Brasil dispõe de três limites legais para conter o descontrole nas contas públicas: a Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF, de 2001), a Regra de Ouro inscrita na Constituição) e o Teto de Gastos, aprovado no governo Temer, em 2016, por meio da Emenda Constitucional 95.
Neste ano, os gastos federais foram objeto de cortes de R$ 34 bilhões para cumprir a meta estipulada pela primeira regra (déficit de R$ 139 bilhões). Para não descumprir a segunda, nem paralisar pagamentos de programas sociais, o governo também foi obrigado a aprovar em junho uma autorização excepcional para saldar despesas correntes estimadas em quase R$ 249 bilhões com dinheiro emprestado do mercado.
Agora, é a terceira regra que divide os economistas. Não há risco de descumprimento do teto neste ano, nem provavelmente no próximo. Mesmo assim, em virtude do aumento de gastos já contratado (94% do Orçamento são despesas obrigatórias), a imposição de que não cresçam acima da inflação se fará sentir daí em diante como restrição draconiana, disparando gatilhos da lei que poderiam paralisar atividades do governo.
Na proposta enviada ao Congresso para o Orçamento de 2020, o ministério da Economia previu míseros R$ 19 bilhões em investimentos, um valor ridículo perto da necessidade do país (superior a R$ 200 bilhões). Levando em conta que, apesar da reforma da Previdência, despesas com pensões, aposentadorias e “seguridade social” continuarão a crescer e que nenhuma proposta de reforma tributária prevê aumento na carga de impostos, o Brasil tem um encontro marcado com o abismo fiscal daqui a dois ou três anos.
Uma proposta lançada na semana passada para discussão pelos economistas Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco sugere a revisão do teto a partir de 2023, com exclusão dos investimentos da conta dos gastos e permissão de crescimento ligeiramente acima da inflação. É uma solução de compromisso, diante da pressão crescente em Brasília – que chegou a contar com um apoio volátil do próprio presidente Jair Bolsonaro – pelo fim do teto.
\”Elevar hoje o teto é inócuo em relação a política fiscal\”, disse Giambiagi em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo. Será então que o Brasil deveria mesmo revê-lo neste momento? Excluindo o oportunismo político daqueles que sempre defendem aumento de gasto público como forma de ampliar seu poder de distribuir recursos, há divergência entre os economistas na resposta.
Nomes como o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa (governo Dilma Rousseff) acreditam que passou da hora de rever as regras do teto. Para Barbosa, a regra deveria ter sido estipulada por uma lei ordinária que, em vez de congelar os gastos em valores reais por dez anos, tivesse cláusulas de escape em caso de recessão. Seria possível, em situações de contração ou paralisia, usar gastos do governo para estimular setores como infraestrutura, educação, saúde e segurança.
Em favor dessa visão, pesa o fato de que o país atravessa um momento de crescimento aquém do potencial (crescemos em torno de 5,5 pontos percentuais a menos do que poderíamos). Mesmo economistas liberais têm aderido à ideia de que há necessidade de algum estímulo fiscal, restrito e concentrado, para fazer deslanchar obras e resgatar uma confiança que, por si só, o investidor tem sido incapaz de demonstrar. Citando um artigo de Simon Wren-Lewis na London Review of Books, Barbosa destaca o risco de que, como na Grécia e noutros países europeus, o rigor fiscal se transforme em \”austericídio\”.
Mas a necessidade de um estímulo fiscal, desde que restrito e temporário, não implica necessariamente a revisão do teto. Tudo depende de quanto se gasta, de que forma, por quanto tempo. É nesse ponto que as despesas primárias já contratadas para o futuro – em que pesem todas as reformas já realizadas ou ainda na prancheta – continuarão a sufocar a capacidade de investimento do Estado.
Outro grupo de economistas, formado por Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Marcelo Gazzano, sustenta que relaxar o teto significará apenas autorizar o governo gastar mais e ampliará ainda mais a dívida pública. “Ao contrário do que alguns parecem acreditar, a reforma da Previdência mitiga, mas não resolve o problema fiscal”, escrevem no jornal Folha de S.Paulo. Numa simulação que apresentam, o aumento de gastos do governo só reduz a dívida do governo se acompanhado de crescimento da ordem de 2,5% e se os juros reais (descontada a inflação) estiverem abaixo de 2%.
O economista Samuel Pessôa chama a atenção para a necessidade de restringir o crescimento obrigatório das despesas, em especial a folha de pagamento do funcionalismo, para garantir o equilíbrio fiscal no longo prazo. Em vez de mexer na regra do teto, diz ele noutro artigo, seria melhor garantir que os governos estaduais tivessem como cortar pessoal, reduzir jornadas de trabalho e segurar transferências compulsórias a Legislativo, Judiciário e Ministério Público.
Qualquer mudança dependerá do Congresso. Independentemente da visão econômica a que se possa subscrevee, a questão central é, portanto: com que gastar capital político? A aprovação da reforma da Previdência e da nova lei de desburocratização demonstraram que existe ímpeto reformista no Legislativo. Vale a pena usá-lo para mexer no teto de gastos ou para aprovar medidas que contenham a expansão deles?
Embora não sejam mudanças excludentes, o teto – assim como os outros dois limites estipulados em lei – não passa de um alarme para o desequilíbrio estrutural profundo do Estado brasileiro, que continua a queimar riqueza gastando mais do que poderia. Cortes e restrições que poderiam mudar esse quadro, contendo os focos de incêndio, costumam esbarrar em resistências corporativas ou ideológicas.
Desligar o alarme seria um erro evidente. Seria possível projetar outro alarme melhor, como sugerem Tinoco e Giambiagi? Provavelmente. Mas não ajudaria em nada a debelar o fogo – além de dispersar uma energia política preciosa, essencial ao combate às chamas.