Ao longo do primeiro semestre de 2024 muito se discutiu sobre o Projeto de Lei 03/2024, que busca essencialmente reorganizar as atividades do administrador judicial em processos de falência.
A intenção inicial de modificar as funções do administrador judicial merecia importantes reparos, mas se compreendia a noção geral e o que era pretendido. Havia uma técnica por trás que explicava sobre a possível necessidade de que, para dar mais poderes administrativos ao administrador judicial, seria importante que houvesse um eventual alinhamento de interesses com os credores, ainda que a proposta concreta gerasse importantes e potenciais conflitos de interesses na figura do gestor fiduciário, dentre outros problemas.
Assim, na perspectiva de melhorar o texto, a Câmara dos Deputados alterou drasticamente o PL 03/2024. Tais modificações seguramente pioraram o texto. Apenas como exemplo central, foi estabelecido um prazo limite de mandato para administradores judiciais nas falências, impondo obrigação de imediata substituição de todos os administradores judiciais em quase todas as falências que estivessem em andamento após tal período, ou seja, de forma imediata à vigência da nova legislação, caso aprovado.
Existem muitos casos de falências que tramitam por mais de uma década de forma desorientada em atuações técnicas questionáveis. Por outro lado, o longo tempo de tramitação pode se justificar facilmente por problemas práticos que podem derivar de dificuldades de citação em ações que visam atingir o patrimônio, busca de bens no exterior, controvérsias envolvendo ocultação de bens, entre outros motivos habituais. A simples definição temporal não é critério seguro ou razoável para indicar uma adequada ou inadequada atuação.
As eventuais dificuldades técnicas do juízo, do cartório e de administradores judiciais são elementos exemplificativos que se fazem presentes e que podem dificultar a entrega célere da prestação jurisdicional. Em parte, tais questões já estão sendo resolvidas e corrigidas por meio da criação de Varas Especializadas Regionais, pois permitem que o juízo e o cartório tenham maior condição técnica de conhecer sobre a matéria e orientar os trabalhos com maior precisão, uniformidade e celeridade.
O mecanismo de regionalização de Varas permite, na prática, um incremento de standard dos profissionais especializados para o exercício da função de administradores judiciais, ao passo que a vivência prática permite ao magistrado avaliar a efetividade dos trabalhos, com intensificação da análise comparativa da atuação de administradores judiciais, possibilitando inclusive o cotejo entre os modelos e as soluções concretas apresentadas por tais profissionais.
Não há dúvidas que, dentre outros fatores, a atuação de um administrador judicial adequadamente profissionalizado irá contribuir para o processamento mais célere e preciso do procedimento falimentar, sendo que o contrário também tende a ser verdadeiro. Um administrador judicial que não seja devidamente diligente, que esteja desatualizado e não observe as boas práticas, tende a colaborar para que um processo perdure por mais anos, com menor efetividade nas soluções orientadas ao caso.
Nesse sentido, a especialização de Varas parece ter sido a melhor ferramenta que ocorreu para que nas próximas estatísticas jurimétricas tenhamos grande aceleração nos casos, alinhando-se à importante reforma da Lei 11.101/2005, ocorrida em 2020. Além disso, necessário pontuar a notável evolução, com a migração para processos eletrônicos, que em tempos recentes se tornou a realidade na imensa maioria dos casos em tramitação na Federação.
Dentro desta perspectiva, sabe-se que são cinco a, no máximo, dez casos concretos que motivam o PL 03/2024, por inconformismo de credores, devedor ou outros players interessados na atuação de administradores judiciais. Para tais casos, independentemente de se analisar se houve boa ou má condução, certamente existem formas mais adequadas de expressar ideias similares às pretendidas no projeto de lei.
Como exemplo, existe notícia de desconforto de influentes players do setor financeiro com a administração judicial em caso que tramita na Região Sudeste por conta de não querer se admitir a cessão de precatórios, para, com isso, antecipar recebimentos. Por outro lado, deve-se admitir que é legítima a intenção de que seja providenciada a cessão de precatórios para agilizar pagamentos, ainda que aplicável deságio aos valores.
Por outro lado, também é legítimo o posicionamento de aguardar o tempo necessário até o pagamento integral do precatório e a reversão do valor integral para pagamento dos credores. Ambas as posições são legítimas e admissíveis. Portanto, não podem ser simplesmente consideradas inadequadas. Uma solução legislativa seria a criação de uma regra geral, via reforma, que preveja diretriz para cessão de direitos em situações similares.
No exemplo citado, é defensável o posicionamento de um administrador judicial ao propor a cessão do crédito, ainda que com deságio, para trazer a valor presente e encerrar o quanto antes a falência. Essa é uma posição admissível e legítima que, por si só, não deveria resultar na substituição do administrador judicial e nomeação de outro por parte de credores. Na inexistência de regra específica, a decisão sobre a possibilidade ou não de cessão deste crédito dependerá da atuação do juízo falimentar e da orientação do administrador judicial.
Outra situação concreta que motiva o teor do projeto de lei, e merece destaque, é a que diz respeito a possível exagero de remuneração do administrador judicial ou até mesmo excesso em relação à previsão já existente na Lei 11.101/2005. Igualmente, nesse caso não parece ser necessária a substituição do administrador judicial.
Em tais casos, basta que ocorra uma análise por parte do Judiciário desta ponderação específica por meio de adequada provocação pela parte interessada. Mesmo que tal análise não contente a todos os interessados, isso é natural no Poder Judiciário.
Em complemento, é uma situação totalmente específica, ao passo que não há notícias de que ocorra um excesso em relação à remuneração na imensa maioria dos casos. Se houver algum problema, é algo completamente pontual.
A proposta de tabelar honorários por faixas é possível desde que se observe uma adequação da sugestão legislativa e, igualmente, alguma forma de melhor organização sobre os montantes, por conta da existência de ad valorem, que não é considerado na versão aprovada na Câmara. Desta forma, seria essencial um ajuste de projeto, observado que a modificação pretendida teria incidência residual e provavelmente não vigeria para casos em andamento.
A base de cálculo de honorários também é modificada com o projeto de lei. Em vez de o administrador judicial ser remunerado com base nos ativos obtidos ao longo de uma falência, passa a ser concretamente utilizado o critério de credores pagos durante o seu mandato.
Essa modificação de regra apenas faz sentido com a existência de mandatos fixos para prestação das atividades do administrador judicial. Ocorre que os casos mais complicados justamente preveem um largo período de tempo de tramitação, o qual justifica que ocorra facilmente maior lapso temporal na comparação com o mandato conferido ao administrador judicial, notadamente nos casos em que, por exemplo, encontre como únicos ativos bens que precisam ser alvo de ações revocatórias, ações de responsabilidade ou que precise repatriar bens do exterior, com resistência do devedor ou de terceiros juridicamente interessados.
Tal situação, se aprovado o projeto, geraria enorme desestímulo econômico, na medida em que os administradores judiciais que fossem os primeiros mandatários, nesses casos, deixariam de receber qualquer retribuição pelo trabalho exercido, visto que, habitualmente, o deslinde destas questões costumam ocorrer após o término do mandato que ora se pretende conferir.
Em outras palavras, na inexistência de estímulo correto, o primeiro administrador judicial provavelmente nada receberia por elaborar a estratégia e despender grande esforço em prol dos credores. E poderia ocorrer que o seu sucessor no mandato, sem relevante esforço, apenas tenha que se apropriar dos valores obtidos com o esforço do administrador judicial que ele antecedeu. A regra jurídica posta não faz nenhum sentido jurídico ou econômico, tampouco pode ser aproveitada.
A remuneração do administrador judicial também sofre grande interferência nos casos de recuperação judicial, porquanto a regra sugerida permite a compreensão, no mínimo controversa, de que os honorários estariam atrelados a eventual deságio do plano de recuperação judicial. O Judiciário tem mostrado enorme esforço em tentar adequar os honorários de administradores judiciais a uma realidade concreta, com a exigência de orçamentos e a necessidade de homologação pública de acordos, que estão sujeitos ao questionamento de credores, Ministério público e quaisquer outros interessados.
Inclusive, há casos de repercussão, como a recuperação judicial da Oi e da Samarco, em que houve concreto questionamento sobre honorários do administrador judicial, e, com isso, uma análise sobre a real adequação ao caso concreto. Não faz sentido que, após uma estimativa via orçamento, cálculos e adequação à necessidade laboral do caso para a prestação de serviço essencial ao processamento, bem como da respectiva estrutura para atender o caso, um crédito extraconcursal como este seja submetido ao deságio do plano e, com isso, faça ruir qualquer análise criteriosa de custos e orçamentos para a realização da atividade concreta.
O projeto, resumidamente, tem como um de seus principais efeitos mais nefastos a substituição geral de administradores judiciais, de forma desproporcional e tendente a causar severo prejuízo nas falências em andamento.
O objetivo prático velado do projeto é de consertar os possíveis vícios em amostra insignificante de casos a partir da troca de administradores judiciais e de mecanismo de escolha de figura similar, nomeada como gestor fiduciário.
A troca desmedida e geral de administradores judiciais de procedimentos em curso tende a resultar na perda de informações específicas e relevantes sobre a devedora e seus credores, inclusive de dados sensíveis, como aquelas diligenciadas de forma administrativa na investigação sobre eventuais desvios patrimoniais.
Nos casos de substituição ou destituição de administradores judiciais (situações que na prática ocorrem por motivos variados e, de certa forma, de modo habitual, em tantos casos), existem dificuldades até mesmo em dar continuidade ao quadro geral de credores, na medida em que se perde a confiabilidade da informação anterior e, ainda assim, não se afasta a responsabilidade do administrador judicial que sucede caso confie equivocadamente em informações desatualizadas.
Não é factível ao administrador nomeado em substituição simplesmente confiar que a relação anterior está correta, ao passo que poderá responder por eventual erro não verificado.
Após a troca generalizada de administradores judiciais, o Projeto tenta fixar mandatos de atuação, admitindo apenas uma recondução. Na prática, os casos mais complexos tendem a adicionar uma dificuldade de sucessivas e desnecessárias substituições de administradores judiciais.
Por fim, necessário pontuar que em razão do novo arcabouço legal decorrente da reforma de 2020, a maior parte das falências tende a ser encerradas em curtos espaços de tempo, em especial porque o artigo 114-A da Lei 11.101/2005 prevê expressamente que, nos casos de inexistência ou insuficiência de ativos para suportar os custos do procedimento, deverá ocorrer o encerramento sumário da falência. Os estudos jurimétricos indicam que essa é a realidade na maioria dos casos pesquisados.
Por outro lado, no menor número de casos, em que restar demonstrada a necessidade de se buscar por bens do devedor, e não raras vezes por meio de desconsideração da pessoa jurídica ou responsabilidade pessoal dos sócios e administradores, sabem todos os que atuam na matéria que é essencial seguir as regras procedimentais, sob pena de eventuais nulidades e suas consequências jurídicas.
A necessidade de se observar as regras procedimentais, tais como as de citação e intimação dos réus (alguns possivelmente residentes no exterior), oitiva de testemunhas, realizações de perícias, dentre outros aspectos, demandam tempo. Assim, considerar o simples transcurso do tempo de tramitação destes procedimentos, por meio de mandatos, tende a impactar e desestimular o administrador judicial a seguir com tais buscas patrimoniais.
Pela atual redação do PL 03/2024, podem ser substituídos justamente no momento em que os frutos do seu trabalho estariam sendo entregues à massa falida. No máximo poderia ser criada uma regra, inclusive de boa prática, que exigisse um relatório geral do caso a cada cinco anos, por exemplo, para gerar um marco de avaliação do magistrado e análise sobre eventual substituição ou destituição do administrador judicial.
No tocante ao primeiro motivo do projeto, que era a criação da figura do gestor fiduciário (administrador judicial com outro nome) nomeado pelos credores em falências, convém observar que essa figura apresenta diversos problemas já comentados em diversos artigos acadêmicos, inclusive no tocante a eventual conflito de interesses, visto que o fiscalizador seria escolhido pelos fiscalizados.
Por outro lado, mesmo que o projeto fosse ajustado para permitir maiores poderes administrativos ao administrador judicial, o que parece realmente passível de aprimoramento, convém observar que é ínfimo o número de casos em que a complexidade pode permitir uma real utilidade de um avançado plano de falência, designação de assembleia para a escolha de um gestor fiduciário e arcar com os custos respectivos.
Por sua vez, o projeto impõe ao magistrado a convocação de assembleia geral de credores irrestritamente em todos os casos, gerando demora e ônus para uma imensa maioria de falências em que a estrutura é ilógica e desnecessária. Sequer existe ressalva em relação a casos em que não se encontra nenhum ativo, muito menos para aqueles em que os ativos são de baixíssimo valor, demonstrando novamente a ausência de proporcionalidade das medidas sugeridas. Fosse uma figura tecnicamente mais ajustada e facultado ao juiz convocar a assembleia nos casos entendidos como pertinentes, seria mais admissível o novo instrumento.
Com estas considerações, inegável a necessidade de que sejam promovidos estudos e debates sérios e responsáveis no intuito de aprofundar as conexões com importantes temas da Lei 11.101/2005. A reforma legislativa é salutar para o aperfeiçoamento dos procedimentos, desde que se observe um conteúdo adequado e que realmente promova melhorias no ordenamento jurídico brasileiro.