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19 de agosto de 2025A abdominoplastia é uma intervenção cirúrgica com o objetivo de remover o excesso de pele e gordura da região abdominal, corrigindo também a musculatura enfraquecida. Embora seja popularmente associada a fins estéticos, seu papel na cirurgia reparadora é inquestionável e de grande relevância, particularmente para pacientes que enfrentaram uma grande perda de peso, como os que realizaram cirurgia bariátrica. Nestes casos, o excesso de pele, conhecido como abdome em avental, não é apenas uma questão estética. Ele pode levar a sérios problemas funcionais, incluindo infecções recorrentes (dermatites intertriginosas), dificuldades de higiene, restrição de movimentos e um impacto psicológico significativo.
No Brasil, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) é a entidade encarregada de regular o setor de planos de saúde, determinando as coberturas mínimas obrigatórias por meio do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde. A inclusão ou exclusão de um procedimento no rol e as condições para sua cobertura são temas de intenso debate e regulamentação. O Parecer Técnico nº 10/GEAS/GGRAS/Dipro/2021 da ANS trouxe esclarecimentos importantes sobre a abdominoplastia, consolidando o entendimento da agência sobre sua cobertura em contextos reparadores.
Este artigo se propõe a analisar detalhadamente o referido parecer, situando-o dentro do complexo panorama regulatório da saúde suplementar brasileira. Serão examinadas as condições específicas para a cobertura do procedimento, as Diretrizes de Utilização (DUTs) aplicáveis, a evolução histórica das normativas da ANS e suas consequências práticas para os pacientes. A compreensão dessas nuances é crucial para garantir o acesso adequado aos tratamentos e para a aplicação correta das regras por parte das operadoras de saúde.
A legislação que rege a saúde suplementar no Brasil tem como pilar a Lei nº 9.656/1998, que estabeleceu as bases para o setor, definindo, entre outros pontos, a obrigatoriedade de cobertura de determinados procedimentos. A principal ferramenta de regulamentação da ANS é o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, uma lista de procedimentos, exames e tratamentos que os planos de saúde são obrigados a cobrir.
Essa lista é atualizada periodicamente, levando em conta novas tecnologias e avanços científicos, sempre com base em evidências científicas e avaliações de tecnologias em saúde (ATS). Atualmente, a Resolução Normativa (RN) nº 465/2021 regula o rol, estabelecendo a cobertura assistencial obrigatória para os planos contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para aqueles adaptados.
O processo de atualização do rol é complexo e envolve a participação da sociedade civil por meio de consultas públicas. A inclusão de um procedimento no rol o torna de cobertura obrigatória, desde que as condições e diretrizes de utilização estabelecidas pela ANS sejam respeitadas. A ausência de um procedimento na lista, contudo, não implica em sua proibição, mas sim na ausência de sua obrigatoriedade de cobertura, a menos que haja previsão contratual específica ou determinação judicial.
O Parecer Técnico nº 10/GEAS/GGRAS/Dipro/2021 da ANS é um documento essencial para entender a cobertura da abdominoplastia. Ele esclarece que o procedimento, identificado pelo código 30101280 no Anexo I da RN nº 465/2021, é de cobertura obrigatória para planos de segmentação hospitalar (com ou sem obstetrícia) e para planos-referência.
A obrigatoriedade da cobertura não é irrestrita. Ela está condicionada à observância das Diretrizes de Utilização (DUTs), descritas no Item 18 do Anexo II da RN nº 465/2021. A DUT específica para a abdominoplastia estabelece que a cobertura é obrigatória apenas para pacientes que apresentem abdome em avental decorrente de grande perda de peso. Esta perda ponderal pode ser resultado de tratamento clínico para obesidade mórbida ou de uma cirurgia de redução de estômago (cirurgia bariátrica).
A redação da DUT é clara e crucial para a distinção entre a cirurgia reparadora e a estética:
Cobertura obrigatória em casos de pacientes que apresentem abdome em avental decorrente de grande perda ponderal (em consequência de tratamento clínico para obesidade mórbida ou após cirurgia de redução de estômago).
Essa diretriz visa assegurar que a cobertura seja direcionada a procedimentos com finalidade reparadora, buscando corrigir problemas funcionais e de saúde. A presença do abdome em avental, caracterizado pelo excesso de pele e tecido adiposo que pende sobre a região pubiana, é o principal indicador de que a cirurgia possui um objetivo clínico e não puramente estético. As operadoras podem negar a cobertura se essa condição não for comprovada ou se a indicação for exclusivamente estética.
As DUTs são elaboradas com base em avaliações de tecnologias em saúde (ATS), que analisam as condições em que um procedimento traz os maiores benefícios clínicos. Isso garante que os tratamentos cobertos sejam aqueles que realmente impactam positivamente a saúde do paciente.
A distinção entre o caráter reparador e o estético é um dos principais pontos de atrito entre beneficiários e operadoras. A abdominoplastia reparadora, coberta pela ANS, visa corrigir deformidades funcionais resultantes de condições médicas, como a obesidade mórbida e a subsequente perda de peso. Já a cirurgia estética tem como principal objetivo a melhora da aparência física, sem que haja uma justificativa funcional.
A decisão sobre a natureza do procedimento deve ser baseada em uma avaliação médica criteriosa, considerando o histórico clínico do paciente, a presença de comorbidades e o impacto funcional da deformidade. Para solicitar a cobertura, é essencial apresentar uma documentação médica robusta, incluindo laudos e relatórios que comprovem a condição de abdome em avental e a necessidade reparadora da cirurgia.
O Parecer Técnico nº 10/2021 também esclarece a evolução da cobertura da abdominoplastia no rol da ANS. O procedimento, como previsto na RN nº 465/2021, substituiu a dermolipectomia, que estava prevista na RN nº 428/2017. A mudança na nomenclatura reflete uma atualização na classificação dos procedimentos, mas a essência da cobertura para casos reparadores foi mantida. Essa evolução regulatória demonstra a constante necessidade de adaptação das normas à realidade da medicina e às demandas dos pacientes.
Historicamente, a cobertura de procedimentos reparadores pós-bariátricos tem sido motivo de controvérsia, com muitas negativas por parte das operadoras, que alegam o caráter estético. No entanto, a jurisprudência e as regulamentações da ANS têm evoluído para reconhecer a natureza reparadora desses procedimentos quando há comprometimento funcional. O Parecer Técnico nº 10/2021 e a DUT 18 da RN 465/2021 reforçam essa compreensão, oferecendo maior segurança jurídica ao beneficiário.
Um ponto relevante abordado no parecer é a situação dos planos antigos não adaptados, contratados antes de 1/1/1999 e que não foram ajustados à Lei nº 9.656/1998. Para esses planos, as condições de cobertura podem variar significativamente, pois são regidas pelas cláusulas contratuais da época da contratação. Nesses casos, a análise da cobertura deve ser individual, e a orientação de um especialista em direito da saúde é fundamental para que o beneficiário compreenda seus direitos e as possibilidades de cobertura.
A regulamentação da cobertura da abdominoplastia pela ANS representa um avanço na garantia do acesso a procedimentos reparadores. A clareza das DUTs é fundamental para distinguir o caráter reparador do estético, direcionando a cobertura para casos clinicamente necessários. No entanto, desafios persistem.
A interpretação das DUTs pode gerar divergências, e a necessidade de comprovação da condição de abdome em avental exige uma documentação médica robusta. A judicialização de casos de negativa de cobertura ainda é uma realidade, o que ressalta a importância de uma comunicação clara e transparente entre operadoras, beneficiários e profissionais de saúde.
É fundamental que os médicos que indicam a cirurgia para fins reparadores forneçam relatórios detalhados, com justificativa clínica sólida. Da mesma forma, as operadoras devem basear suas decisões em análises técnicas e imparciais, evitando negativas indevidas que possam comprometer a saúde e a qualidade de vida dos beneficiários. A abdominoplastia, quando indicada para corrigir sequelas de grande perda ponderal, é uma cirurgia que restaura a funcionalidade, melhora a qualidade de vida e contribui para a saúde integral do indivíduo.
Para ilustrar a aplicação das regulamentações e a complexidade das situações enfrentadas pelos beneficiários, analisamos um caso concreto de negativa de cobertura de abdominoplastia por um plano de saúde.
A Sra. Maria, de 38 anos, foi submetida a uma cirurgia bariátrica em 2019, resultando em uma significativa perda de 52 kg. Após a estabilização do peso, ela desenvolveu um quadro de abdome em avental que causava infecções cutâneas recorrentes (dermatites), dificuldades de locomoção e grande sofrimento psicológico. Diante desse quadro, seu cirurgião plástico indicou a realização de uma abdominoplastia reparadora. O plano de saúde da Sra. Maria negou o pedido de cobertura, alegando que o procedimento era de caráter estético e sem previsão contratual.
A negativa do plano de saúde confronta diversas normativas e entendimentos jurídicos:
-Lei nº 9.656/1998, artigo 10, §4º: Garante a cobertura dos procedimentos listados no Rol da ANS.
-RN nº 465/2021, Anexo I, código 30101280: A abdominoplastia está expressamente incluída no rol de cobertura obrigatória para planos hospitalares.
-DUT nº 18 da ANS (Anexo II, RN 465/2021): Estabelece a cobertura obrigatória da abdominoplastia quando há abdome em avental decorrente de grande perda de peso. A situação da Sra. Maria se enquadra perfeitamente nesta diretriz.
-Parecer Técnico nº 10/2021 da ANS: Reforça a natureza reparadora do procedimento pós-bariátrica, distinguindo-o de intervenções estéticas.
-Código de Defesa do Consumidor (artigo 51, IV): Considera abusivas as cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, como aquelas que limitam tratamentos essenciais à saúde.
-Jurisprudência do STJ: O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado de que o plano de saúde não pode restringir o tratamento indicado pelo médico assistente, especialmente se o procedimento estiver no rol da ANS e for de natureza reparadora.
Diante da negativa, a Sra. Maria pode recorrer ao judiciário com as seguintes teses:
-Tese 1 – Caráter reparador e não estético: A cirurgia foi prescrita para corrigir comprometimentos funcionais e psicológicos, não por mera vaidade. A negativa do plano viola o direito constitucional à saúde (art. 196 da Constituição Federal).
-Tese 2 – Obrigatoriedade da cobertura pelo rol e DUT: O procedimento está no rol e atende às condições da DUT 18, tornando a negativa uma prática ilegal e abusiva.
-Tese 3 – Violação do princípio da boa-fé contratual: A recusa injustificada de um tratamento essencial caracteriza descumprimento contratual, podendo gerar dano moral indenizável, devido ao sofrimento e angústia causados.
-Tese 4 – Direito do Consumidor e vulnerabilidade: A negativa coloca o consumidor em desvantagem desproporcional, violando o princípio da dignidade da pessoa humana.
Um pedido judicial típico em um caso como este incluiria:
- Tutela de urgência: Para que o plano de saúde seja compelido a autorizar imediatamente a cirurgia.
- Condenação à cobertura integral: Inclusão de todos os custos, como honorários médicos e despesas hospitalares.
- Indenização por danos morais: Compensação pelo sofrimento e constrangimento causados pela recusa indevida.
Este caso ilustra a importância da clareza regulatória e da correta interpretação das normas da ANS para garantir que os beneficiários tenham acesso aos tratamentos de saúde a que têm direito, especialmente em situações que envolvem procedimentos reparadores com impacto significativo na qualidade de vida.
Fonte: Conjur
