificuldade, não consegue adimpli-la.
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Ao decidir o caso concreto, a Magistrada valeu-se do amplo espectro de atuação dos princípios constitucionais, em especial do princípio da igualdade. Nesse sentido, há grave violação ao texto constitucional quando ao Estado é permitido diligenciar de todas as formas na busca da satisfação do seu crédito – execuções fiscais, constrição de bens, sanções políticas, inscrição nos cadastros restritivos de créditos, entre outras retaliações – ao passo que, para o cidadão, é praticamente impossível obter a satisfação do precatório originado de sentença judicial, já que a legislação não dispõe de mecanismos que possibilitem uma atuação mais forte frente à Fazenda Pública.
Outro aspecto bastante relevante que permeia toda essa situação é que o não pagamento de precatórios configura grave acinte à soberania do Poder Judiciário, se considerarmos que o inadimplemento é igual ao descumprimento de uma ordem judicial – contra a qual, repise-se, não há sanção eficaz correspondente. Tal expediente fere de morte o princípio da separação dos três poderes sobre o qual está erigido o Estado Democrático de Direito. O sistema denominado “Freios e Contrapesos” deriva da essência da teoria que Montesquieu imprimiu em sua obra “O Espírito das Leis”, e destina-se precipuamente a delimitar de forma clara a atuação estatal, buscando principalmente coibir a existência de abusos; não é exagero afirmar que tal teoria constitui-se na viga mestra do sistema democrático.
Nos dias de hoje estamos assistindo, cada vez mais, ao agigantamento do Poder Executivo em detrimento dos demais poderes. A ingerência na vida privada dos cidadãos é cada vez mais grave, e a liberdade do Judiciário e do Legislativo vêm sendo sistematicamente tolhidas. Sob os mais diversos e esdrúxulos argumentos, o Executivo lança mão de medidas destinadas a aumentar seu poder sobre os outros poderes, bem como efetivar a supressão de direitos e garantias fundamentais. Quanto a este ponto em especifico vale transcrever algumas breves passagens de artigo publicado no Lawyer Journal:
Que argumentos podem ser suficientemente bons para justificar o agigantamento do Poder Executivo, que engendra uma ditadura branca, ou como tem sido chamada de “branda”? Que argumentos podem ser tão poderosos ao ponto de justificarem a supressão de direitos e de cláusulas pétreas da Constituição, bem como a anulação do princípio do livre convencimento do julgador?
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A sociedade civil organizada em federações, sindicatos, associações, conselhos de profissionais precisa estar atenta ao que está acontecendo. A democracia, que foi arduamente conquistada pelos movimentos de rua, que mobilizaram centenas de milhares de cidadãos, está ruindo diante da obcecada busca de controle por um grupo menor que desconhece o Estado de Direito e renova leis sob qualquer argumento casuístico.
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Uma Justiça mais ágil e menos complicada não se constrói retirando dos juízes sua capacidade de julgar, mas sim punindo com mais severidade aquele que é réu na parte mais significativa das ações judiciais que abarrotam o Poder Judiciário, o próprio Poder Executivo, União, Estados, INSS e FGTS.
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Nosso Estado de Direito caminha para o desequilíbrio entre os Três Poderes. Será necessário na reforma do Palácio do Planalto o aumento seu prédio e construção 50 andares para que este reflita sua verdadeira relação de poder ante os outros dois prédios ao redor da Praça dos Três Poderes, cuja intenção inicial de Oscar Niemayer era de equilíbrio.[1]
As considerações feitas acima aplicam-se com perfeição à questão dos precatórios, eis que, por meio de pressão política, o Estado determina o agir do Poder Judiciário, maculando com isto dispositivos expressos da Constituição Federal e colocando em risco a separação e o equilíbrio entre os três poderes.
Litigar contra o Estado é, de fato, uma tarefa inglória, se considerarmos as dificuldades ínsitas a este fim. Em especial nos casos similares ao ora analisado, em que não existe legislação específica a regulamentar a situação, e também não existem meios legais de coagir o devedor a adimplir a sua divida, uma vez que os bens de propriedade publica são impenhoráveis. O destino do credor é, via de regra, não ter a possibilidade de obter o pagamento a que faz jus.
Essa mudança de mentalidade dos Juízes é bastante importante; ousamos dizer, ademais, que deveria resultar num maior ativismo por parte dos mesmos, eis que o argumento utilizado pelo Estado é, via de regra, que a possibilidade de compensação irá desequilibrar o orçamento publico e até mesmo inviabilizar investimentos em outras áreas tidas como mais relevantes. Ora, tal alegação reputa-se totalmente falaciosa, se considerarmos que as despesas destinadas à quitação dos precatórios devem estar previstas no orçamento, por força de lei.
O reiterado descumprimento das ordens de pagamento, por parte da Fazenda Pública, acabou propiciando o ambiente perfeito para o desenvolvimento de um importante mercado no qual se negociam os precatórios. Assim, os credores originais podem revender o seu crédito – mesmo que com um grande deságio – e obter a satisfação pecuniária que procuram; ao adquirente do precatório as vantagens são diversas. As empresas, por exemplo, têm este instrumento como um valoroso aliado para fins de compensação de débitos fiscais vencidos, garantia de pagamento para débitos vincendos, oferecimento à penhora em execução fiscal, ou mesmo para revendê-lo novamente. Trata-se de uma excelente forma de investimento, uma vez que o precatório é imprescritível e sofre correção monetária constante, além da incidência de juros moratórios.
Se o aviso de intervenção federal[2] feito pelo STF aos estados que não apresentarem plano para pagamento de precatórios for concretizado, haverá um significativo aumento no valor dos precatórios, eis que a oferta dos mesmos no mercado deverá sofrer uma sensível diminuição devido à perspectiva de pagamento das dívidas do estado.
No âmbito das demandas judiciais, muito recentemente o STF reconheceu a repercussão geral no Recurso Extraordinário n.º 566349, no qual se discute a compensação de precatórios adquiridos de terceiros com débitos tributários junto à Fazenda Pública. Com isto, todos os recursos extraordinários interpostos junto aos Tribunais encontram-se sobrestados, aguardando a decisão que deverá nortear a atuação jurisdicional nos processos futuros, evitando, assim, a remessa de milhares de demandas repetitivas ao STF. Portanto, caberá àquele Tribunal decidir acerca da auto-aplicabilidade do artigo 78, bem como se precatórios decorrentes de créditos de natureza alimentar podem ser compensados com débitos tributários.
Portanto, esperamos que os componentes da Suprema Corte possam sopesar todos os aspectos que estão ligados à questão envolvida no processo submetido à repercussão geral, levando-se em conta o que dispõe a Constituição Federal não só naqueles artigos mais diretamente ligados ao assunto, mas principalmente nos princípios que inspiram todo o ordenamento jurídico brasileiro.
A expectativa é de que os Ministros possam dar uma resposta satisfatória aos anseios dos credores de precatórios – originais ou cessionários –, que há anos anseiam por um desfecho positivo para este antigo problema, não esquecendo, para tanto, que a principal função do STF continua sendo a de guardião da Constituição.
Dra. Julia Fiorese Reis
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[1] SIQUEIRA, Édison. Reduzir o Trabalho dos Tribunais ou Simplesmente Reduzir os Tribunais?. Publicado em http://lawyerbhz.livejournal.com/#post-lawyerbhz-552350
[2] Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I – manter a integridade nacional;
II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.