Compartilhamento de RIF: abrangência da decisão proferida no RE 1.537.165-SP
22 de agosto de 2025STJ vai decidir se ICMS-Difal compõe base de cálculo de PIS e Cofins
22 de agosto de 2025A Emenda Constitucional nº 132, recentemente promulgada em sessão conjunta do Congresso no fim do ano passado, representa a mais ampla e significativa reestruturação do sistema tributário brasileiro desde o advento da Constituição de 1988.
Com a ambiciosa proposta de simplificar a tributação sobre o consumo, de torná-la mais eficiente e de diminuir a regressividade, a reforma trouxe implicações que transcendem limitadamente a seara fiscal e econômica, alcançando também o campo jurídico extratributário, em especial o Direito Penal Tributário. Malgrado a reforma não tenha promovido alterações que impliquem diretamente nas disposições da Lei nº 8.137/1990, que tipifica os crimes contra a ordem tributária, os seus desdobramentos impactam colateralmente a configuração de condutas típicas, a persecução penal e a atuação do Ministério Público na repressão a ilícitos fiscais.
No contexto de um sistema fiscal complexo, fragmentado e frequentemente exposto a contradições, a interseção entre o Direito Tributário e o Direito Penal sempre desencadeou discussões intensas, sobretudo no que diz respeito à extensão do poder punitivo do Estado, à observância dos direitos individuais e à efetividade da repressão aos crimes que atentam contra o erário. Agora, com o advento da reforma, novos debates podem surgir: a unificação e extinção de tributos tradicionais, a exemplo do ICMS e do IPI, podem descortinar lacunas normativas? Haverá abolitio criminis? O novo sistema de arrecadação poderá facilitar a detecção de fraudes ou acarretará novos desafios para a tipificação penal?
Partindo ilustrativamente desses recortes e questionamentos, propõe-se aqui uma reflexão sobre a necessidade de adequação legislativa, os riscos de inefetividade penal e as oportunidades que o novo modelo é capaz de oferece para o aprimoramento da atuação estatal.
No Brasil, o sistema penal tributário é essencialmente regulado pela Lei nº 8.137/1990, cujos artigos 1º e 2º tipificam condutas que consistem, respectivamente, na supressão ou redução de tributos mediante fraude dolosa e na omissão de informações ou prestação falsa em documentos fiscais. Essas figuras penais têm como pressuposto o nascimento da obrigação tributária, sendo a constituição definitiva do crédito tributário, inclusive, uma condição de procedibilidade da ação penal, conforme norte da jurisprudência consolidada pelo STF no julgamento do HC 81.611/DF.
A estrita dependência entre o processo penal e o processo administrativo fiscal, muito embora assegure a observância do princípio da legalidade, também acarreta uma indesejável morosidade e, muitas vezes, ineficiência na punição dos delitos tributários, uma vez que a possibilidade de parcelamento ou discussão judicial do débito fiscal pode suspender ou até mesmo extinguir a punibilidade, nos termos do artigo 9º, §2º da referida lei. Soma-se a isso a dificuldade do Estado em combater esquemas de sonegação complexos, que envolvem estruturas empresariais sofisticadas, planejamento tributário abusivo e manipulação contábil.
A multiplicidade de tributos e a autonomia legislativa dos entes federativos também contribuem para um cenário historicamente de dispersão normativa, dificultando o trabalho da fiscalização e do Ministério Público. Com essa fragmentação, condutas potencialmente lesivas à arrecadação acabam escapando à repressão penal efetiva, especialmente quando o tipo penal exige a comprovação de dolo específico e prática reiterada.
Dentre as principais mudanças promovidas pela EC nº 132, destaca-se, grosso modo, a substituição de cinco tributos — ICMS, ISS, IPI, Pis e Cofins — pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre os estados, o Distrito Federal e os municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União. A reforma introduziu também o Imposto Seletivo, com finalidade extrafiscal, voltado ao desestímulo do consumo de produtos nocivos à saúde ou ao meio ambiente, em alinhamento com os valores do artigo 225 da Constituição.
Outra inovação relevante diz respeito à centralização do sistema arrecadatório, com a criação de um modelo digital unificado de cobrança e de controle, que visa à padronização das obrigações acessórias e maior transparência fiscal. A base de cálculo desses novos tributos será única, com a incidência no destino, de forma não cumulativa. Todos esses elementos refletem uma tentativa de simplificação e racionalização do sistema, tradicionalmente criticado pela sua complexidade e insegurança jurídica.
Nessa conjuntura, destacam-se como efeitos positivos a maior integração tecnológica e a centralização das informações fiscais, com o potencial de aprimorar a detecção das fraudes e fortalecer a atuação repressiva do Estado. A padronização de obrigações acessórias e a unificação das bases de dados viabilizam o cruzamento inteligente de informações e o rastreamento mais eficiente de operações irregulares, o que pode beneficiar diretamente a atuação da Receita Federal, das autoridades policiais e do Ministério Público na repressão aos crimes tributários.
E aqui um ponto juridicamente sensível merece maior atenção. Embora os tipos penais definidos na Lei nº 8.137/1990 não tenham sofrido alterações formais, pelo menos até o momento, a nova configuração tributária poderá exigir uma necessária reinterpretação de determinadas condutas típicas, considerando que a caracterização penal desses delitos está intimamente ligada à natureza e à exigibilidade dos tributos incidentes.
Ou seja, ao mesmo tempo em que a reforma promove avanços importantes no campo da fiscalidade, igualmente levanta questões delicadas sob a perspectiva do Direito Penal. A primeira delas diz respeito ao princípio da legalidade estrita (artigo 5º, XXXIX, da CF/88), que exige a existência de lei anterior para a definição de condutas criminosas. A substituição dos tributos previstos nos artigos da Lei nº 8.137/1990, que são elementos centrais das condutas tipificadas, por novos tributos que não constam expressamente na norma penal, pode suscitar alegações de atipicidade penal, ao argumento de que a norma incriminadora perdeu a sua eficácia material. Caso se entenda que a conduta deixou de encontrar correspondência no ordenamento jurídico, poderá haver o reconhecimento da abolitio criminis, com potencial extinção da punibilidade nos termos do artigo 107, III, do Código Penal.
Além disso, a extinção pela reforma de tributos cuja supressão ou redução configurava elemento essencial das condutas tipificadas desencadeia fundadas dúvidas quanto à manutenção da tipicidade de crimes praticados sob o regime anterior. A jurisprudência certamente terá um papel determinante nesse processo de transição, cabendo aos tribunais, em última análise, uniformizarem o entendimento sobre a aplicabilidade dos tipos penais antigos às novas conformações. A possibilidade de retroatividade da norma penal mais benéfica, prevista no artigo 5º, XL, da CF/88, também poderá ser invocada pelos interessados, especialmente nos casos em que a conduta não encontrar mais amparo na nova configuração legal.
Outro aspecto relevante, portanto, repousa sobre a necessidade de reavaliação e atualização da Lei nº 8.137/1990, idealizada no contexto de um sistema tributário que hoje se mostra desatualizado frente às recentes mudanças promovidas pela EC nº 132/2023. A manutenção de tipos penais cujos elementos objetivos e subjetivos já não refletem mais o atual ordenamento tributário pode comprometer tanto a segurança jurídica quanto a eficácia da repressão penal. Diante disso, impõe-se ao legislador revisitar a promover as necessárias adequações da disciplina penal tributária, de modo a alinhar as descrições legais das condutas criminosas às novas normas e estruturas tributárias instituídas pela reforma.
Finalmente, é importante observar que a reforma tributária pode também acentuar uma tendência contemporânea de seleção penal, voltada à repressão de grandes esquemas de fraude e sonegação estruturada, em detrimento de condutas de menor gravidade, como o simples inadimplemento tributário. Esse movimento é coerente com o princípio da intervenção mínima, segundo o qual o Direito Penal deve incidir apenas quando os demais ramos do direito não forem suficientes para a tutela do bem jurídico.
Enfim, a transição para o novo sistema tributário oferece tanto desafios quanto oportunidades para o fortalecimento institucional na proteção do patrimônio público e no enfrentamento à criminalidade tributária.
Fonte: Conjur
