O CÓDIGO de Processo Penal em vigor contempla duas sortes de recusa de juízes, uma tratada como impedimento, a outra na condição de incompatibilidade. A primeira vertente -a do impedimento- tem característica objetiva e perceptível sem grandes investigações. As incompatibilidades dizem com os motivos legais de suspeição, destacando-se, entre estes, o fato de o juiz ser “amigo ou inimigo de uma das partes”, circunstância que pode levar o partícipe a desconfiar da sua imparcialidade.
Dá-se a hipótese, por exemplo, quando o magistrado se apaixona pela causa, pretendendo impulsioná-la de acordo com o fluxo de suas emoções. É sabido que o ser humano tem quatro emoções em que a alma transita: o medo, a ira, o amor e o dever. Não há quinta categoria. Assim, quando o juiz passa por imputação de ser suspeito, ou o é por amar demais, ou por ter medo, ou por levar ao paroxismo o conceito de obrigação jurisdicional ou, por último, por raiva ou ódio acentuado.
Nas últimas duas características, a história dá exemplos repetidíssimos daqueles que perdem a consciência do razoável e se desequilibram na atividade censória. Aconteceu, só para não se perder o mote, a Savonarola, que do púlpito chegava a censurar acremente, sob a abóbada da Catedral, o Doge e a consorte, isso na Itália segmentada e repleta de venenos distribuídos aqui e ali aos inimigos dos nobres dominadores.
Certo dia, o príncipe se enraiveceu, porque emprenhado, inclusive, pelas recriminações do papa, sabendo-se que a Igreja, naquele tempo, mandava muito mais do que hoje, desenvolvendo inclusive a estrutura da Inquisição, com suas tenazes, seus nós doloridíssimos e, também, com a invenção da “dama de ferro”. E nem se fale, já que o papa daquele tempo vem a lume, naquele que mandava castrar os meninos do coro da Capela Cistina, a fim de que mantivessem, na adolescência, a mesma voz cristalina que traziam na infância.
Razão teria Saramago, ao escrever “Caim”, tecendo comentários irônicos sobre os episódios bíblicos ainda hoje lidos repetidamente como se fossem lições indubitáveis. Voltando-se a Savanarola, o Doge perdeu a paciência e ofereceu ao monge duas ou três alternativas, sobressaindo a decapitação, a forca ou a fogueira. Conta-se que Savanarola foi submetido à última tortura, tudo por insultar aquele que lhe patrocinava a possibilidade de exercer a censura ética e moral desenfreada.
A parcialidade faz composição integrante da personalidade do homem. Isso vale até mesmo para os chamados animais inferiores: o cão lambe a mão de um e mete as presas na perna do outro, sem que saiba a razão.
Quando a parte que se julga prejudicada localiza no juiz a possibilidade da concretização de um dos quatro gigantes da alma, usa o expediente de lhe suscitar a suspeição, sendo importante notar que precisa provar, por testemunhas ou documentos, que o magistrado se apaixonou pela ou contra a causa, que odeia ou tem amor pelo réu, que entende haver um dever maior de produzir justiça em favor da coletividade ou, finalmente, tem medo de eventuais consequências desastrosas. É assim que se processa o incidente de suspeição que, se procedente, tira o pretor da ação e o substitui por outro.
Diga-se que o suscitamento da suspeição de magistrado traz imediata suspensão do curso do procedimento, mesmo porque a suspeição, se e quando comprovada, leva à anulação de todos os atos praticados, não sendo razoável a tramitação do procedimento sob a manopla do próprio juiz que tem sua atividade jurisdicional posta em desconfiança.
Aliás, é nas grandes disputas judiciais que se vê a aplicação ou não do direito estrito, porque não há quem ligue aos pequenos conflitos. Dentro do contexto, a suspensão do curso do procedimento é absolutamente correta do ponto de vista formal, não merecendo crítica ou censura.
No fim das contas, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal decidem se o censor agiu bem ou se comportou mal. É assim que as coisas funcionam num país dito democrático, não devendo valer pressões da imprensa, do povo ou de organizações.
A voz do povo nem sempre é a voz de Deus. Di-lo, entre outros eventos satânicos, a atrocidade cometida em nome da Alemanha nazista após duzentas mil pessoas terem ovacionado Adolf Hitlter numa praça pública, dando início, então, à provocação mediata do Holocausto.