A crise financeira global deve mudar a forma de atuação tradicional dos bancos centrais. Hoje eles ainda estão imersos na gigantesca tarefa de retirar EUA e Europa da recessão, depois de terem usado trilhões de dólares para salvar os bancos de si próprios. Mas a prevenção de novas crises bancárias exigirá uma visão mais ampla do que a de garantir a estabilidade dos preços e o crescimento econômico. A tendência que se desenha no horizonte é a de um papel mais amplo da política monetária no combate à formação de bolhas de ativos, uma heresia para a qual se inclinam hoje até mesmo economistas de boas credenciais conservadoras.
A ortodoxia dominante, encarnada por Alan Greenspan e, até antes da crise, por Ben Bernanke, presidentes do Fed americano, reza que a taxa de juros é um instrumento inadequado para atacar a aceleração dos preços dos ativos. Além disso, julgam difícil até mesmo diagnosticar em que momento e por quais razões uma bolha se forma. E, além da complexidade e incerteza dessa tarefa, seria nocivo penalizar toda a economia com juros maiores porque partes dela não estão se comportando com sobriedade. No final das contas, nada mais resta que a política de regulação e supervisão para impedir exageros e, depois, a crença generalizada de que é mais fácil e rápido consertar a bagunça depois que as bolhas estouram. A visão subjacente é a de que os mercados sabem evitar os excessos e, nos casos contrários, os BCs entram para estancar a sangria. Os fatos desmentiram esse credo.
A supervisão e a regulação falharam miseravelmente e o demorado conserto da crise teve um custo astronômico. Apenas depois de uma falência sem precedentes do sistema bancário mais poderoso do mundo é que se descobriu que inflação e crescimento não são sistemas de alarme adequados para crises em formação, como não haviam sido em dezenas de episódios anteriores. Dessa forma, sob a fachada algo paradisíaca da “Grande Moderação” (1985-2005), as bolhas preparavam o terreno onde quase foi enterrado o sistema financeiro global.
Estão no BIS, o banco central dos BCs, os economistas que alertaram para a catástrofe a caminho. William White, o chefe do departamento de Economia do BIS até junho de 2008, foi um dos principais deles. Ele é hoje um firme defensor de uma política ativa de combate a bolhas, com todos os instrumentos possíveis, taxa de juros inclusive. A melhor arma para tratá-las é o “aperto preventivo”, que pode incluir um aumento dos juros mesmo quando a inflação não parece exigi-lo. Seu diagnóstico é abertamente polêmico.
White crê que os sistemas financeiros liberalizados são “intrinsicamente pró-cíclicos”: boas notícias elevam simultaneamente a oferta e a demanda de crédito, inflam ativos e gastos e criam ainda mais otimismo, até que a exuberância racional torna-se perigosa loucura. Uma política monetária frouxa e juros baixos alimentam uma onda de bolhas há muito tempo. Desde 1987, quando a bolsa de Nova York caiu mais de 20% em um só dia, com Greenspan no comando do Fed, a fórmula única usada para debelar crises foi injetar liquidez e derrubar o custo do dinheiro. Ela foi aplicada quando a corretora americana LTCM provocou uma minicrise no fim dos anos 90, e quando a euforia pontocom acabou em 2001.
O remédio deixou aos poucos de funcionar e trouxe problemas colaterais mais graves do que os que estava atacando. A prova, segundo White, é que em 2002, mesmo com estímulos fiscais e relaxamento monetário sem precedentes, a recuperação da economia americana foi a mais fraca desde o fim da II Guerra. Os críticos dizem que não é claro que houvesse excesso de crédito nos EUA antes da crise, se ele for medido como proporção do PIB, mas esse argumento, como mostram estudos do FMI, deixou de levar em conta a gigantesca pilha de títulos escondida fora do balanço dos bancos, a enorme deterioração nos padrões de empréstimos e o endividamento recorde das famílias americanas.
White parte do princípio de que o preço dos ativos é um sintoma, não a causa. É uma afirmação óbvia, mas dela decorrem respostas a alguns problemas complexos. Entre eles, o de que um BC não precisa escolher um ativo-alvo a acompanhar, ou enfrentar a tarefa ingrata e cruel de determinar a partir de que valorização de um determinado ativo há uma bolha em formação – e não uma simples evolução compatível com os fundamentos da economia. Confrontado com a rápida expansão dos agregados de crédito e monetários, diz White, com o aumento em vasta gama de ativos e nos gastos, o BC saberia que a política monetária “tem que ser mais apertada”. Isso não necessariamente tem de levar à elevação dos juros, mas não haveria qualquer remorso em fazê-lo. Primeiro, porque a alta dos juros dá um alerta ao mercado de que o BC não está brincando em serviço. Depois, por efeito dos juros mais altos, há maior chance de que o desinflar da bolha seja mais gradual e menos brusco e desordenado do que se a sabedoria convencional fosse aplicada, isto é, se nada fosse feito. Além disso, o BC tem mais munição para reduzir os juros depois do estouro da bolha, pois haveria mais espaço antes deles chegarem a 0%, como aconteceu nos EUA, deixando a autoridade monetária sem uma de suas principais armas.
O FMI aceita a ideia de que “uma reação monetária mais forte diante de sinais de uma bolha de crédito e ativos pode ser útil”. É tarde, mas os economistas do Fundo estudaram 44 crises anteriores e constataram a presença de ingredientes comuns que tornaram mais previsível sua eclosão, como o aumento do crédito, dos investimentos em residências, dos preços dos imóveis e do tamanho do déficit em conta corrente. Todos eles estavam presentes na crise americana. O Fundo ainda prefere os instrumentos de regulação e supervisão do que o uso dos juros, que, porém, deixou de ser anátema. A ênfase do FMI é na fonte de financiamento das bolhas. Se por detrás delas se esconde o sistema financeiro e a alta alavancagem, os riscos são enormes. Há agora o diagnóstico, cada vez mais amplo, de que a estabilidade de preços não garante a estabilidade financeira. Os bancos centrais precisarão ter os olhos bem abertos para isso daqui para frente.