Recentemente, noticiou-se o uso do Procedimento Administrativo de Reconhecimento de Responsabilidade (PARR) pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) como meio de responsabilizar sócios pelas dívidas de empresas dissolvidas irregularmente.
Não se trata de mera percepção dos advogados que trabalham na área. Conforme dados disponibilizados pela PGFN no Pedido de Acesso à Informação nº 01015.000313/2025-28 para o período de junho de 2024 a fevereiro de 2025, houve um aumento significativo do número de PARR notificados, conforme evidenciado na tabela abaixo:
Ano/Mês Quantidade de procedimentos
2024/06 92.142
2024/07 88.825
2024/08 156.081
2024/09 216.925
2024/10 359.903
2024/11 22.034
2024/12 327.312
2025/01 339.258
2025/02 357.486
Fonte: Ministério da Fazenda, Processo nº 01015.000313/2025-28
Assim, além de apontar como o uso do PARR como uma ferramenta da PGFN como ferramenta de cobrança do crédito, o objetivo do presente texto é aproveitar o tema para colocar em debate certos aspectos desse instituto.
Inicialmente, a primeira dúvida que surge é: trata-se de processo ou procedimento?
Esse é um problema doutrinário, acima de tudo, mas cuja consequências podem afetar os princípios aplicáveis ao PARR. O objetivo aqui não será apontar qual das posições seria a mais adequada, mas sim chamar a atenção para o regime jurídico aplicável.
A PGFN nomeia como sendo um procedimento administrativo (Portaria PGFN nº 948/2017), porém, no artigo 20-D, III, da Lei 10.522, há referência da aplicação da Lei nº 9.784/99, que regulamenta o processo administrativo em âmbito federal. Assim, a própria legislação trata como processo e determina a aplicação do regime jurídico correspondente, como a aplicação dos princípios previstos no artigo 2º.
O ponto crucial é que a legislação optou pela incidência dos princípios expressos tipicamente identificados com o processo administrativo como os princípios do contraditório, ampla defesa, motivação. Além dos princípios expressos, não há como deixar de se negar a aplicação dos princípios implícitos como devido processo legal e duplo grau de cognição.
Quanto ao escopo de aplicação do PARR, de acordo com o artigo 20-D da Lei 10.522/2002, o PARR se destina a analisar causas de responsabilidade de terceiros por atos ilícitos.
Assim, pela literalidade da Lei nº 10.522/2002, seria uma apuração de responsabilidade do artigo 135 do CTN apenas. Questões envolvendo solidariedade por formação de grupos econômicos, que são discutidas à luz do artigo 124 do CTN, não poderiam ser veiculadas em PARR.
Além disso, na redação original do artigo 1º da Portaria PGFN nº 948/2017, estava prevista apenas a apuração de responsabilidade por dissolução irregular. Porém, a partir da redação dada pela Portaria PGFN nº 1160/2024, o escopo foi ampliado para qualquer ilícito. Essa alteração não viola o artigo 20-D da Lei nº 10.522/2002, vez que não possui restrição ao tipo de ilícito cometido pelo terceiro responsabilizado.
A alteração da CDA para inclusão de responsável pelo crédito após a conclusão do procedimento de lançamento poderia levantar dúvidas quanto à compatibilidade com o artigo 142 e 145 do CTN, bem como à Súmula 392 do STJ.
Quanto ao CTN, não parece haver violação. O PARR não tem por objetivo alterar o lançamento já constituído, alterando o contribuinte, corrigindo o critério material ou o quantitativo do tributo. Trata-se de alteração do responsável pelo pagamento desse crédito em razão de fato posterior ao lançamento, que não difere de outras situações em que a responsabilidade pelo crédito tributário é alterada após a sua constituição definitiva.
Com relação às CDAs que já tenham sido executadas judicialmente e que venham a ter um PARR relacionado, surge a dúvida quanto à aplicabilidade da Súmula 392 do STJ, que veda a modificação do sujeito passivo da execução.
Nos precedentes que deram origem à súmula, é possível notar que a preocupação do STJ era vedar que a substituição da CDA fosse feita como forma de corrigir erros do lançamento, como é possível notar dos seguintes trechos:
“[…] não sendo admissível pedido de alteração do sujeito passivo da obrigação tributária, por se tratar de modificação do próprio lançamento. […]
(AgRg no Ag 888479 BA, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/09/2007, DJ 01/10/2007, p. 232)
[…] sendo inviável a substituição da CDA nos casos em que haja necessidade de se alterar o próprio lançamento. […]” (AgRg no Ag 815732 BA, rel. ministra Denise Arruda, 1ª Turma, julgado em 27/3/2007, DJ 3/5/2007, p. 224)
Essa mesma preocupação é observada no julgamento do Tema 116 do STJ:
“1. A Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução (Súmula 392/STJ).
- É que: “Quando haja equívocos no próprio lançamento ou na inscrição em dívida, fazendo-se necessária alteração de fundamento legal ou do sujeito passivo, nova apuração do tributo com aferição de base de cálculo por outros critérios, imputação de pagamento anterior à inscrição etc., será indispensável que o próprio lançamento seja revisado, se ainda viável em face do prazo decadencial, oportunizando-se ao contribuinte o direito à impugnação, e que seja revisada a inscrição, de modo que não se viabilizará a correção do vício apenas na certidão de dívida. A certidão é um espelho da inscrição que, por sua vez, reproduz os termos do lançamento. Não é possível corrigir, na certidão, vícios do lançamento e/ou da inscrição. Nestes casos, será inviável simplesmente substituir-se a CDA. (Leandro Paulsen, René Bergmann Ávila e Ingrid Schroder Sliwka, in “Direito Processual Tributário: Processo Administrativo Fiscal e Execução Fiscal à luz da Doutrina e da Jurisprudência”, Livraria do Advogado, 5ª ed., Porto Alegre, 2009, pág. 205).” (REsp n. 1.045.472/BA, relator ministro Luiz Fux, 1ª Seção, julgado em 25/11/2009, DJe de 18/12/2009.)
Assim, a violação à Súmula 392 do STJ e, consequentemente, do Tema 116 do STJ, só ocorrerá se partir do pressuposto da violação ao artigo 142 e 145 do CTN, de que o PARR alterará o próprio lançamento tributário.
Por outro lado, vale lembrar que o STJ já excepcionou a sua Súmula 392 em casos envolvendo responsabilidade tributária por fatos ocorridos após o lançamento do tributo, como visto no julgamento do Tema 1.049:
“1. A interpretação conjunta dos arts. 1.118 do Código Civil e 123 do CTN revela que o negócio jurídico que culmina na extinção na pessoa jurídica por incorporação empresarial somente surte seus efeitos na esfera tributária depois de essa operação ser pessoalmente comunicada ao fisco, pois somente a partir de então é que Administração Tributária saberá da modificação do sujeito passivo e poderá realizar os novos lançamentos em nome da empresa incorporadora (art. 121 do CTN) e cobrar dela, na condição de sucessora, os créditos já constituídos (art. 132 do CTN).
- Se a incorporação não foi oportunamente informada, é de se considerar válido o lançamento realizado em face da contribuinte original que veio a ser incorporada, não havendo a necessidade de modificação desse ato administrativo para fazer constar o nome da empresa incorporadora, sob pena de permitir que esta última se beneficie de sua própria omissão.
[…]
- Cuidando de imposição legal de automática responsabilidade, que não está relacionada com o surgimento da obrigação, mas com o seu inadimplemento, a empresa sucessora poderá ser acionada independentemente de qualquer outra diligência por parte da Fazenda credora, não havendo necessidade de substituição ou emenda da CDA para que ocorra o imediato redirecionamento da execução fiscal.” (REsp n. 1.848.993/SP, relator ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 26/8/2020, DJe de 9/9/2020.)
Assim, a aplicação da Súmula 392 do STJ é um tema que deverá retornar ao Judiciário a partir do aumento do uso do PARR pela PGFN.
De acordo com a PGFN, dentre os motivos que dão ensejo ao PARR estão:
“- Omissão de declaração (Instrução Normativa RFB n° 1.863, de 2018, artigo 41, inciso I) – indica que a pessoa jurídica é declarada inapta em razão de deixar de apresentar, em 2 (dois) exercícios consecutivos, declarações à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil a que estava obrigada.
– Inaptidão (Instrução Normativa RFB n° 2.119, de 2022, art. 31, inc. I) – indica que a pessoa jurídica foi baixada de ofício em razão de não ter regularizado sua situação nos 180 (cento e oitenta) diassubsequentes à declaração de inaptidão.
– Indícios de dissolução irregular de pessoa jurídica em situação ativa (Lei n° 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, art. 135, III) – estes indícios são baseados na ausência de indicativos econômico-financeiros da pessoa jurídica devedora, embora se encontre em situação cadastral ativa.”
Casos envolvendo a baixa do CNPJ em razão de condutas omissivas do contribuinte com a consequente declaração de inaptidão, é possível sustentar a razoabilidade da caracterização como dissolução irregular, sendo essa a posição majoritária no TRF da 4ª Região.
O problema surge em casos mais complexos, tal como no motivo citado acima “indícios de dissolução irregular de pessoa jurídica em situação ativa”. Isso porque, por se tratar de atribuição de responsabilidade imputada pela União, o dever de provar a dissolução irregular é da PGFN.
Porém, o que se verifica na prática é que as notificações enviadas são simples e desacompanhadas de provas anexas. A PGFN apenas indica qual seria a situação fática caracterizadora da hipótese de responsabilidade, mas não documenta a notificação com as provas que demonstrem essa situação fática, o que, considerando a hipótese de “indícios baseados em ausência de indicativos econômicos-financeiros” traz prejuízo à defesa da pessoa notificada.
Consequentemente, a PGFN acaba invertendo o ônus da prova para o contribuinte, que passa a ter que se defender contra a atribuição de responsabilidade e provar que não cometeu o ilícito. A situação se agrava no Judiciário, pois se o contribuinte tentar desconstituir a atribuição de responsabilidade, caberá a ele demonstrar a invalidade do ato administrativo que o incluiu na CDA, considerando a garantia de certeza e liquidez prevista no artigo 204 do CTN. Esse é um dos pontos mais críticos envolvendo o processo de responsabilização.
Além disso, as limitações técnicas do sistema em que tramita o procedimento pode dar ensejo a prejuízo à defesa, já que o protocolo da defesa é feito no sistema Regularize, com uma caixa de texto com limites de caracteres e limite de cinco arquivos de até 5MB, que em se tratando de casos complexos é um limite pequeno.
O último ponto a ser destacado é quanto ao meio de envio da notificação do PARR, que, segundo o artigo 3º, §1º, I, será prioritariamente feita pelo próprio Regularize, caso a pessoa tenha se cadastrado em algum momento. Ou seja, impõe-se aos contribuintes o ônus de acompanhar mais uma caixa de mensagens para não correr o risco de perder o prazo para a defesa do PARR e ser incluído na CDA à revelia.
Em suma, o PARR representa um avanço na desjudicialização da cobrança tributária, mas seu crescimento quantitativo precisa ser acompanhado de aperfeiçoamentos qualitativos que garantam sua legitimidade e efetividade, evitando que se torne apenas um instrumento pro-forma para incluir responsáveis pelo crédito tributário.
Fonte: Conjur