Por municipalismo se entende a ideologia política favorável às autonomias locais (Rotelli, 1998:1085). A origem do municipalismo moderno remonta a Turgot, economista fisiocrata e estadista francês, em cuja Mémoire sur les municipalités, de 1775, endereçada ao rei Luís 16, já está presente o conceito de necessidades ou interesses locais (les besoins particulières de chaque lieu, les affaires de chaque village) (Enterría, 1960:88-89).
Na história constitucional brasileira, a primeira Constituição imbuída de ideais municipalistas, e de instrumentos para garantir esses ideais, foi a de 1946 (Meirelles, 2021:44). Herdeira dessa tradição, a Constituição de 1988 consagra a autonomia municipal em assuntos de interesse local (artigo 18, caput; artigo 30) e prevê a possibilidade de intervenção para garantir essa autonomia, considerada princípio constitucional (artigo 34, VII, “c”).
Tema 656 do STF: alguns antecedentes jurisprudenciais e legais
O Tema 656 do Supremo Tribunal Federal está em linha de continuidade com alguns diplomas normativos e julgados tendentes a dar interpretação extensiva ao artigo 144, §8º da Constituição, que prevê a possibilidade de instituição de guarda civil municipal pelos Municípios para proteção de bens, serviços e instalações municipais. Destacamos alguns antecedentes mais significativos, em ordem cronológica.
Em primeiro lugar, a Lei 13.022 de 2014, que instituiu o Estatuto das Guardas, veio para regulamentar a norma do artigo 144, §8º da Constituição, conforme previsto pelo texto constitucional; após, a Lei 13.675 de 2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e incluiu as guardas municipais em sua composição (artigo 9º, caput); em 2021, o Supremo, julgando a ADI 5.538, decidiu pela possibilidade de porte de arma de fogo pelas guardas municipais; em 2023, novamente o Supremo, na ADPF 995, confirmou que as guardas municipais integram o Susp; por fim, no RE 1495910, o Supremo decidiu pela legitimidade da abordagem de suspeitos de crimes em geral pela Guarda, quando houver fundadas razões para a ação.
No âmbito do Tema 656, o Supremo fixou a seguinte tese:
É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso VII, da CF. Conforme o art. 144, § 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar as normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional.
Existe uma contradição nessa tese. Sejam quais forem as “ações de segurança urbana” que as guardas possam exercer, devem ser “respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstos no artigo 144 da Constituição Federal”. Isso significa que as Guardas não podem, por exemplo, exercer a função de polícia de fronteiras (atribuição da Polícia Federal, artigo 144, §1º, III), apurar infrações penais (atribuição das Polícias Civis, artigo 144, §4º) e, especialmente, exercer a “polícia ostensiva” (atribuição das Polícias Militares, artigo 144, §5º). Ainda assim, a tese inclui “policiamento ostensivo” entre as ações possíveis da Guarda, o que não se justifica racionalmente.
A contradição não é irrelevante. Debates como o que gerou o Tema 656 surgiram de questões práticas como a de saber se as Guardas podem realizar abordagem de suspeitos. Ora, a abordagem é uma ação de segurança urbana típica de policiamento ostensivo. Sendo assim, o Tema 656, que ao mesmo tempo inclui e exclui a polícia ostensiva das ações da Guarda, não consegue responder essa questão.
Independente da contradição apontada, resulta da tese, de fato, um alargamento do conceito de interesse local.
Confirmando seus antecedentes jurisprudenciais e legais, e seguindo a mesma inspiração municipalista da Constituição vigente, a tese — apesar de suas limitações — reforçou que, no Brasil pós 1988, a segurança pública é — de algum modo ainda por definir — assunto de interesse também dos municípios, e não somente dos estados e da União.
Fonte: Conjur