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26 de novembro de 2024Nada menos do que 1.242 empresas apresentaram pedido de recuperação judicial de janeiro a julho de 2024, segundo dados da Serasa Experian levantados nas varas especializadas e nos Diários Oficiais dos estados. Esses setes meses de 2024 já superam o mesmo período de 2016, quando foram registrados 1.098 pedidos — aquele ano foi de recorde histórico e terminou com 1.863 novas ações.
Mais um dado para fechar o quadro: em junho de 2024, 4.223 companhias estavam em recuperação judicial, segundo levantamento feito pela consultoria RGF & Associados.
Impactantes em todos os sentidos, os dados têm um lado positivo. Mostram que as empresas estão mais resistentes às dificuldades e estão recorrendo mais ao instituto da recuperação judicial do que se curvando diretamente ao processo de falência.
Os números referentes a falências confirmam essa impressão. Embora tenha havido um aumento de 13% de 2022 para 2023, os pedidos de falência diminuíram 23% de janeiro a julho de 2024, em comparação ao mesmo período do ano anterior. Já o número de pedidos de recuperação judicial explodiu de 2022 para 2023, com um aumento de 68%, passando de 833 para 1.405.
Entre 2019 e 2022, os pedidos de falência praticamente se equiparavam aos de recuperação. Já na soma de 2023 e nos primeiros sete meses de 2024 os requerimentos de recuperação judicial foram quase 70% superiores aos de falência.
Um fato que explica o crescimento benigno do número de recuperações judicias foi a aprovação da Lei 14.112, de 2020, que reformou a Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005). “Antes vista como ‘calote legalizado’ por grande parte do empresariado, a recuperação judicial passou a ser encarada como uma solução para sair da crise — independentemente do porte da empresa. Os estudos e casos práticos rotineiros no sentido de desmistificar a lei têm mostrado que, apesar de complexo e por vezes moroso, o processo de recuperação judicial pode ser uma alternativa à resolução da crise, desde que utilizada com responsabilidade”, observa Rodrigo Spinelli, sócio do escritório BBMOV Sociedade de Advogados.
Na economia real podem ser encontradas as explicações para as dificuldades nada benignas que levam empresas ao campo da insolvência. Entre esses fatores, está o alto grau de inadimplência. No universo de 21,8 milhões de empresas em funcionamento no país, 6,9 milhões estavam inadimplentes em junho de 2024: uma a cada três. A soma de suas dívidas passava de R$ 146,2 bilhões, de acordo com o Indicador de Inadimplência, publicado desde 2016 pela Serasa Experian.
A inadimplência e a crescente nos processos de recuperação judicial não surpreenderam os especialistas do mercado. São entendidas, principalmente, como consequências das dívidas contraídas durante o período da pandemia de Covid-19. De 2020 a 2022, o governo interferiu fortemente na economia para garantir que não houvesse interrupção nas cadeias produtivas.
“As empresas deixaram de faturar, o relógio econômico praticamente parou porque elas não podiam funcionar, mas o relógio financeiro continuou rodando. Durante esse período de dois, três anos, com o acesso ao crédito facilitado, as empresas tomaram muitos empréstimos, porque o acesso foi muito fácil. Cessados esses auxílios, as empresas têm que pagar os financiamentos. Quando as empresas têm uma dificuldade maior, elas lançam mão dessas ferramentas de enfrentamento da crise, principalmente a recuperação judicial”, avalia Daniel Carnio Costa, especialista na área que hoje atua como advogado, mas que até 2023 foi juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.
“Ainda que muitos setores do mercado estejam atingindo números pré-pandemia, existe a questão do endividamento que diversos setores tiveram que suportar para conseguir passar por tal período. Diversos ramos tiveram queda de 90% do faturamento, sendo obrigados a dispensar e cortar todo o tipo de custo, sendo o endividamento uma saída momentânea, mas que precisa ser quitada. Os agentes financeiros forneceram crédito e por mais períodos de carência que possam ter fornecido, há um momento que tais valores devem ser pagos”, complementa o advogado Bruno Boris.
Outro fator que abalou a estabilidade do mercado foi a recuperação judicial da rede Lojas Americanas, em janeiro de 2023, que, de forma geral, fez restringir a concessão de crédito, diante do calote descoberto. Há ainda a falta de credibilidade, em razão da desconfiança que foi gerada, justamente porque os balanços da companhia não refletiam a realidade.
Além da Americanas, também pediram recuperação judicial gigantes do varejo como Casas Bahia, Marisa, Tok&Stok, Dia e Polishop, revelando que havia algo mais no mercado setorial. A Magalu, outra gigante do setor, enfrentou grandes dificuldades, mas escapou de pedir recuperação judicial.
O varejo tem chamado bastante atenção em razão dos consideráveis valores envolvidos em suas dívidas e pelo fato de ser um dos primeiros setores que sofrem com a crise econômica, seja pela covid-19, seja pela alta taxa de juros.
As empresas do setor têm baixa margem de lucro e endividamento elevado. A concorrência de plataformas globais de vendas online como Mercado Livre, Amazon, Shein e Shopee continua a se intensificar. E o refinanciamento de dívida ficou mais caro no país e no exterior em meio ao avanço dos juros americanos.
Problemas como erro no planejamento de logística, que ocorre quando o varejista compra em excesso e não vende o suficiente, seja por questões de concorrência ou o mais comum, inflação, são apontados. Também erros de gestão e alterações no segmento de atuação decorrentes do avanço da tecnologia, com a imposição de novos modelos de negócios.
O resultado tem sido um crescente desinteresse dos investidores em ações dessas empresas. Na visão de Fernando Canutto, sócio do Godke Advogados, o setor de alimentos tem uma série de peculiaridades. “As principais são as margens de lucro estreitas; os custos de insumos, aqui incluindo energia elétrica, gás e combustíveis; a complexa gestão de estoque, pelo fato de os insumos serem perecíveis; e a expansão acelerada (muitas empresas no ramo alimentício buscam expandir rapidamente, aumentando seus custos com aluguéis, pessoal e marketing)”, destaca Canutto.
Para o advogado Bruno Boris, “talvez com a redução da inflação como previsão econômica, o mercado sinta uma melhora nos preços que incentive a compra desses bens, mas até que a resposta econômica ocorra, o endividamento do setor continuará elevado. O fato é que a economia não dá uma resposta tão rápida quanto os devedores precisam”, conclui Boris.
A disparada da taxa de juros (a Selic que era de 1,90% em janeiro de 2021 chegou a 13,75% em agosto de 2022 e estacionou em 10,50% em setembro de 2024) foi o principal motivo alegado pela gigante do varejo Casas Bahia para pedir a recuperação extrajudicial e negociar acordo diretamente com os seus principais credores, os bancos Bradesco e Banco do Brasil. A empresa soma dívidas de R$ 4,1 bilhões. “Esse acordo não afeta a operação da companhia e não tem impacto para clientes, fornecedores e colaboradores. Pelo contrário, o alívio do fluxo de caixa dá mais flexibilidade para a empresa negociar com fornecedores e aproveitar as oportunidades de negócio que aparecerem”, garantiu Renato Franklin, CEO do Grupo Casas Bahia.
Antes da reforma da Lei de Recuperação Judicial em 2020, empresas como a Casas Bahia tinham a recuperação judicial como única saída para suas dificuldades. Um remédio muito amargo, pois é caro, pode causar danos à reputação da empresa e não é acessível à maioria delas. Depois da mudança legislativa, a recuperação extrajudicial se tornou mais atraente e mais ampla. Agora permite a inclusão de créditos trabalhistas (antes excluídos do processo) e garante a proteção da devedora com o stay period (congelamento das cobranças) de 90 dias em determinadas circunstâncias.
Em março de 2024, a rede espanhola Dia entrou com pedido de recuperação na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, por causa de uma dívida de R$ 1,1 bilhão. A rede anunciou o fechamento de mais de 300 lojas e três centros de distribuição no Brasil. A decisão veio após resultados negativos no último ano.
Em maio, a Justiça de São Paulo também aceitou o pedido de recuperação judicial da rede de varejo Polishop. Com dívida acumulada de R$ 395 milhões, dezenas de lojas da rede foram fechadas desde 2023. Em abril, a empresa obteve proteção judicial antecipada contra credores e ordens de despejo. A decisão deu um fôlego à varejista para que as atividades nas lojas não fossem suspensas.
Considerada uma das maiores redes de cafeteria do país, a Casa do Pão de Queijo entrou com pedido de recuperação judicial em junho de 2024 na Vara de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem da 4ª RAJ, de Campinas (SP). Nesse processo, estão envolvidas a CPQ Brasil S/A e mais 28 filiais – todas situadas em aeroportos. O passivo da empresa, a ser negociado no processo, é estimado em R$ 57,5 milhões.
Essa não é a primeira grande rede de cafeteria que pede socorro para não ir à falência. A SouthRock pediu recuperação judicial referente às operações das atividades da Starbucks no Brasil no fim de 2023. Em junho, a Zamp comprou os ativos e operações da cafeteria no Brasil, numa tratativa que envolveu R$ 120 milhões.
Para Giulia Panhóca, advogada do Ambiel Advogados, as circunstâncias que ensejaram o pedido de recuperação judicial pela SouthRock são um pouco diferentes da Casa do Pão de Queijo. “O ponto comum entre elas é que ambas justificaram parte do seu pedido de recuperação judicial na crise causada pela pandemia de Covid-19. Não acredito que seja um setor saturado, na verdade, o setor alimentício é um dos que mais cresce e representa atualmente mais de 10% do Produto Interno Bruto nacional”.
A advogada também pontuou que o pedido de recuperação da Casa do Pão de Queijo abrange tão somente a holding e suas 28 filiais localizadas em aeroportos, que foram afetadas em razão da diminuição drástica de passageiros durante a pandemia e mudanças nos hábitos de consumo. “Contudo, o setor aéreo no Brasil também vem se recuperando e demonstrando resultados animadores, apesar do fluxo de passageiros ainda não ter retornado ao patamar pré-pandemia”, pondera a especialista.
Em 2023, 379 empresas do comércio pediram recuperação judicial, com um avanço de 88% em relação a 2022, segundo a Serasa. Nos primeiros sete meses de 2024, o crescimento foi de 60% em relação a 2023: ao todo, 329 empresas do comércio solicitaram recuperação judicial.
Nem mesmo um setor forte e sólido como o agronegócio esteve imune a dificuldades. Embora tenha sido o setor que segurou o PIB brasileiro durante os anos da pandemia, deu sinais de dificuldade — os pequenos produtores rurais têm sido os mais afetados por essa onda.
Segundo especialistas, o número de pedidos de recuperação judicial ainda deve subir nos próximos meses, em ambiente de commodities a preços menores, perdas de safras com o clima e juros ainda altos.
As crises nesse setor são cíclicas, como explica Daniel Carnio. “Se observarmos as atividades do agronegócio, percebemos que, a cada 10, 15 anos, o setor sofre uma crise por uma conjunção de fatores internos e externos, como o preço de commodities, a superprodução, o excesso de produtos. Tivemos também, nesse meio tempo, a guerra da Rússia com a Ucrânia, que afetou a importação de insumos. Tivemos alguns fatores que fizeram com que houvesse a disrupção de algumas cadeias de fornecimento”, comenta Carnio.
As dez maiores dívidas de empresas do setor que estão em recuperação judicial no país somam cerca de R$ 5 bilhões, de acordo com levantamento feito pelo escritório Diamantino Advogados Associados, especializado em Direito Agrário e do Agronegócio, publicado pela Bloomberg Línea.
As duas maiores recuperações judiciais do agronegócio em curso superam um passivo de R$ 1 bilhão cada uma, segundo o levantamento. A Sperafico Agroindustrial, do Paraná, tem dívida de R$ 1,07 bilhão. Já a Usina Maringá, que integra um grupo de empresas com atuação no estado de São Paulo, acumula dívida de R$ 1,02 bilhão.
Segundo a Serasa Experian, houve aumento dos pedidos de recuperação por parte dos produtores rurais que atuam com perfis jurídicos (PJ): de 90, em 2022, para 116 ao longo do ano de 2023.
O produtor rural é um caso sui generis na área da insolvência. É o único agente econômico que pode decidir se é empresário ou pessoa física. Caso faça o seu registro na junta comercial, pode pedir recuperação depois de dois anos. Se optar por não se registrar, também pode fazer uso desse instrumento. Mesmo antes da mudança na lei, a recuperação de produtores como pessoa física já era admitida por meio de decisões judiciais.
Os pedidos de recuperação judicial de proprietários rurais que atuam como pessoas físicas tiveram alta de 535% em 2023, com 127 solicitações, ante somente 20 em 2022. A Serasa aponta que os produtores que mais fizeram solicitações foram maiores plantadores de soja, seguidos pelos maiores criadores de gado e os cafeicultores.
A 4ª Vara Cível de Três Lagoas (MS) aprovou, em junho de 2024, a recuperação judicial de um produtor rural com mais de 50 anos de atividade e que tem mais de R$ 114 milhões em dívidas. O pedido se justificou por adversidades que comprometeram sua liquidez, “tornando a medida necessária para a reestruturação das dívidas do grupo e a continuidade das operações e sobrevivência da empresa”.
O juiz do caso observou que quem se dedica ao exercício profissional de atividade econômica organizada, ainda que de natureza rural, produzindo ou promovendo a circulação de bens ou serviços, deve ser considerado empresário, ainda que não tenha formalizado a inscrição no registro público de empresas: “O empresário cuja atividade rural constitua sua principal profissão, como ocorre no caso, não está obrigado a se inscrever no Registro Público de Empresas Mercantis”.
Analistas explicam que o produtor rural sempre necessitou de crédito e, ainda que tal setor tenha alcançado grande desenvolvimento nos últimos anos, há pequenos e médios produtores que continuam muito dependentes de crédito. Agora, com a possibilidade de obter a renegociação via recuperação judicial, cada vez mais se utilizam desse instrumento como meio de negociação com seus credores. Muitas vezes eles não veem outra saída já que bancos ameaçam expropriar seus próprios instrumentos de produção.
Mas o advogado Rodrigo Spinelli faz um alerta: “No caso do produtor rural, é importante considerar que somente os débitos da atividade rural é que se sujeitam ao processo de recuperação judicial. Apesar de a Lei 14.112/2020 inserir o produtor rural no microssistema da insolvência, muitos créditos da atividade rural ficaram fora do concurso de credores. Além disso, é salutar que o devedor leve em consideração a sua relação negocial com os seus credores, uma vez que a recuperação judicial deve ser vista como a última alternativa.”
O advogado Gledson Campos, sócio da área de insolvência do Trench Rossi Watanabe, explica que, “quando houve o salto de vendas na pandemia, o produtor rural investiu, aumentou a área produtiva, comprou maquinário. E se endividou. O custo de produção subiu, e as comodities baixaram. A crise do agronegócio é decorrente dessa volatilidade do mercado”.
Os analistas também preveem um agravamento em razão da tragédia ambiental no Rio Grande do Sul, que certamente vai ter um impacto na área da insolvência. A avaliação é que o governo terá que agir. “É como na pandemia. O governo vai ter que colocar dinheiro na veia na economia do Rio Grande do Sul”, diz Daniel Carnio.
Para Gledson Campos, a recuperação judicial pode ser a solução, só que não: “Se não houver uma medida de política pública de socorro aos produtores rurais gaúchos, eles certamente farão uso de recuperação judicial. E aí, pode haver uma dificuldade. A alienação fiduciária está fora da recuperação judicial. Então, de que adianta o produtor rural pedir a recuperação judicial, se 80% da dívida dele está garantida por alienação fiduciária?”
Para Filipe Denki, especialista em reestruturação empresarial e sócio do Lara Martins Advogados, é preciso buscar soluções conjuntas para amenizar o impacto e seus efeitos, e não deixar que o produtor rural responda sozinho pela crise.
O advogado considera pouco provável uma escassez na oferta de crédito. “A atividade agrícola tem grande relevância para a economia brasileira, tem proteção constitucional e por isso o governo federal dará subsídios para que isso não ocorra. Por outro lado, cada vez mais existem fundos de investimentos e outras instituições financeiras não tradicionais no mercado do agro interessados em trabalhar e investir no setor”, analisa Filipe Denki.
Fonte: Conjur