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9 de agosto de 2024A ordem econômica possui dignidade constitucional de direito fundamental não apenas nos artigos 170 a 181 da Lei Fundamental, mas por todo o seu texto, representando, expressando e parametrizando a alma da Constituição, devendo ser observada pelos agentes econômicos no desenvolvimento da atividade econômica para se assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Diante dessa importância é que constam do texto constitucional diversos princípios gerais da atividade econômica, a se destacar o princípio da livre concorrência.
Fabiano del Masso assinala que a ordem econômica prevista na Constituição requer um mercado competitivo. Na disciplina de proteção do mercado, surge um bem jurídico que praticamente com ele se confunde: a concorrência. É onde repousa o princípio da livre concorrência, a impor ao Estado brasileiro o abrigo de uma ordem econômica fundada na competição de mercado, a permitir e garantir o direito de participação ilimitada de agentes, característica de uma economia de mercado representativa do modelo capitalista, possibilitando, em tese, a eficiência do livre mercado em razão da competitividade e que pressupõe, fundamentalmente, atividades empresariais.
A livre concorrência, portanto, é constituída não somente pela livre manifestação da atividade econômica, mas também pela repressão legislativa de qualquer abuso do poder econômico que vise (disciplinando o exercício do poder econômico), dentre outras situações, a eliminação da concorrência com a dominação do mercado por meio da formação de cartéis.
Uma das consequências (prejuízos) de um mercado sem concorrência pela formação de cartel, dentre outras, é 1. a perda da liberdade econômica pela anticompetição; 2. a imposição de preços; 3. a imposição de produtos; 4. a despreocupação com os custos de produção; 5. a falta de investimentos em melhora do produto.
Conforme apontava o mestre de todos nós, José Afonso da Silva, a declaração de que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos a existência digna, só por si, não tem significado substancial, já que a análise dos princípios que informam essa mesma ordem não garante a efetividade daquele fim. Por essa razão, o legislador constituinte também definiu como imperativo a repressão às pessoas jurídicas e de seus dirigentes pelos ilícitos praticados contra a ordem econômica, financeira e contra a economia popular.
O problema que eles trazem para a sociedade e para as autoridades executivas do poder punitivo são bastante diferentes. O poder econômico, reconhecida sua existência no artigo 173, §4º da Constituição, é um dado de fato inerente ao livre mercado, isto é, os agentes econômicos são naturalmente e necessariamente desiguais uns dos outros, e o que a Constituição e o Direito em geral têm alcance de fazer é reprimir certas modalidades de iniciativa que ameacem ou possam ameaçar as estruturas do livre mercado.
Merece destaque a explicação de Luiz Regis Prado acerca do exercício do poder econômico e a distinção de sua abusividade: “[O] exercício do poder econômico que não tenha e não possa ter o efeito de dominância de mercado, de eliminação da concorrência ou aumento arbitrário de lucros não será considerado abusivo e, por conseguinte, não será objeto de repressão legal. Somente quando a própria competição está em risco, configurando exercício abusivo, é que haverá repressão”.
Nesse contexto, pode-se definir a atividade de cartel como qualquer acordo ou prática concertada entre concorrentes para fixar preços, dividir mercados, estabelecer cotas, restringir produção, adotar posturas pré-combinadas em licitação pública ou restringir ou eliminar a concorrência de qualquer outra forma. Há, portanto, um ou vários acordos anticompetitivos (tácitos ou expressos, porém clandestinos ou dissimulados) entre empresas de um mesmo ramo de atividade, violando ou colocando em risco o bem jurídico tutelado (acordo entre rivais).
O delito de cartel está tipificado como crime contra a ordem econômica no artigo 4º, II, da Lei Federal 8.137/1990 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo), com penas de reclusão, de 2 a 5 anos e multa.
Além da seara criminal, em âmbito administrativo, a Lei Federal 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência), também conhecida como Lei Antitruste), prevê que empresas participantes de cartel estão sujeitas a penalidades administrativas aplicadas pelo Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), entre elas multas que variam de 0,1% a 20% do valor do faturamento bruto no ramo de atividade em que ocorreu a infração.
No âmbito civil, há previsão de responsabilidade por danos morais e patrimoniais decorrentes de infração à ordem econômica pela via da ação civil pública (Lei Federal 7.347/1985 – Lei de Ação Civil Pública).
Dentro da perspectiva das bases constitucionais da ordem econômica, a prática de cartel é vista pelo legislador como uma conduta grave, tanto é que é responsabilizada em três distintas esferas jurídicas, ensejando, portanto, simultaneamente a responsabilização do agente econômico no plano criminal, administrativo e civil, excluindo o bis in idem (artigo 35 da Lei Federal 12.529/2011).
Pode-se muito bem dizer que pauta do dia é a busca e a promoção de cooperação entre as agências estatais, seja no âmbito interno quanto no âmbito externo (cooperação internacional) aprimorando a troca de informações, muitas delas para auxiliar em uma persecução criminal. Desse modo, é possível – e muito bem-vinda – a comunicação entre as esferas criminal, administrativa e cível, como é o caso da celebração de acordo de leniência pelo agente econômico previsto no artigo 86 da Lei Federal 12.529/2011 (celebrado administrativamente) e que interfere diretamente na tramitação da persecução penal (no âmbito criminal, portanto), conforme entabulado no artigo 87 da mesma Lei:
“[N]os crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência”.
Sem possibilidades de ingressarmos em maiores debates sobre a eficácia nacional do combate aos cartéis, nos cumpre destacar que o programa de acordo de leniência, inserido na legislação concorrencial em 2003 e aprimorado com a Lei Federal 12.529/2011, permite a celebração de acordo entre Estado e leniente (colaborador) com a obtenção de benefícios ao agente econômico como, por exemplo, de imunidade processual ou a diminuição da sanção penal (de um a dois terços) quanto a eventuais crimes contra a ordem econômica, confessando a participação na conduta e indicando quais foram os agentes econômicos envolvidos na prática anticompetititva do cartel, enfim, atitudes do colaborador na investigação oficial que incidiram em premiação. A repercussão da celebração do acordo — na esfera administrativa — permite a proteção na esfera criminal.
Há, portanto, necessidade de esforço das autoridades signatárias do acordo (Cade, Ministérios Públicos etc.) em valorizar a leniência, com o fim de promovê-la como uma ferramenta (meio) de obtenção de provas. A maior premissa é não colocar o informante leniente, portanto, colaborador e revelador do cartel, em posição pior aos outros players que serão investigados mediante a colaboração realizada e cujo prêmio é reservado a quem chega primeiro à autoridade.
No geral, as leis relacionadas à criminalidade econômica se complementam e devem trazer maior segurança aos jurisdicionados como o caso do player do mercado que pretende revelar comportamentos ilícitos e antiéticos, como um mecanismo comum para trazer maior garantia ao agente econômico que pretende cooperar (esferas de competência).
Nesse sentido, acordos de cooperação entre órgãos estatais são necessários para a preservação dos instrumentos de leniência (ou de colaboração premiada, se esfera criminal) e a falta ou déficit de comunicação e aproveitamento entre os órgãos ligados à repressão às infrações contra a ordem econômica pode representar o maior entrave na celebração do acordo de leniência pelo agente econômico.
Faz-se necessário, portanto, um arcabouço que represente praticidade e a interdisciplinaridade na matéria de cartéis e concorrência desleal, pois como já mencionado, tais atividades podem afetar as esferas de incidência (cível, administrativo e criminal). Deve-se dizer, decisões de tornar-se colaborador leniente no âmbito concorrencial (administrativo e cível) perante o Cade podem parecer ótimas, todavia, podem trazer um efeito negativo e irreparável na esfera criminal para o cliente se o caso não for bem avaliado e, na esfera de cooperação (órgãos de poder), houver falibilidade na participação e comunicação entre os entes estatais (aproveitamento dos valores pagos a título de multa), elevando sobremaneira a participação financeira do cliente nas condenações.
Fonte: Conjur
