Na última semana foi realizado um seminário de \”diagnóstico do contencioso tributário administrativo\”, como resultado de esforço conjunto da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
O estudo analisou o contencioso administrativo tributário federal no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e em oito Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ), estadual/distrital (em oito unidades da federação) e municipal (em sete capitais brasileiras), buscando investigar oito hipóteses (atreladas, v.g., à arquitetura institucional do contencioso; aos incentivos à litigiosidade tributária; à especialização dos julgadores; e aos meios alternativos de solução de conflitos tributários).
Além de apresentar um diagnóstico, com dados sobre o contencioso administrativo tributário, o estudo ainda propõe recomendações, algumas já bem conhecidas e exploradas (como a necessidade de prevenção da litigiosidade, de harmonização jurisprudencial e de adoção de ferramentas de solução de demandas repetitivas), outras conhecidas, mas pouco exploradas (como o melhor aproveitamento do conteúdo do processo administrativo em juízo e a adoção de mecanismos alternativos de solução de controvérsias), e até questões relativamente desconhecidas (como a grande participação percentual de tributos com baixo impacto arrecadatório nos contenciosos, a exemplo do IRPF).
Como o documento constitui um \”diagnóstico\”, e não um \”plano de ação\”, as recomendações são fundadas em leitura preliminar dos dados, a demandar validação e complemento/aperfeiçoamento. Nesse sentido, durante o próprio evento não foram poucas as opiniões dos expositores no sentido de relativizar ou até contrapor recomendações presentes (ainda que de forma não conclusiva) no relatório, como a referente à redução do número de instâncias de julgamento, e a relativa à necessidade de análise da gratuidade do processo administrativo e avaliação quanto à factibilidade e pertinência de criação de uma Lei de Custas Processuais para a esfera administrativa, assim como a criação da obrigatoriedade de depósito para a interposição de recursos administrativos.
O relatório, focado no contencioso administrativo tributário, representa relevante iniciativa para enfrentar um grave problema que assola o Brasil: o alto volume de litigância tributária, principalmente na via administrativa. O estudo informa que em 2018 estatísticas confiáveis já apontavam para um contencioso tributário federal (administrativo e judicial) que ultrapassava o patamar de R$ 3,4 trilhões, correspondente a 50,4% do PIB nacional, remetendo a trabalho patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco).
Isolando-se o contencioso tributário administrativo na esfera federal, chegava-se, em 2018, a 16,4% do PIB, ante 0,28% e 0,19% de mediana nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
De lá para cá, o acervo do Carf reduziu de 120 mil para 90.200 processos, resultado que é fruto de algumas medidas eficazes no âmbito do tribunal administrativo, como a adoção de súmulas e o julgamento em lote de demandas repetitivas. Entretanto, persiste como fator de preocupação não só o elevado acervo, em termos numéricos e de valor, mas as razões da alta litigância. Como aponta Sandro de Vargas Serpa, a decisão do contribuinte de recorrer no âmbito do processo administrativo fiscal leva em consideração, além da probabilidade de êxito na demanda, o valor da causa e o custo baixíssimo de continuar litigando, fatores aos quais agregamos a possibilidade de reiniciar/duplicar o contencioso, a qualquer tempo, em juízo.
Até aqui o leitor deve estar se perguntando: onde está a temática aduaneira nesse contexto? Afinal de contas, nesta coluna estamos em \”território aduaneiro\”. E no recente relatório, tratado no evento da última semana, sequer aparece a palavra \”aduana\”.
No Brasil, existem, hoje, basicamente, três tipos de penalidades aduaneiras, sujeitas a contenciosos administrativos distintos: (1) as pecuniárias-multas (que, ao lado das exigências de tributos e direitos, aduaneiros ou não, são sujeitas ao contencioso administrativo tributário, previsto no Decreto 70.235/1972); (2) as relativas a perdimento (em regra, sujeitas ao contencioso previsto no Decreto-Lei 1.455/1976); e (3) as denominadas de \”sanções administrativas\” (advertência, suspensão e cassação de registro, sujeitas, em geral, ao rito processual previsto no art. 76 da Lei 10.833/2003).
E essas três espécies de contencioso são reguladas ainda por relevantes tratados internacionais aduaneiros recentemente ratificados pelo Brasil: o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC/OMC), promulgado pelo Decreto 9.326/2018, e a Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA), promulgada pelo Decreto 10.276/2020.
Quando se fala em contencioso administrativo tributário, está-se abrangendo somente o que designamos aqui como primeiro grupo (penalidades pecuniárias-multas e tributos/direitos). O Decreto 70.235/1972 rege, como destaca sua ementa, o \”processo administrativo fiscal\”, entendido no artigo 1º como o \”processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União\”. É exatamente esse o contencioso submetido ao Carf, relativo a exigências pecuniárias (tributos, direitos e multas expressos em moeda) efetuadas pela RFB, e não a perdimento ou a \”sanções administrativas\”.
Aliás, o Carf assume que sua tarefa-mor é a apreciação de contencioso administrativo tributário, como encomendou o Decreto 70.235/1972, na própria missão institucional do órgão, presente em seu mapa estratégico: \”assegurar à sociedade imparcialidade e celeridade na solução de litígios tributários\”, abrangidos nessa categoria os lançamentos pecuniários, ainda que relativos a temas aduaneiros.
Tanto a CQR/OMA (capítulo 10 do Anexo Geral) quanto o AFC/OMC (Artigo 4) disciplinam o contencioso que verse sobre matéria aduaneira (esteja ela ou não na zona de intersecção com o Direito Tributário), além de estabelecerem disposições aplicáveis a processos de consulta (resoluções antecipadas) e a imposição de penalidades, sendo integralmente aplicáveis aos contenciosos administrativos aduaneiros previstos no artigo 27 do Decreto-Lei 1.455/1976 (perdimento) e no artigo 76 da 10.833/2003 (\”sanções administrativas\”), e parcialmente aplicáveis ao contencioso administrativo tributário, regido pelo Decreto 70.235/1972 (apenas em relação a tributos e direitos aduaneiros, e a multas aduaneiras).
Há, assim, duas categorias de processo administrativo tributário: uma afetada pela CQR/OMA e pelo AFC/OMC (por exemplo, processos referentes a exigência de imposto de importação e de IPI-importação, acrescidos de multa), e outra alheia a tais tratados (v.g., processos que tratam de exigência de CSLL, ou de multa por não recolhimento de estimativas-IRPJ).
É preciso reconhecer, no entanto, que seria proveitoso mesmo ao contencioso administrativo tributário relativo a matérias sem contato com a área aduaneira beber na fonte da disciplina internacional aduaneira, a título uniformizador e sistematizador, visto que as normas expressas na CQR/OMA e no AFC/OMC representam melhores práticas, internacionalmente consagradas, em matéria de contencioso administrativo.
Portanto, ao se pensar em aprimoramento do contencioso tributário administrativo, e do próprio contencioso administrativo (esse parece ser o propósito da recente criação de comissão de juristas pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e do STF, Luiz Fux), deve-se ter em conta que há uma zona de intersecção entre temas aduaneiros e tributários no que se refere a pecúnia (tributos/direitos e multas). E mais, que tal zona de intersecção está sujeita a obrigações previstas na CQR/OMA e no AFC/OMC, que não vinculam necessariamente os demais tributos que são objeto de contencioso no Carf, embora possam atuar em relação a eles como soft law.
Afora isso, não convém estabelecer que os demais contenciosos aduaneiros estariam sujeitos a um rito geral de processo administrativo (a exemplo do previsto, hoje, na Lei 9.784/1999), tendo em vista que tais contenciosos administrativos aduaneiros (perdimento e \”sanções administrativas\”) estariam regidos também por tratados internacionais específicos (CQR/OMA e AFC/OMC), além de outras disposições acordadas no âmbito multilateral (por exemplo, na OMC), regional (v.g., no Mercosul) e bilateral.
Tudo aponta para a necessidade de que sejam tomadas em conta (dentro e/ou fora da estrutura do Carf, ou do \”contencioso administrativo tributário\”) as peculiaridades aduaneiras, a necessidade de especialização de turmas de julgamento de tal área, e a disciplina normativa específica aduaneira, predominantemente internacional, mormente sobre temas que não possuem relação com o Direito Tributário (como licenças de importação, defesa comercial, barreiras técnicas, proibições e restrições, e facilitação do comércio), ainda que afetem o quantum de tributos a recolher como consequência (v.g., no caso de classificação de mercadorias, valoração aduaneira e regras de origem). Há experiências de cortes administrativas com turmas especializadas em temas aduaneiros na América Latina, como se destaca em estudo no âmbito do Ciat, cabendo mencionar, a título ilustrativo, os Tribunais Tributários e Aduaneiros do Chile, e as salas especializadas aduaneiras dos Tribunais Fiscais da Argentina, do México e do Peru. Mesmo no Brasil, já tivemos a experiência de um \”Conselho Superior de Tarifa\”, corte superior administrativa especializada aduaneira.
A área aduaneira pode contribuir significativamente ao contencioso administrativo tributário, com base na experiência multilateral com normas vinculantes. E do rico universo de benchmarking aduaneiro surgem tendências que podem reduzir o contencioso tributário, como os programas de conformidade, a exemplo do Operador Econômico Autorizado (OEA), existente desde o século passado, presente tanto na CQR/OMA quanto no AFC/OMC, e que certamente inspirou o recente \”Confia\” tributário brasileiro.
Como expusemos nas \”previsões\” aduaneiras (e futebolísticas) para 2022, as normas da CQR/OMA, salvo em caso de solicitação de prorrogação, deverão ser aplicadas pelo Brasil em 5/12/2022. Esse é exatamente o dia em que o Brasil, que será o primeiro colocado do Grupo \”G\” da Copa do Mundo, enfrentará e vencerá o segundo colocado do Grupo \”H\” (ainda nublado na \”bola de cristal\”).
Nesse cenário, devemos aprimorar o contencioso administrativo tributário com racionalidade, sem descuidar das melhores práticas internacionais, deixando a paixão para o campo futebolístico. É o que busca incentivar o presente texto.