Essencialidade dos grãos na recuperação judicial de tradings agrícolas
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16 de setembro de 2025A tradicional concepção do direito público brasileiro vem sendo repensada nas últimas décadas, em especial em razão da interconexão de seus principais temas com os demais ramos do direito, notadamente após o advento da Constituição de 1988 que consagrou o respeito aos direitos fundamentais como decorrente do Estado democrático de Direito.
Fala-se, de um lado, em publicização do direito privado, expressão cunhada por autores civilistas, o que demonstra uma inquietação da doutrina com a chamada relativização da autonomia da vontade, mormente com a inspiração do Código Civil de 2002, que solidificou a adoção do sistema aberto de normas no âmbito do direito civil nacional. Por outro lado, os doutrinadores afetos ao direito público chamam o fenômeno de privatização do direito público, debatendo-se sobre a possibilidade de utilização de fórmulas próprias do direito privado para os institutos tradicionalmente afetos ao direito público, com as conveniências e vicissitudes daí decorrentes.
De um lado a outro, observa-se que a sociedade atual, cada vez mais complexa, estabelece relações privadas permeadas de conteúdo publicista, com a relativização da autonomia da vontade e a exigência da boa-fé objetiva dos contratantes em geral, enquanto o Estado se vê compelido a adotar métodos próprios das relações privadas para suas atividades, o que lhe traz desafios nunca enfrentados.
Nesse cenário, a conciliação e a mediação passaram a ser meios de solução de conflitos utilizados pelo poder público hodiernamente. Se, por um lado, a prática pode ser entendida como positiva, na medida em que condecora uma política de anteposição bélica da administração pública, por outro, não se pode perder de vista que o poder público lida com interesses públicos indisponíveis e, nessa medida, não pode pautar sua conduta pelos interesses secundários da administração e dos particulares que com ela estabelecem relações, devendo respeito ao interesse primário de toda a coletividade.
Para a temática dos precatórios, os acordos para pagamento dos valores devidos podem ser entendidos como parte desse fenômeno, já que a própria Constituição autorizou aos entes devedores tal prática a partir da EC nº 62/2009, reconhecida como válida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas ADIs nº 4.357 e nº 4.425.
A recente promulgação da Emenda Constitucional nº 136/2025 inaugura um novo marco na disciplina dos acordos com deságio para pagamento de precatórios no Brasil, estabelecendo, de forma inequívoca, a coexistência de dois modelos jurídicos distintos: um aplicável aos entes federativos submetidos ao regime especial de pagamento de precatórios, previsto no artigo 101 e 102 do ADCT, e outro destinado aos entes vinculados ao regime geral, conforme introduzido pelo §29 do artigo 100 da Constituição.
No âmbito do regime especial, os acordos com deságio são instrumentos de amortização da dívida pública judicial, com previsão constitucional expressa de deságio limitado a 40% constante do §1º do artigo 102 do ADCT. Tal limitação visa a preservar o valor do crédito judicial e evitar a prática de preço vil, conferindo ao credor uma alternativa menos onerosa à cessão de crédito no mercado secundário.
Alguns entes devedores têm optado pelo escalonamento do deságio, respeitando o teto o máximo de 40% fixado pela Constituição, e tomando por patamar mínimo outros fatores, como a proximidade do prazo final de pagamento, conforme a expectativa de recebimento do crédito no tempo, outorgando preferência de recebimento em razão da idade, estado de saúde e/ou deficiência quanto à parcela remanescente de seus créditos após pagamento da parcela superpreferencial, de modo estimular e melhor canalizar a utilização dos recursos destinados a isso.
Por outro lado, para o regime geral, inaugurado pela EC 136/2025, foi estabelecida uma nova modalidade de acordo direto entre o credor e o ente devedor, agora como instrumento de garantia de recebimento do crédito, mediante renúncia parcial do valor devido, com pagamento em parcela única até o final do exercício seguinte, apenas caso o precatório não tenha sido quitado em razão da limitação constitucional de repasse de valores ressuscitada pela nova emenda.
Diferentemente do regime especial, não houve fixação de percentual máximo de deságio para o regime geral e transferiu-se ao credor a faculdade de optar pela celebração do acordo, cabendo ao presidente do Tribunal de Justiça a responsabilidade de controlar sua legalidade e evitar a aplicação de valores aviltantes. Trata-se, portanto, de um direito subjetivo, cujo descumprimento poderá ensejar o sequestro de valores, especialmente diante da ausência de disponibilidade financeira nas contas especiais, o que fatalmente ocorrerá com a nova limitação anual de repasses.
Essa inovação legislativa, no entanto, gerou uma tensão interpretativa com o regime especial já previsto no artigo 102, §1º do ADCT, que também trata de acordos com deságio, mas com regras próprias quanto à iniciativa, limite percentual e forma de pagamento.
Isso porque o artigo 101, §6º da mesma emenda estendeu a aplicação dos §§23 a 30 do artigo 100 ao regime especial, o que inclui, em tese, o §29. Essa sobreposição normativa aparenta configurar uma antinomia jurídica, pois os dois dispositivos tratam de acordos com deságio sob lógicas distintas: enquanto o regime especial prevê acordos facultativos, com deságio limitado a 40% e possibilidade de pagamento parcelado, o novo modelo do §29 estabelece um direito subjetivo do credor, sem limite constitucional de deságio e com pagamento em parcela única até o final do exercício seguinte, desde que não haja disponibilidade financeira em razão da limitação dos repasses anuais.
Para compatibilizar ambos os dispositivos e preservar a coerência do ordenamento constitucional, propõe-se uma interpretação sistemática segundo a qual o §29 do artigo 100 somente se aplica ao regime especial de forma subsidiária e complementar — isto é, nos casos em que não houver previsão orçamentária suficiente para a realização dos acordos nos moldes do artigo 102, §1º do ADCT. Essa leitura evita a revogação tácita do regime especial e assegura que o novo modelo funcione como cláusula de escape, acionável em situações excepcionais de insuficiência fiscal.
Essa antinomia, longe de ser um simples conflito técnico, revela a patologia normativa que marca o regime constitucional dos precatórios. A sucessão de emendas constitucionais, muitas vezes orientadas por interesses fiscais imediatos, tem fragmentado o sistema e dificultado a construção de uma política judiciária estável e coerente para o pagamento de dívidas judiciais. O enfrentamento dessa realidade exige mais do que ajustes pontuais: é necessário que o Poder Judiciário assuma protagonismo na formulação de uma política institucional própria para os precatórios, pautada pela efetividade dos direitos fundamentais, pela previsibilidade dos pagamentos e pelo respeito à coisa julgada — e não por medidas que visam apenas a equacionar o orçamento público.
A coexistência dos dois modelos exigirá, portanto, uma atuação coordenada entre os órgãos jurisdicionais e administrativos, de modo a evitar conflitos de interpretação e categorias diversas de credores, assegurando a uniformidade na aplicação do direito, medida de difícil concretização ante as constantes investidas legislativas nessa matéria.
Há estratégias importantes a serem adotadas pelos entes devedores para potencializar a redução da fila e a utilização dos recursos destinados aos acordos, as quais não são comumente observadas.
Inicialmente, é necessário identificar e classificar todos os precatórios existentes, considerando aspectos como valor, tipo (alimentar ou comum), data de expedição, estágio processual e identidade do credor. Essa classificação possibilita a priorização de negociações com base em critérios específicos, como o potencial de desconto e a urgência do pagamento.
Para atingir um grande número de credores, é importante que se utilize diversos canais de comunicação, como cartas, e-mails, plataformas digitais e audiências conciliatórias mediadas pelo Poder Judiciário, se necessário. O objetivo é garantir a ampla divulgação das propostas de negociação e facilitar o acesso à informação para todos os credores, e não se dedicar apenas à publicação de editais em canais oficiais, que não são acessíveis ao cidadão comum.
Todo o processo de negociação deve ser conduzido com transparência e participação do respectivo tribunal, garantindo a divulgação pública das informações relevantes e incentivando o controle social.
Essa abordagem integrada, combinando análise criteriosa, comunicação eficaz, gestão eficiente e transparência, busca maximizar a redução do valor total pago pelos entes devedores.
No estado de São Paulo, a adoção de um escalonamento mais favorável dos deságios trouxe um aumento significativo no número de acordos, o que impactará na diminuição da fila de credores.
A alteração do Decreto nº 62.350, de 26 de dezembro de 2016, que antes previa uma alíquota fixa de 40% de deságio, passou a prever os seguintes escalonamentos:
Artigo 5º. O acordo poderá ser celebrado mediante proposta de desconto, a título de deságio, de até 40% (quarenta por cento) sobre a totalidade do crédito do proponente, em valor atualizado, sendo o desconto de: I — 20% para precatórios até o ano de ordem de 2015, inclusive; II — 25% para os precatórios dos anos de ordem de 2016 e 2017; III — 30% para os precatórios dos anos de ordem de 2018 e 2019; IV — 35% para os precatórios dos anos de ordem de 2020 e 2021; V — 40% para os precatórios do ano de ordem de 2022 e posteriores.
Segundo dados fornecidos pela Depre, no ano de 2024 a Fesp realizou em média 495 acordos com deságios de precatórios por mês. Após a publicação da nova regulamentação, os acordos quase triplicaram, subindo para 1.236 por mês até junho de 2025, o que demonstra o sucesso da medida.
Portanto, diante da novel arquitetura constitucional da EC nº 136, os acordos com deságio ganharão nova e importante dimensão também para os entes do regime geral, eis que em pouco tempo certamente serão uma das únicas alternativas de recebimento do precatório conferidas ao credor, caso prevaleça a atual limitação inconstitucional de repasses de valores imposta pela nova emenda.
Fonte: Conjur
