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24 de outubro de 2024De início, importa diferenciarmos os contratos completos dos incompletos. Para Cateb e Gallo, contratos completos são aqueles que podem, em tese, prever todas as características físicas de uma transação, como data, localização, preço e quantidade, para cada estado da natureza futuro.
Segundo a Incomplete Contract Theory, abordagem da Law and Economics, os contratos incompletos são aqueles que têm, em sua essência, a racionalidade limitada das partes, a assimetria informacional e o comportamento oportunistas das partes.
Assim, nem todo contrato é um contrato completo, tampouco, nem todo contrato é incompleto, devendo-se analisar a dinâmica relacional que existe entre as partes de determinado contrato.
Dito isto, a Teoria dos Contratos Incompletos se propõe a debelar a ideia clássica de que é possível prever todas as situações contingentes que evolvem determinado contrato, encontrando eco nos contratos complexos de longo prazo.
Embora a Incomplete Contract Theory tenha sido cunhada para relações contratuais privadas, é possível, sob a moldura do interesse público, aplicar tal teoria aos contratos regidos pelo Direito Público, como os contratos de concessão.
Diante de contratos incompletos — de longo prazo — para os quais não é possível prever todas as situações contingentes, precisamos entender que a racionalidade limitada inerente a esses contratos gera lacunas contratuais futuras, com forte tendência de ações oportunistas que demandarão ajustes contratuais.
Assim, o regulador se depara diante do seguinte dilema: (1) detalhar ao máximo as disposições contratuais para evitar comportamentos oportunistas futuros? Ou (2) permitir que o contrato apresente cláusulas mais abertas, podendo gerar insegurança jurídica e, mais ainda, ações oportunistas?
O problema do detalhamento demasiado de contratos de longo prazo é que tal medida pode gerar um efeito adverso, intitulado pela Análise Econômica do Direito como hold-up, tornando o contrato tão detalhado que qualquer adaptação ou ajuste gera alto custo de transação.
Se é que temos alguma certeza diante de um contrato de longo prazo, essa certeza é a seguinte: ele vai mudar! Com ensina Flávio Amaral Garcia, “qualquer tentativa de previsão antecipada de todas as possíveis e futuras contingências não passaria de improdutiva adivinhação”.
Diante da verificação dos custos de transação envolvidos na definição ex-ante do máximo de contingências contratuais possíveis, o regulador pode, deliberadamente, postergar a definição de determinadas contingências quando estes custos forem demasiadamente elevados ou quando a gestão superveniente dessas contingências se mostrar mais eficiente, ou seja, contratos podem assumir a característica de contratos incompletos por ação deliberada do agente regulador.
Quando me refiro à previsão de contingências contratuais, refiro-me à alocação de riscos contratuais.
Nos termos do artigo 6º, XXVII, da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), a matriz de riscos é a cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações: (…)
Imaginemos a seguinte situação hipotética “x”: (1) a matriz de riscos do contrato prevê que o risco pela ocorrência de determinado evento deve ser suportado pelo agente “A”; (2) há a ocorrência do evento que o risco previa; e (3) quem está suportando o ônus pela ocorrência desse risco é o próprio agente “A”. Conclusão: neste caso, como quem está suportando o ônus pela ocorrência do evento é aquele a quem o risco deste evento está alocado na matriz, então o contrato está equilibrado.
Imaginemos, por outro lado, a seguinte situação hipotética “y”: (1) a matriz de riscos do contrato prevê que o risco pela ocorrência de determinado evento deve ser suportado pelo agente “A”; (2) há a ocorrência do evento que o risco previa; e (3) quem está suportando o ônus pela ocorrência desse risco é o agente “B”. Conclusão: neste caso, como quem está suportando o ônus pela ocorrência do evento é uma parte diversa daquela a quem o risco estava alocado na matriz, então o contrato está desequilibrado, devendo-se proceder ao necessário reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Ademais, conforme ensina Paula Greco Bandeira:
“O contrato incompleto traduz negócio jurídico no qual se adota a técnica de gestão negativa [negativa no sentido de não fazer] dos riscos econômicos, visto que os contratantes, deliberadamente, deixam em branco determinados elementos da relação contratual como forma de gerir os riscos de superveniência. Contrapõe-se, assim, à gestão positiva do risco econômico [positiva no sentido de fazer], na qual as partes alocam ex-ante, no momento da celebração do contrato, os ganhos e as perdas decorrentes de determinado evento.”
Assim, deve-se avaliar o custo para definição prévia do máximo de contingências, bem como a própria necessidade de alterá-las com o passar do tempo, e é neste ponto que as matrizes de risco de contratos ferroviários podem ser otimizadas.
O “como” mudar é mais importante do que “o que” mudar.
Por outro lado, de forma semelhante, não podemos olvidar a Teoria dos Contratos Relacionais, que tem como fundamento os seguintes pilares:
Reconhecimento da incompletude e do inacabamento como realidade inerente aos contratos, não sendo possível “presentificar” o futuro por meio de rígidas estipulações contratuais;
Sua estruturação teórica foi concebida para contratos de longa duração;
Flexibilidade e capacidade adaptativa são próprias das estruturas endógenas desses contratos, sendo a mudança reconhecida como algo previsível e inevitável;
Interdependência dos direitos e deveres das partes, a complexidade das relações e o longo prazo do contrato modificam o comportamento dos contratantes, que se beneficiam reciprocamente de condutas pautadas na boa-fé, na cooperação, na confiança e na solidariedade;
Esses contratos estão inseridos em contextos sociais, econômicos, morais e políticos, não se constituindo em entidades autônomas não permeáveis pelos fatos externos, a exigir dos intérpretes e operadores do Direito a incorporação de elementos extrajurídicos;
Enfatizam soluções internas e endógenas ao próprio contrato para dirimir os conflitos ex-post, compreendendo como ineficientes intervenções judiciais nos contratos, uma vez que as partes detêm maior capacidade, conhecimento e informação do que os juízes ou quaisquer outros decisores externos. (grifo nosso)
Observa-se que a Incomplete Contract Theory é bastante semelhante à Teoria dos Contratos Relacionais, exceto por uma diferença nevrálgica: enquanto a Incomplete Contract Theory transfere ao Poder Judiciário ou à arbitragem a solução por eventuais controvérsias, a Teoria dos Contratos Relacionais entende que as partes têm maiores condições de resolver eventuais pendências por meio de soluções consensuais do que transferir a um terceiro a solução de eventuais divergências.
Particularmente, a ideia trazida pela Teoria dos Contratos Relacionais parece se mostrar mais eficiente, visto que as próprias partem são as mais aptas a resolverem eventuais litígios por meio de soluções consensuais, mais eficientes, eficazes e com menores custos de transação.
Ao se entender que os contratos de concessão de longo prazo são, essencialmente, contratos incompletos ou mesmo como contratos relacionais, pode-se adotar um modelo de alocação de riscos e gestão de contingência assíncronas ex-ante / ex-post, ou seja, prevendo-se as contingências mais incontroversas e solidificadas de forma ex-ante e, para aquelas com baixa probabilidade de ocorrência ou de difícil previsão, adotando-se o modelo de alocação de riscos ex-post.
Por outro lado, quando se aponta que os contratos de concessão ferroviária são incompletos / relacionais, não se quer dizer que esses contratos podem estar repletos de lacunas ou de vácuos normativos, ou mesmo inundado de cláusulas abertas ou que apresentem meras intenção. A Incomplete Contract Theory ou a Teoria dos Contratos Relacionais não podem servir de justificativa para modelagem e estruturação de contratos que, deliberadamente, estejam permeados de lacunas e vazios regulatórios, o que gerará insegurança jurídica e ineficiência na gestão contratual.
Quando analisamos a matriz de riscos dos contratos de concessão ferroviária recentemente prorrogados, observamos algumas oportunidades de melhoria.
A título de exemplo, na subcláusula 32.1 do 4º Termo Aditivo ao Contrato de Concessão Ferroviária da MRS Logística S.A., a alocação de riscos à concessionária assume natureza residual, ou seja, à exceção dos riscos expressamente alocados ao Poder Concedente, todos os demais são alocados à concessionária. Vejamos:
“32.1 Com exceção dos riscos expressamente alocados ao Poder Concedente na subcláusula 32.2, a Concessionária é integral e exclusivamente responsável por todos os riscos relacionados à Concessão, inclusive, mas não se limitando, aos seguintes: (…)” (grifos do articulista)
Esse é um exemplo da tentativa do agente regulador de prever, contratualmente, respostas para todas as contingências que vierem a ocorrer, conhecidas ou não conhecidas.
Entretanto, a alocação de riscos é refletida, diretamente, nos custos envolvidos. Risco é precificado como custo. Mas como precificar o custo daquilo que sequer se tem conhecimento que pode acontecer?
Parece que, como efeito contrário ao que naturalmente se espera da alocação de riscos por meio de uma matriz (mitigação da assimetria de informações), a alocação residual de todos os riscos a determinado agente contratual gera ainda mais assimetria de informações, afinal, por qual parâmetro se poderá aferir se aquele risco incerto e desconhecido foi precificado de forma razoável?
Acredita-se que o primeiro passo para gerar eficiência contratual na alocação de riscos está no reconhecimento de que esses contratos de concessão ferroviárias são, naturalmente, incompletos / relacionais.
A partir disso, deve-se ponderar: como prever mecanismos eficientes de ajustamento contratual sem que isso fira a segurança jurídica e, ao mesmo tempo, permita que o contrato se adapte às realidades impostas pelo passar do tempo?
Diante de contratos de concessão de longo prazo, a mutabilidade contratual não é uma possibilidade, é uma certeza!
Uma alternativa que se propõe seria a alocação dos riscos mais incontroversos de maneira ex-ante e, para aqueles cuja probabilidade de ocorrência é remota, para aqueles de difícil previsão e para aqueles em que não é possível saber, a priori, quem melhor poderia suportá-lo, que se preveja, contratualmente, que esses riscos serão alocados ex-post, na hipótese de sua ocorrência, de maneira que se possa aferir quem melhor tinha condições de geri-lo ou mesmo de suportá-lo.
Essa alocação de riscos ex-post poderia ser realizada pelas próprias partes ou, na hipótese de discordância, pela instalação de um comitê ad hoc escolhido pelas partes que alocaria o risco a partir de parâmetros de mensuração previamente definidos.
Tal medida reduziria os custos de transação diante da hercúlea tentativa de se prever todas as contingências contratuais futuras, permitiria a adequabilidade da previsão dos custos a partir de uma matriz de riscos mais eficiente e, por fim, permitiria a alocação de determinados riscos de maneira ex-post, gerando mais eficiência e melhor adequação contratual em contratos de longo prazo, complexos e incompletos / relacionais.
Fonte: Conjur