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7 de outubro de 2024O veto do Superior Tribunal de Justiça ao deferimento de recuperação judicial para fundações e instituições sem fins lucrativos evita distorções jurídicas e afasta o risco de concorrência desleal no mercado brasileiro.
Restrição afeta instituições sem fins lucrativos como as de ensino, que já recorrem à recuperação judicial
Essa avaliação é de advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Com algumas ressalvas, eles concordaram com a interpretação restritiva oferecida pela 3ª Turma do STJ no julgamento concluído na última terça-feira (1º/10).
Ela se baseia no texto do artigo 1º da Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2005). O dispositivo diz que a norma se aplica ao empresário e à sociedade empresária.
Já o artigo 2º lista uma série de entidades para as quais a lei não se aplica, mas sem incluir as fundações sem fins lucrativos — aparecem na listagem empresas públicas, instituições financeiras e operadoras de planos de saúde, por exemplo.
Os quatro recursos julgados em conjunto pelo colegiado do STJ tratam de instituições de educação em crise financeira. Apesar da importância delas para a sociedade, a corte concluiu que não era o caso de autorizar o andamento da recuperação judicial.
Isso porque fundações e instituições sem fins lucrativos se submetem a regime jurídico diferenciado, com obrigações registrárias, societárias e tributárias que não se aplicam às sociedades empresárias e são, em regra, mais benéficas.
Relator dos recursos, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva sustentou que dar a essas instituições a possibilidade da recuperação judicial geraria reflexos concorrenciais e tributários indesejados, além do desvirtuamento desse modelo jurídico.
A discussão sobre a recuperação judicial de entidades sem fins lucrativos deixa várias questões no ar: no caso de credores aprovarem o plano de recuperação, seria possível incluir cláusulas que violem o estatuto da fundação? O Ministério Público, responsável pela curadoria das fundações, deveria intervir no processo? Seria possível alterar a forma de administração da fundação, já que essa definição é uma exigência trazida no artigo 62 do Código Civil? Seria possível deferir a recuperação mesmo com o artigo 51, inciso V, da lei exigindo certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas? Em caso de rejeição do plano de recuperação pelos credores, seria possível decretar a falência da fundação ou instituição sem fins lucrativos, possibilidade que também não está prevista na lei?
Para Marcelo Godke, sócio do escritório Godke Advogados, só seria justo dar às entidades sem fins lucrativos a possibilidade da recuperação judicial se elas se submetessem plenamente a todos os efeitos da Lei 11.101/2005.
“Se o regime da Lei de Recuperação Judicial e Falências fosse totalmente aplicado aos entes não empresariais, não haveria problema. Mas não se pode aplicar somente uma das partes da lei, fazer aquilo que em inglês se chama de cherry picking.”
Segundo Godke, o mercado seria afetado porque uma parte, ao contratar com outra parte, leva em consideração o regime jurídico existente. “Um banco, ao conceder crédito, leva isso em consideração. Um fornecedor também. Até os empregados o fazem. Mas depois, não podem contar com aquilo que a lei determina.”
O advogado também contesta a recuperação judicial como saída para salvar fundações e instituições, ainda que elas prestem serviço importante à sociedade.
“Não é com o fato de se aplicar o regime de recuperação judicial a hospitais, instituições educacionais e até entidades esportivas que será atingido o êxito de tais instituições. O êxito decorre da boa condução dos administradores. A recuperação judicial é mero instrumento para ser utilizado em entes que passam por dificuldades momentâneas. Se as dificuldades forem permanentes, o ente deve ser liquidado e seus ativos, contratos etc. devem ser alocados nas mãos de outros que consigam administrá-los de maneira mais eficiente. Isso, sim, levará ao êxito.”
Vera Chaves de Azevedo, do Chaves de Azevedo Advogados Associados, acredita que o maior obstáculo para dar às fundações e instituições sem fins lucrativos a possibilidade de recuperação judicial está exatamente no impacto concorrencial e econômico que tal medida poderia gerar.
“Admitir que essas entidades possam aderir à recuperação judicial sem que essas outras regras sejam ajustadas criaria uma distorção no mercado, colocando-as em vantagem competitiva indevida em relação às empresas regulares.”
Ela enxerga algumas soluções possíveis para esse impasse. Uma delas é a criação de regime específico voltado para a recuperação judicial de entidades sem fins lucrativos, com contrapartidas em termos de transparência, governança e responsabilidade tributária.
Outra, mais simples, é criar critérios para limitar o acesso a esse benefícios a instituições que exerçam atividades de interesse público ou impacto social, como hospitais, universidades e organizações de assistência social.
Em resumo, segundo a advogada, qualquer ampliação de benefícios para entidades sem fins lucrativos precisa levar em conta tanto os prejuízos sociais decorrentes do fechamento dessas instituições em crise quanto os desequilíbrios concorrenciais.
“A solução mais prudente seria uma adaptação legislativa que preservasse a função social dessas entidades e, ao mesmo tempo, assegurasse um tratamento justo e equilibrado frente às exigências do mercado.”
Na visão de Paulo de Maria, do Barcellos Tucunduva Advogados (BTLAW), seria desafiador defender a interpretação extensiva da Lei 11.101/2005 sem uma mudança legislativa, haja vista que as fundações desfrutam de tratamento diferente daquele que a lei dá às empresas.
“Admitir que possam se beneficiar de um instituto desenhado para empresários, sem a devida adequação legislativa, poderia provocar distorções no mercado. A questão seria difícil de contornar sem uma reforma legislativa que estabeleça condições e requisitos específicos para essas entidades, a fim de preservar a isonomia e a competitividade.”
Já Barbara Pommê Gama, da banca Dalazen, Pessoa & Bresciani Sociedade de Advogados, pensa diferente. Ela vê no cenário enfrentado por essas instituições a justificativa para que possam homologar planos de recuperação judicial.
“Se mesmo com todos os benefícios econômicos e tributários essas fundações ainda têm dificuldades, não há razão para impedir que possam fazer esse processo de soerguimento. Se pensarmos que não, estaremos presumindo que houve má-gestão ou má fé. E isso não se presume.”
Na opinião da advogada, a limitação da lei é contornável porque, ainda que essas instituições não tenham fins lucrativos, elas auferem lucro, que não é acumulado ou partilhado entre sócios, mas utilizado no próprio trabalho ou projeto.
“Essas fundações e instituições têm os mesmos procedimentos contábeis e financeiros de outros tipos de empresas e delas dependem uma parcela significativa da nossa sociedade. Daí que parece haver um erro na interpretação do STJ.”
Fonte: Conjur