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9 de setembro de 2024Caminhamos para o primeiro quinquênio de vigência da Lei Geral de Transação Tributária no âmbito federal, com a necessidade de algumas reflexões sobre o uso desse instituto e possíveis melhorias na Lei nº 13.988/2020.
São inegáveis os efeitos positivos da regulamentação do artigo 171, do Código Tributário Nacional, a permitir que, mediante concessões mútuas, a União e os seus contribuintes cheguem a bom termo com relação a pendências fiscais que poderiam se arrastar por anos a fio, nos escaninhos dos tribunais administrativos e judiciais.
Em termos de geração de caixa para o governo federal, os resultados positivos da transação saltaram de R$ 1,7 bilhão, em 2020, para R$ 20,7 bilhões no ano passado, conforme o relatório PGFN em números 2024. No ano que se encerrou, foram aproximadamente 5.700 requerimentos de transação e mais 3.200 requerimentos de audiência entre contribuintes e procuradores, evidenciando a efetividade do diálogo na solução alternativa das controvérsias tributárias.
Desde o início do uso da transação em âmbito federal, de acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, foram negociados mais de 6,3 milhões de inscrições em dívida ativa, no valor de R$ 558 bilhões, em um total de mais de 2,3 milhões de acordos entre fisco e devedores, segundo o Anuário PGFN 2024.
Em termos qualitativos, foram realizadas transações bilionárias envolvendo empresas dos mais variados setores, devedores em recuperação judicial e grupos investigados em operações de combate à sonegação e fraudes fiscais. Em 2023, foi amplamente noticiada a celebração de transação envolvendo um passivo de mais de R$ 10 bilhões, em nome de grupo empresarial dedicado a segmentos diversos, incluindo agronegócio, comunicações, táxi aéreo e logística.
Apesar desse êxito até aqui, há melhorias que podem e precisam ser promovidas, seja por inovação legislativa, seja pelo avanço na interpretação e aplicação do instituto.
Uma delas está relacionada à sanção prevista no artigo 4º, § 4º, da Lei nº 13.988, segundo o qual é vedada a celebração de transação com contribuintes que já tenham realizado acordo anterior rescindido. Essa proibição deve perdurar dois anos, contados da data da rescisão, ainda que a pretensão de um novo acordo diga respeito a débitos distintos daqueles incluídos na transação rescindida.
Segundo o artigo 4º, são sete as causas de rescisão da transação federal, a saber: (1) o descumprimento das condições, das cláusulas ou dos compromissos assumidos; (2) a constatação, pelo credor, de ato tendente ao esvaziamento patrimonial do devedor como forma de fraudar o cumprimento da transação, ainda que realizado anteriormente à sua celebração; (3) a decretação de falência ou de extinção, pela liquidação, da pessoa jurídica transigente; (4) a comprovação de prevaricação, de concussão ou de corrupção passiva na sua formação; (5) a ocorrência de dolo, de fraude, de simulação ou de erro essencial quanto à pessoa ou quanto ao objeto do conflito; (6) a ocorrência de alguma das hipóteses rescisórias adicionalmente previstas no respectivo termo de transação; ou (7) a inobservância de quaisquer disposições da lei ou do edital de transação.
Verificada uma dessas hipóteses, o contribuinte deve ser notificado para eventual impugnação em 30 dias, ou, eventualmente, a sanar o vício no mesmo prazo. Portanto, embora a norma não seja suficientemente clara, indica haver hipóteses sanáveis e hipóteses insanáveis de rescisão.
A nosso ver, o vício será obrigatoriamente insanável quando envolver a quebra de um dos compromissos previstos no artigo 3º, da Lei nº 13.988, notadamente:
(a) não se utilizar a transação de forma abusiva, com a finalidade de limitar, de falsear ou de prejudicar, de qualquer forma, a livre concorrência ou a livre iniciativa econômica;
(b) não se usar pessoa natural ou jurídica interposta para ocultar ou dissimular a origem ou a destinação de bens, de direitos e de valores, os seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários de seus atos, em prejuízo da Fazenda Pública federal;
(c) não se alienarem nem onerarem bens ou direitos sem a devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública competente, quando exigido em lei;
(d) desistir de impugnações ou recursos administrativos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação e renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem as referidas impugnações ou recursos; e
(e) renunciar a quaisquer alegações de direito, atuais ou futuras, sobre as quais se fundem ações judiciais, inclusive as coletivas, ou recursos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação, por meio de requerimento de extinção do respectivo processo com resolução de mérito, nos termos do artigo 487, inciso III, alínea “c”, do Código de Processo Civil.
Note-se que, em parte, algumas dessas situações acabarão se materializando juntamente com aquelas hipóteses do artigo 4º. A transação rescindida por ato de esvaziamento patrimonial do devedor, por exemplo, muito provavelmente será abusiva e tendente a falsear ou prejudicar concorrentes.
A ocorrência de simulação ou erro essencial quanto à pessoa ou ao objeto do conflito transacionado, não raro representará o uso interposta pessoa. A transação celebrada mediante prevaricação, concussão ou corrupção passiva será mandatoriamente abusiva, devendo ser rescindida de modo definitivo, sem a possibilidade de emendas ao ilícito assim constatado e comprovado.
Em homenagem aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, portanto, parece lícito interpretar os artigos 3º e 4º dessa maneira, inclusive para que exista gradação entre condutas ilícitas e as sanções aplicáveis ao sujeito passivo.
Ou seja, cumulando-se as hipóteses do artigo 4º com a quebra de um ou mais compromissos do artigo 3º, a causa da rescisão da transação seria insanável; não sendo essa a situação, a falha poderia ser regularizada.
Sendo isso verdadeiro, a questão que se abre é se, havendo um vício sanável na rescisão da transação e não sendo ele regularizado pelo contribuinte dentro dos 30 dias previstos no artigo 4º, §§ 1º e 2º, seria isto uma barreira intransponível à celebração de novo acordo durante dois anos?
Mais uma vez, em razão dos preceitos da proporcionalidade e da razoabilidade, a resposta parece ser negativa.
A tragédia provocada pelas chuvas de abril e maio, no estado do Rio Grande do Sul, jogou luzes sobre essa hipótese particular, uma vez que inúmeros contribuintes se viram impossibilitados, por uma inquestionável razão de força maior, de honrar transações em andamento, descumprindo condições assumidas, em especial com relação ao adimplemento de parcelas vencidas durante aquele período.
É bem verdade que, dentre outras medidas editadas como resposta àquele acidente ambiental, o governo federal lançou o Programa Emergencial de Regularização Fiscal ao Apoio ao Rio Grande do Sul (Transação SOS-RS), por meio da Portaria PGFN/MF nº 1.032/2024, prevendo condições especiais para a negociação de débitos tributários das empresas afetadas pelas enchentes.
Muito embora se tenha autorizado a negociação de débitos “objeto de parcelamento anterior rescindido”, a Transação SOS-RS não permitiu a inclusão de saldos de transações rescindidas. Nem mesmo os débitos objeto de transação que beneficiara o devedor apenas com parcelamento da dívida (ou seja, sem descontos), poderiam ser incluídos.
Adotou-se, portanto, uma leitura restritiva do artigo 4º, da Lei nº 13.988/2022, juntamente com a aplicação literal dos parâmetros da Portaria PGFN nº 6.757/2022, que menciona apenas a inclusão de saldos de parcelamentos em transações com a Procuradoria.
A situação, no entanto, demandava (e continua a demandar) uma interpretação mais flexível, sistemática e finalística do instituto da transação, o que não encontra obstáculo no artigo 111, do CTN.
Afinal, em primeiro lugar, a transação é mecanismo de extinção do crédito tributário, conforme artigo 156, inciso III, não se encontrando assim no rol de temas sujeitos à interpretação estrita prevista naquele dispositivo.
Sendo isso verdadeiro, os princípios gerais de direito privado podem e devem ser utilizados para a definição do alcance do instituto, como se extrai do artigo 109, do CTN, o que nos permite concluir que o devedor não pode responder pelos prejuízos eventualmente causados ao credor como resultado de caso fortuito ou força maior, se não houver por eles se responsabilizado expressamente. É o que disciplina o artigo 393, do Código Civil.
Parece forçoso concluir que, tendo sido a transação anterior rescindida em razão de caso fortuito ou por motivo de força maior, a sanção do artigo 4º, § 4º, da Lei nº 13.988/2020, deve ser obrigatoriamente relativizada, não se podendo impor aquela proibição de dois anos de modo indiscriminado a quem simplesmente descumpriu um acordo anterior e àquele que o fez por motivo qualificado e alheio à sua vontade.
Além disso, estando-se a tratar de rescisão sanável — portanto, sem as qualificadoras do artigo 3º — a aplicação excessivamente rigorosa do artigo 4º, § 4º, pode ser contrária ao próprio interesse da administração pública e ao princípio da eficiência previsto no artigo 37, da Constituição.
Com efeito, a prática recente tem evidenciado a necessidade de sucessivas reedições de editais de transação por adesão por parte da PGFN, em grande parte das vezes com o propósito indireto de permitir o ingresso de devedores retardatários, que não raro enfrentam dificuldades procedimentais/burocráticas para a inclusão dos seus débitos nos últimos dias de encerramento do prazo de adesão.
À luz do artigo 100, inciso III, do CTN, essa prática reiterada também deve ser levada em consideração para que se relativize a aplicação excessivamente rigorosa do artigo 4º, § 4º, da Lei nº 13.988/2020, quando for o caso de transação eventualmente rescindida por falha formal na adesão a edital que se renove logo na sequência, com base nas mesmas condições, premissas e mesmos benefícios.
Há outras hipóteses que precisam ser objeto de maior reflexão, na medida em que, a princípio, demandariam alteração legislativa, mas que vêm se mostrando desafiadoras. Dentre elas:
(1) a possibilidade de novo acordo quando a transação anterior tiver sido rescindida por superdimensionamento da capacidade de pagamento do devedor;
(2) nova transação com débitos objeto de acordo anterior, quando o devedor for levado a um cenário de recuperação judicial, extrajudicial ou falência; e
(3) transação de débitos de pessoa física em situação de óbito, os quais passar a ser considerados como irrecuperáveis segundo a Portaria PGFN nº 6.757/2022, mas que possam ter sido objeto de acordo rescindido sem o conhecimento de herdeiros ou legatários.
Tudo isso, a nosso ver, faz sentido que seja objeto de reflexão por todos os envolvidos na regulamentação, aplicação e no desenvolvimento do instituto da transação, para que siga ele evoluindo como mecanismo comprovadamente eficaz de solução de litígios fiscais e de geração de recursos para o erário.
Fonte: Conjur