Reforma tributária e pontos de partida do sistema tributário nacional
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23 de setembro de 2024No próximo dia 26 de setembro, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) analisará 17 propostas de súmulas que tratam de questões relevantes para o contencioso tributário. Dentre elas, destaca-se a 16ª proposta, que aborda os efeitos do desembaraço aduaneiro na importação de mercadorias. O enunciado propõe que:
“O desembaraço aduaneiro não é instituto homologatório do lançamento e a realização do procedimento de ‘revisão aduaneira’, com fundamento no art. 54 do Decreto-Lei nº 37/1966, não implica ‘mudança de critério jurídico’ vedada pelo art. 146 do CTN, qualquer que seja o canal de conferência aduaneira.”
O objetivo deste artigo é contextualizar os leitores sobre a discussão em questão e esclarecer os efeitos práticos caso a 16ª proposta de enunciado seja aprovada e se torne uma súmula do Carf.
Conforme informações divulgadas pela Receita Federal, em 2023, o Brasil registrou 4.612.786 milhões de declarações de importação e exportação. Por sua vez, somente o valor correspondente às importações atingiu a monta de US$ 313 bilhões.
Em razão das mais de 4 milhões de declarações prestadas ao Fisco e ante a impossibilidade de fiscalizá-las de forma exaustiva, surgem divergências entre Fisco e contribuintes após o desembaraço aduaneiro, em especial no que tange à classificação fiscal de mercadorias.
Isso porque a aduana brasileira passou por um processo de modernização nos últimos 30 anos, com o advento do Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex) e com a criação dos canais de parametrização (verde, amarelo, vermelho e cinza).
A regra é parametrização em canal verde, com a liberação da mercadoria sem a conferência prévia por parte do Fisco. Porém, algumas operações específicas são parametrizadas para o canal amarelo, com conferência apenas documental, e outras para o canal vermelho, em que é realizada a conferência física e documental. Nos casos em que o Fisco suspeita de fraude, as mercadorias são encaminhadas para o canal cinza, na qual ocorre a retenção das mercadorias por até 120 dias.
A liberação automática — que é predominante na aduana brasileira e no mundo, embora tenha otimizado as atividades de fiscalização e possibilitado grande ganho logístico para os importadores, também gerou um contencioso administrativo e judicial em razão de autos de infração lavrados anos após o desembaraço.
Para demonstrar a relevância do assunto, em consulta ao sítio do Carf na internet, podemos verificar que ao longo dos anos o contencioso aduaneiro sobre a classificação fiscal de mercadoria aumentou substancialmente.
Realizando pesquisa com o termo “classificação fiscal”, podemos encontrar 273 decisões proferidas em 2011, enquanto, em 2019,foram proferidas 659 decisões sobre esse tema. Há um aumento de 242% no número de decisões que tratam sobre classificação fiscal de mercadorias.
Levando-se em consideração que tão somente 5% das mercadorias desembaraçadas são parametrizadas em canal diferente do verde, podemos afirmar que quase que a totalidade dos autos de infração em discussão no Carf são oriundos de procedimentos de revisão aduaneira.
Pois bem. Nos casos em que há conferência física e/ou documental, é possível que, dentro do prazo de cinco anos contados do registro da Declaração de Importação (DI), o Fisco reanalise as informações declaradas e lavre auto de infração.
Em razão disso, surgem questionamentos sobre os efeitos do desembaraço aduaneiro após a conferência física e/ou documental, ainda que por amostragem, das mercadorias importadas.
Afinal, o desembaraço aduaneiro após conferência física e documental em canal amarelo, vermelho e cinza, seria equivalente a homologação expressa do lançamento?
É esse questionamento que a proposta de súmula pretende fulminar.
O enunciado que será votado pelo Carf propõe que o desembaraço aduaneiro, qualquer que seja o canal de conferência aduaneira, não equivale à homologação de lançamento.
Para o enunciado que será votado no próximo dia 26, independente do canal de parametrização, amarelo, vermelho ou cinza, a conferência feita quando do desembaraço não produz efeitos.
Em outras palavras, caso a proposta de súmula seja acolhida sem modificações, as importações desembaraçaras em canal verde e as desembaraçadas em canal cinza poderão ser objetivo de revisão aduaneira da mesma forma.
Isso porque a proposta equipara a situação em que a mercadoria é liberada automaticamente (canal verde) com a situação em que o Fisco confere a operação, inclusive na situação extrema de reter a mercadoria para averiguações por até 120 dias (canal cinza).
No entanto, entendemos que as situações são distintas e exigem tratamentos distintos. Na primeira, não há ato por parte da administração pública, enquanto, na segunda, ocorre a fiscalização mais severa prevista pela legislação — superior, inclusive, à própria revisão aduaneira, segundo a qual a mercadoria não fica retida com o Fisco. Dessa forma, seria prematuro afirmar que não há homologação de lançamento “qualquer que seja o canal de conferência aduaneira”.
Quando há paralisação do desembaraço e por conseguinte a intimação do importador para prestar esclarecimentos, ou então quando há a produção de laudo no curso do desembaraço, nos parece que há sim a homologação do lançamento. Essa situação é excepcional nos desembaraços e deve ser tratada de fora diferenciada, sendo, na nossa visão, equivocado tratá-la da mesma forma, como pretende o enunciado proposto.
Embora a grande maioria dos julgados do Carf seja no sentido de que o desembaraço aduaneiro não equivale à homologação de lançamento, também é verdade que o mesmo Carf é sensível aos casos em que há uma maior interação entre Fisco e o contribuinte durante o desembaraço.
A mencionada corrente defende que administração pública deveria levar em conta o princípio da proteção da confiança nas situações em que a mercadoria é desembaraçada após a conferência física e/ou documental.
A corrente que defende a aplicação do princípio da proteção da confiança foi adotada pelo Carf, no acórdão nº 3402-007.089, julgado pela 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento, em 19 de novembro de 2019.
No julgamento do comentado acórdão, de relatoria do então conselheiro Rodrigo Mineiro Fernandes, foi analisado caso no qual o contribuinte registrou 255 declarações de importação no período de quatro anos, sendo que 67 dessas foram parametrizadas para o canal vermelho de conferência.
Consta do relatório do julgado que, durante os anos de 2009 a 2011, mensalmente, a mesma unidade parametrizou a mesma mercadoria no canal vermelho.
Em razão do volume de parametrizações, o julgado entendeu que existia uma evidente prática reiterada da administração pública, passível de gerar confiança por parte do contribuinte, devendo ser excluída a multa e os juros lançados contra o contribuinte, nos termos do artigo 100 e 146 do CTN. Posicionamento exatamente oposto ao texto da proposta de enunciado.
Caso o texto seja votado e aprovado, tornando o enunciado súmula, por força do regimento interno do Carf, todos os conselheiros serão obrigados a seguir esse entendimento, não sendo, inclusive, mais cabível a interposição de recurso especial para discussão da matéria na Câmara Superior. Ou seja, situação excepcionais serão tradadas de forma idêntica.
Constatamos no presente artigo que 95% das mercadorias importadas são parametrizadas em canal verde e liberadas automaticamente para os importadores, enquanto as demais são fiscalizadas conforme o canal de parametrização selecionado, podendo existir uma conferência documental ou documental e física, ou ainda a retenção da mercadoria pelo prazo de até 120 dias para uma completa e severa averiguação por parte da administração pública na qual é lavrado o termo de constatação com tudo aquilo que foi validado pela administração pública.
A proposta de enunciado equipara a situação em que a mercadoria é liberada automaticamente (canal verde) com a situação extrema em que o Fisco retém a mercadoria para averiguações por até 120 dias (canal cinza). As situações são distintas e merecem tratamentos distintos. Na primeira, não há ato por parte da administração pública, enquanto, na segunda, ocorre a fiscalização mais severa prevista pela legislação — superior, inclusive, à própria revisão aduaneira, segundo a qual a mercadoria não fica retida com o Fisco.
Diante dessas considerações, entendemos que a redação do enunciado é excessivamente ampla ao atribuir o mesmo valor jurídico a todos os canais de parametrização, o que pode prejudicar os importadores que foram efetivamente fiscalizados durante o desembaraço aduaneiro.
Esperamos que o enunciado não seja aprovado pela 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais — CSRF ou, então, que a redação do enunciado seja modificada no sentido de não abranger todos os canais de parametrização. Caso o texto venha a ser aprovado da forma que fora proposto, poderá acarretar ainda mais judicialização dos autos de infração lavrados em procedimento de revisão aduaneira.
Fonte: Conjur