Quem acompanha o noticiário econômico levou um susto. O BNDES, uma instituição em geral reservada e pouco afeita à transparência, convocou na semana passada duas entrevistas coletivas para fazer anúncios relevantes ao mercado. No domingo, para completar, o presidente do banco, Luciano Coutinho, publicou um artigo no jornal “Folha de S.Paulo”, em que ataca aqueles que consideram o BNDES uma “caixa-preta”. “Transparência é um imperativo republicano. No BNDES, essa é a regra e um objetivo constantemente aprimorado”, afirma Coutinho.
Com a presença do próprio ministro da Fazenda, Joaquim Levy (à esquerda na foto acima), Coutinho (à direita) anunciara na antevéspera regras mais rígidas para financiar empresas cujo faturamento passa de R$ 1 bilhão. Agora, se elas quiserem receber dinheiro pagando ao BNDES os juros mais baixos do mercado (a Taxa de Juros de Longo Prazo, ou TJLP), terão de captar uma parcela desse dinheiro de financiadores privados. É uma forma, afirma o banco, de reduzir aos poucos a preponderância do governo no financiamento de projetos de longo prazo, sobretudo na área de infra-estrutura. No Brasil de hoje, mais de 70% do capital destinado a eles tem origem no BNDES. Como os critérios na distribuição desses recursos nem sempre foram tão transparentes como Coutinho dá a entender, ficamos com a incômoda sensação de que o BNDES financia empresas ao bel-prazer das conveniências políticas do governo.
Essa mesma sensação emana das revelações feitas pelo BNDES na outra entrevista coletiva da semana passada. Nela, Coutinho anunciou que o banco adotara novas normas para divulgar seus contratos. Depois de anos de negativas, o BNDES fez algo que muitos já julgavam improvável: abriu os números dos financiamento a projetos de empresas brasileiras no exterior entre 2007 e março deste ano. Ficamos, enfim, sabendo que a obra do Porto de Mariel, em Cuba, obteve US$ 643 milhões de crédito, com juros entre 4,4% e 6,91% – e até 25 anos para pagar. Que a Venezuela recebeu um quinto dos valores emprestados pelo BNDES, a taxas entre 3,45% e 4,45%. Que uma única empreiteira, a Norberto Odebrecht, responsável pela construção de Mariel, recebeu 70% dos US$ 12 bilhões bilhões que o banco financiou. Que as principais empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato – Odebrecht, Andreade Gutierrez, OAS, Queiroz Galvão e Camargo Correa – foram todas contempladas com financiamentos a juros subsidiados pelo governo, cuja garantia é
o dinheiro dos nossos impostos.
Por que logo agora o BNDES resolveu divulgar essas informações? Como explicar, depois de anos e anos defendendo o “sigilo bancário” e a “competitividade” de seus clientes, essa súbita conversão a normas do bom senso, que regem bancos de função similar no mundo todo, como o americano Eximbank ou o alemão KfW? Uma possível resposta está na extensa reportagem divulgada hoje pelo site Brio, de autoria de uma equipe internacional de 17 profissionais, coordenada pelo brasileiro Fernando Mello. A reportagem faz um diagnóstico detalhado das obras financiadas pelo BNDES em cinco países da América Latina: Argentina, Bolívia, Equador, Peru e Venezuela. Procurado pelo Brio no início da semana passada, o BNDES informou num comunicado emitido ontem à noite que “começou a divulgar informações sobre suas operações de crédito a partir de 2008, e com os aprimoramentos feitos na semana passada se posiciona na vanguarda em relação às práticas de transparência adotadas por instituições financeiras de desenvolvimento em todo o mu
ndo”. Diante das suspeitas específicas que a reportagem do Brio levantou ao longo dos últimos dois anos, a estratégia de comunicação do BNDES não poderia ser outra.
Tudo começou no dia 26 de março de 2013, quando Fernando entrou no BNDES com um pedido dos dados de financiamento a obras no exterior, com base na Lei de Acesso à Informação. As informações foram solicitadas exatamente nos termos em que foram divulgadas na semana passada. A resposta foi negativa, sob a alegação de que a divulgação violava o sigilo bancário e poderia prejudicar a competitividade das empresas, ao tornar públicas informações estratégicas. Começava então a romaria de Fernando por todas as instâncias previstas pela lei para obter os dados.
Não se trata de uma decisão simples perante a lei. Os argumentos do BNDES não são despropositados, portanto tiveram de ser examinados em detalhe pela área técnica da Controladoria-Geral da União (CGU). Parte deles foi acolhida. O relatório técnico, contudo, apoiou o pleito de Fernando e recomendou que o banco abrisse todos os números. Fez isso com base numa análise comparativa, mostrando como nenhuma das exceções que justificam a preservação do sigilo aqui ou lá fora (o Eximbank é citado) poderia ser aplicada a este caso. O ouvidor-geral discordou. Deu parecer contrário aos técnicos – e vetou a abertura dos dados.