Por fim, é no plano da aplicação que o princípio inscrito no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição sai da abstração para o caso concreto. É nesse momento que se compreende o real significado do mandamento “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. É dizer, não se tomará a liberdade ou os bens de alguém sem que sejam respeitados os direitos fundamentais insculpidos na Constituição e na legislação que a complementa.
Portanto, discutir a delação premiada significa inseri-la no contexto da função estatal voltada ao esclarecimento de determinados fatos e cuja rigorosa observância dos direitos fundamentais relacionados com o devido processo legal é pressuposto de validade e legitimidade.
A análise dos institutos jurídicos não pode ser desconectada da realidade (texto e contexto)[1]. Assim, a verificação da constitucionalidade da delação premiada passa obrigatoriamente pelos modos de aplicação da medida. Sob esse ponto de vista, receio ser altamente duvidosa a relação de conformidade entre as normas infraconstitucionais que disciplinam a delação premiada e o texto constitucional.
O princípio da legalidade desempenha papel central para a garantia dos direitos fundamentais. Isto ninguém discute. Um dos aspectos pouco debatidos, porém, diz respeito ao fato de que o legislador atua na imposição de limites ao poder de restringir direitos fundamentais.
A Constituição atribui ao legislador o delineamento dos limites dos direitos e dos limites às restrições dos direitos: os limites dos próprios limites[2]. A lei cria procedimentos, estabelece competências ou delimita as competências já desenhadas na Constituição, estipula prazos e prescreve requisitos a serem observados[3].
No caso da delação premiada, no entanto, basta uma simples mirada sobre os dispositivos legais vigentes antes da Lei 12.850/2013 para concluir que não havia suficiente proteção legislativa em nosso ordenamento jurídico. Até a edição dessa lei, não havia definição legal precisa do instituto. Todos os dispositivos legais que a ele faziam referência o inseriam no contexto de regulamentação de outros temas[4].
De modo geral, essas normas previam a possibilidade de sensível redução da pena para o coautor ou partícipe que, através de confissão espontânea, prestasse às autoridades esclarecimentos a respeito das infrações penais e sua autoria, bem como sobre a localização e recuperação do produto do crime[5].
Nenhum desses dispositivos, porém, tratava da delação premiada com minudência, de modo a estabelecer os limites que deveriam ser observados para tutelar os direitos das partes e realizar a custódia da legalidade das provas.
A principal consequência desse vazio era a imensa e indevida margem de discricionariedade concedida aos intérpretes, especialmente aos juízes, para, em substituição ao legislador, “criar” regras ad hoc e em caráter retroativo, mesmo sem possuir legitimidade constitucional para tanto.
A Lei 12.850 de 2013 constitui o primeiro marco legal efetivo da delação premiada, não obstante a péssima redação que dá causa a uma série de dúvidas em pontos cruciais. Uma das poucas questões que ficaram claras, por força do seu artigo 3º, diz respeito à introdução da delação premiada formal e definitivamente na classe dos métodos ocultos de investigação.
Seguindo a tradição legislativa, o instituto foi denominado de “colaboração premiada”, verdadeiro eufemismo legal voltado a diminuir a carga semântica negativa. No entanto, a expressão delação premiada já se consagrou no meio jurídico, ultrapassou suas fronteiras e tornou-se corrente também nos meios de comunicação.
A delação premiada está disciplinada nos artigos 4º a 7º da Lei 12.850 de 2013, no capítulo reservado à Investigação e aos Meios de Obtenção da Prova. Não obstante a expressa menção à matéria típica de direito processual, os benefícios previstos ao réu delator têm nítido caráter material, tais como a redução das penas e a fixação do respectivo regime de comprimento.
A Constituição manifesta em seu artigo 5º, inciso LXIII, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”.
O significado normativo desse dispositivo é muito mais rico do que a simples possibilidade de permanecer em silêncio. Ele reflete, em verdade, o direito de que ninguém será obrigado a produzir prova contra si mesmo.
A delação premiada pressupõe confissão. Ou seja, o coautor ou partícipe do crime confessa sua conduta e revela, entre outros dados, a identidade os demais agentes, com vistas ao perdão judicial, à redução da pena ou, ainda, ao suposto direito de não ser denunciado.
Antes da edição Lei 12.850/2013, os dispositivos legais acima referidos diziam que a delação deveria ser espontânea. Já o artigo 4º da lei vigente fala em colaboração voluntária. Ora, espontaneidade e voluntariedade significam condutas sem incitação ou constrangimento[6].
Em nosso ordenamento jurídico, toda e qualquer forma de violência ou ameaça, física ou moral, leva à invalidade da prova. Objetivamente, portanto, a obtenção da delação sob tortura seria tão ilegal quanto a ameaça de imposição de pena ou a utilização das prisões temporária e preventiva para esse fim.
Porém, a experiência forense mostra que quase todas as delações são feitas por pessoas que se encontram sob prisão cautelar, quando a espontaneidade ou voluntariedade do arguido se encontra intensamente comprometida.