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9 de outubro de 2025Mesmo diante do amadurecimento jurisprudencial e legislativo em torno da contratação direta, a pergunta fundamental persiste: decisões que reafirmam a possibilidade de contratação direta por inexigibilidade de licitação transformam esse instrumento em um caminho mais fácil para o gestor público?
A resposta é negativa. A inexigibilidade continua sendo um regime de exceção, que só encontra amparo legítimo quando a administração é capaz de demonstrar, com precisão e profundidade, a inviabilidade de competição associada a um objeto cuja singularidade seja inerente à necessidade administrativa a ser atendida.
E é justamente nesse ponto que o debate jurídico precisa avançar: a singularidade não é um atributo eventual, restrito a determinados serviços intelectuais, mas um requisito estrutural, imanente ao próprio caput do artigo 74 da Lei nº 14.133/2021.
A leitura tradicional costuma restringir a ideia de singularidade à hipótese do inciso III — relativa à contratação de serviços técnicos especializados —, tratando as demais hipóteses de inexigibilidade como se prescindissem dessa demonstração.
Essa leitura, além de reducionista, é equivocada. A inviabilidade de competição, núcleo comum de todas as hipóteses do artigo 74, não se sustenta sem a demonstração de que o objeto e a necessidade administrativa que o originam possuem características singulares que tornam inadequada a competição pública.
Em outras palavras, a singularidade não é apenas um traço do serviço técnico; ela é a própria razão pela qual a competição se mostra inviável, seja na contratação de um escritório de advocacia, seja na escolha de um artista, seja na aquisição de obra de arte ou de tecnologia de ponta.
É aqui que o estudo técnico preliminar (ETP) deixa de ser um documento acessório e se converte na peça-chave do processo decisório no campo da contratação pública.
O ETP é o locus no qual a administração deve construir a fundamentação que demonstra por que a solução pretendida exige uma resposta de natureza singular. Não basta afirmar que não há competição; é preciso explicar por que não há. Não basta sustentar que um determinado fornecedor ou profissional possui notoriedade; é indispensável demonstrar que, diante do problema a ser solucionado, essa notoriedade faz diferença e agrega valor público.
É no ETP que se deve comprovar que a necessidade concreta da administração — seja ela resolver uma demanda jurídica complexa, realizar um projeto cultural específico ou atender a uma política pública inovadora — conduz à conclusão de que a competição não é apenas inviável, mas também contraproducente.
Um exemplo simples ajuda a ilustrar esse raciocínio. Suponha que a administração pretenda promover um evento cultural com ampla visibilidade para uma política pública estratégica. A contratação direta de um artista de renome, com trajetória consolidada no mercado e capacidade comprovada de mobilizar público e mídia, pode ser a solução ótima — não por capricho, mas porque essa escolha responde de forma mais eficaz à necessidade identificada. A singularidade, aqui, não está no artista em si, mas na natureza da necessidade pública que exige um resultado específico.
Da mesma forma, se o objetivo for fomentar a produção artística local e incentivar novos talentos, a melhor resposta será um edital público de fomento, com critérios objetivos de seleção. Em ambos os casos, a escolha do instrumento jurídico — inexigibilidade ou edital — decorre da natureza singular da necessidade e não de uma preferência administrativa subjetiva.
Esse raciocínio se aplica integralmente às contratações de serviços jurídicos no campo da advocacia. A inexigibilidade não se justifica apenas pela natureza intelectual da advocacia ou pela qualificação do escritório escolhido, mas pela constatação de que a necessidade concreta — seja a condução de litígios complexos, seja a assessoria em temas de alta especialização — exige um conhecimento singular, cuja prestação não pode ser adequadamente comparada em ambiente competitivo.
Quando a necessidade é genérica, previsível ou ordinária, a inexigibilidade perde sentido; quando é específica, complexa e exige soluções customizadas e diferenciadas para a real satisfação das necessidades públicas, a contratação direta se revela legítima e necessária.
Essa perspectiva também impõe uma mudança na forma como compreendemos a discricionariedade administrativa. A liberdade do gestor não é ampla nem arbitrária; ela está condicionada à coerência e à consistência da motivação apresentada.
O controle exercido por Tribunais de Contas, Ministérios Públicos e pelo próprio Poder Judiciário não se volta à escolha em si, mas à racionalidade do processo decisório que a sustenta. E essa racionalidade só se manifesta quando a decisão é precedida de um planejamento robusto, fundamentado e documentado, capaz de transformar a inexigibilidade em resposta técnica e não em mera conveniência.
No fim das contas, a decisão judicial que reafirma a constitucionalidade da contratação direta não abre portas para a flexibilização dos controles, tampouco autoriza o uso rotineiro da inexigibilidade.
Ao contrário, ela impõe um ônus argumentativo ainda mais elevado ao gestor, exigindo que cada contratação direta seja tratada como uma decisão administrativa complexa, construída a partir de diagnósticos precisos, justificativas robustas e escolhas metodologicamente fundamentadas.
A inexigibilidade, assim compreendida, deixa de ser um expediente simplificador e se torna aquilo que sempre deveria ter sido: um instrumento sofisticado de gestão pública, reservado às hipóteses em que a singularidade da necessidade e do objeto tornam a competição não apenas inviável, mas inadequada.
E essa constatação conduz a uma conclusão inescapável: não há inexigibilidade legítima sem planejamento qualificado — e não há planejamento qualificado sem a caracterização clara e objetiva da singularidade no estudo técnico preliminar.
Fonte: Conjur
