Vazamento de informações vira rotina em grandes negócios com ações no Brasil, mas o órgão de fiscalização do governo não pune ninguém
Um fenômeno inédito tocou fogo no mercado na semana passada. Depois do anúncio do negócio da Ambev com a Interbrew, o co-presidente da cervejaria brasileira, Victorio de Marchi, admitiu que pode ter havido vazamento de informações sobre a operação. Dias antes do anúncio, investidores compraram e venderam ações da Ambev em quantidades muito acima do padrão normal. E não é só. No dia seguinte à divulgação do acordo, as ações preferenciais da Ambev desabaram. Acionistas minoritários se dizem prejudicados pelos controladores da empresa. Em vários países, essas constatações seriam motivo mais do que suficiente para os xerifes de mercado iniciarem uma investigação. Nos Estados Unidos, por exemplo, a apresentadora americana de tevê, Martha Stewart, acaba de ser condenada e pode ser presa por utilizar informação privilegiada em seus investimentos no mercado financeiro. No Brasil, penas como a de Marta são impensáveis. Mesmo com toda a repercussão de casos como o da Ambev, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a quem cabe o papel de xerife de mercado, parece ignorar o assunto. Na quarta-feira, o ainda presidente da instituição, Luiz Cantidiano, entrou de férias. Vai ficar no Rio, com uma filha que foi operada.
Depois, vai a um spa, para emagrecer. E não voltará à CVM. Na sexta-feira 12, Cantidiano enviou carta ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci, renunciando ao cargo. “Deixo a presidência certo de ter conseguido realizar grande parte da tarefa que me propus”, escreveu. Vai reassumir sua atividade como advogado. Para o seu lugar na instituição , o nome mais cotado é o de Marcelo Trindade, ex-diretor da CVM.
Denúncias. Trindade tem um grande desafio pela frente. Nos últimos anos, surgiram várias denúncias de vazamentos de informações ou afrontas dos direitos de acionistas minoritários que ficaram sem resposta. Em setembro de 2003, as ações da Eletropaulo subiram dias antes de o BNDES fechar um acordo de renegociação de suas dívidas. Carlos Lessa, presidente do BNDES, reconheceu: “Pode ter havido vazamento de informações”. Um ano antes, o governo federal havia suspendido o plano de venda de 16,3% de ações do Banco do Brasil. A razão: antes do anúncio do programa, os computadores da Bolsa registraram um movimento com ações do BB três vezes superior à média tradicional. Problemas semelhantes ocorreram com ações da BR Distribuidora e da Petrobrás. “É difícil saber o que são rumores ou vazamentos”, diz Marcos Souza Barros, dono de uma corretora em São Paulo. “Mas a impressão é que os vazamentos de informação são comuns.” A própria CVM admite que os casos são frequentes e muito raramente são investigados até o final. Nos últimos anos, apenas uma dessas suspeitas teve uma conclusão. Marcel Telles, Jorge Paulo Lemann e Carlos Alberto Sicupira, controladores da Brahma, fecharam acordo para pagar multa de R$ 300 mil e acabar com processo de informação privilegiada na formação da Ambev, em 1999. Houve algum outro caso levado até o final? “O número não foge muito de um”, reconhece Elizabeth Machado, superintendente de relações com empresas da CVM.
Existem várias razões apontadas para o problema. Uma delas é falta de estrutura. A CVM tem apenas dez técnicos para vigiar 930 empresas. “A CVM faz um grande esforço, mas não tem meios para cumprir seu papel”, diz o advogado Ordélio Sette. “É um xerife desarmado”. Outra razão é o desgaste político, diz um gestor de recursos financeiros. Nunca houve um grande caso exemplar, como nos EUA. Além disso, falta uma reforma parecida com a do Banco Central. Em meados dos anos 90, os técnicos do BC foram orientados a se fixar menos na burocracia e mais no que há de relevante a ser checado. Quando Cantidiano assumiu o cargo, muitos executivos financeiros acreditavam que a instituição poderia dar uma virada. Advogado experiente na área de direitos de minoritários, Cantidiano negociou ajuda do Banco Mundial para equipar a instituição. Anunciou a contratação de pessoal. Prometeu casos exemplares para meter medo nos infratores. O balanço de sua gestão revela, porém, um retrato desigual.
Sua atuação foi marcada por algumas polêmicas, algumas vitórias dos minoritários e um constante desgaste político. O grande trunfo foi o veto da CVM à proposta de incorporação da Tele-Centro-Oeste pela Vivo (controlada pela Telefônica). Os minoritários julgaram o valor oferecido pelas ações preferenciais irrisório, enquanto a Telefônica não arredava pé da oferta. Ao final, a CVM emitiu um parecer favorável aos minoritários e a Telefônica suspendeu o negócio. Outra vitória foi a determinação para a empresa dinamarquesa Novo Nordisk refazer a oferta pelas ações de minoritários da Biobrás, em 2002. A maior polêmica envolveu o Opportunity. Antes de dirigir a CVM, Cantidiano advogou para o banco. Ao assumir a CVM, foi acusado de travar inquéritos sobre a instituição. Em sua defesa, Cantidiano diz que se declarou impedido de atuar nos casos do Opportunity. Outra operação desgastante foi a da Telemar. No ano passado, a Telemar transferiu as ações de uma de suas subsidiárias, a Oi, de uma companhia para outra do grupo. No processo, a empresa que incorporou as ações sofreu perdas. Uma administradora de investimentos, a Polo Capital, entrou com processo na CVM e na Justiça para reverter a operação.
Reforma na lei. A crise da CVM ocorre no pior momento possível. Investidores se queixam de problemas de mercado, a começar pela negociação Interbrew/Ambev. Dois grandes bancos internacionais, o CSFB e o UBS, divulgaram relatórios com críticas à falta de proteção aos minoritários no Brasil. Os dois documentos lançam a mesma proposta: uma reforma na Lei das Sociedades Anônimas para abolir as ações sem direito a voto (preferenciais), como em outros países. “No Brasil, é muito comum que os minoritários subsidiem os lucros dos controladores”, diz Marcelo Mesquisa, estrategista do UBS. Outra frente de queixas veio de investidores junto à Bolsa. Segundo DINHEIRO apurou, depois do anúncio da Ambev, o presidente da Bolsa de São Paulo, Raymundo Magliano, ligou para um dos membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que assessora o presidente Lula. Magliano se queixou. “O mercado está de luto”, disse Magliano. O provável sucessor de Cantidiano, Marcelo Trindade, chega com a benção de Antônio Palocci, batendo o economista René Garcia Júnior, apadrinhado por José Dirceu. O que o mercado espera é que, desta vez, a virada aconteça. “O País precisa de uma CVM forte. Não dá para que uma instituição dessa importância fique tanto tempo com diretorias vagas, sendo alvo de pressões políticas e empresariais”, diz Waldir Corrêa, da Associação Nacional dos Investidores do Mercado de Capitais.