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19 de agosto de 2025Durante a Covid-19, o Banco Central aderiu parcialmente a um novo modo de fazer política monetária, modo este que surgiu nos países desenvolvidos como resposta à crise financeira de 2008. Trata-se do chamado “Quantitative Easing” ou QE. Tal política consiste na compra pelo Banco Central de títulos públicos federais do mercado ou outros ativos financeiros como meio de injetar liquidez na economia.
A compra e venda de títulos públicos federais do mercado como meio de fazer política monetária já era prevista pelo artigo 164, §2º da Constituição, mas a Emenda Constitucional nº 106/2020 ampliou o rol de ativos passíveis de serem comprados ou vendidos pelo BC durante a Covid-19, passando a ser possível também comprar outros ativos financeiros, inclusive de pequenas e médias empresas. Apesar de tais previsões, o banco limitou-se a fazer transações com títulos públicos, segundo economistas que estudam o tema [1], por isso dizemos aqui que o BC adotou parcialmente a política do QE.
A questão que se põe é que tanto o artigo 164, §2º quanto a EC nº 106/2020 determinam que a compra e venda de títulos públicos federais pelo BC deve ser feita com o intuito de fazer política monetária. Não poderia o Banco Central usar tal poder de compra de títulos públicos para financiar o Tesouro Nacional, já que tal conduta é vedada pelo artigo 164, §1º da Constituição. Inclusive afasta-se aqui qualquer interpretação de que a EC nº 106/2020 teria autorizado o BC a financiar o Tesouro, já que se fosse essa a intenção tal emenda teria autorizado a compra direta de títulos perante o Tesouro e não a compra no mercado secundário.
Mas, infelizmente, há uma suspeita muito grande que o Banco Central tenha sido utilizado para financiar o Tesouro Nacional nos últimos anos e, pior, tal financiamento continua acontecendo até hoje.
Isto pode ser dito analisando o balanço patrimonial do Banco Central, que indica que ao final de 2019 tal banco possuía em carteira 1.887.229.286 milhares de reais em títulos públicos federais (R$ 1,88 trilhão). Já ao final de 2020 possuía 1.925.057.299 milhares de reais (R$ 1,92 trilhão) nessa posição. Ao final de 2021 a posição era de 2.030.092 milhões de reais (R$ 2,03 trilhões). Ao final de 2022 a posição era de 2.155.258 milhões de reais (R$ 2,15 trilhões). Ao final de 2023 a posição era de 2.316.659 milhões de reais (R$ 2,31 trilhões). Ao final de 2024 a posição era de 2.515.792 milhões de reais (R$ 2,51 trilhões). Em junho de 2025 a posição era de 2.734.947 milhões de reais (R$ 2,73 trilhões).
Talvez o crescimento dessa exposição do BC aos títulos públicos federais seja decorrente do fato de que o Banco Central está autorizado a manter em sua carteira e inclusive renovar (recomprar após o vencimento) os títulos públicos que usa para fazer política monetária, nos termos do artigo 7º, §4º da EC nº 106/2020 e também do artigo 39, §2º da Lei de Responsabilidade Fiscal. Desta maneira parte considerável (ou talvez toda, a depender do ano) do aumento da posição do Banco Central em títulos públicos federais seja decorrente de mero reinvestimento quando um título público vence.
Mas aí vem o problema. De fato, a legislação permite que o Bacen mantenha em carteira tais títulos, mas desde que seja para conduzir a política monetária. E a política monetária a ser feita após o fim de uma crise é a de ir aos poucos se livrando dos títulos públicos que o banco tem em carteira, se livrando também de outros elementos de seu balanço patrimonial, como por exemplo do passivo que é registrado sob a rubrica de “compromisso de recompra” (ou em inglês, “repurchase agreement” ou “repo”). Inclusive o BC reduziu ano após ano seu passivo em compromissos de recompra, o que é a prática esperada. Todavia também era esperada uma redução na posição em títulos públicos federais, o que nunca aconteceu.
Basta consultar os balanços de outros bancos centrais do mundo (como o FED) para se constatar que, após a pandemia, tais bancos passaram a se livrar aos poucos dos títulos públicos federais (no caso do FED, títulos do governo americano) que possuem. A lógica aqui é de fim de crise, onde o “balanço patrimonial do banco deve ser reduzido”.
Quando se diz que o balanço patrimonial do banco deve ser reduzido, trata-se de um jargão do meio econômico-monetário para exigir mais “disciplina” por parte do Banco Central, o que gera escassez de dinheiro no mercado e gera maior controle sobre a inflação. Em momentos de crise o BC age para gerar “elasticidade”, ofertando dinheiro ao mercado e expandindo seu balanço patrimonial (tanto no ativo quando no passivo). Já após a crise vem o momento em que o Banco Central deve promover “disciplina”, reduzindo seu balanço patrimonial (tanto ativo quanto passivo) gerando menos disponibilidade de dinheiro no mercado.
Ou seja, o que o Banco Central do Brasil deveria estar fazendo é reduzir sua posição em títulos públicos federais para gerar mais “disciplina”, o que inclusive ajudaria a controlar a inflação.
Inclusive o leitor deste artigo pode até achar que o balanço patrimonial do Banco Central do Brasil apenas seguiu o crescimento da inflação, não implicando em “aumento real”, tendo os valores apenas aumentado como meio de ajustar-se ao novo valor do dinheiro. Na verdade, é justamente esse aumento no balanço patrimonial do Bacen que está gerando inflação no Brasil. Ele é a causa da inflação, não a consequência.
Adentramos nessas pequenas considerações sobre o funcionamento da política monetária para explicarmos que, se o Banco Central estivesse com títulos públicos federais em carteira com o intuito de fazer política monetária, ele estaria no momento reduzindo sua posição nesses títulos, estaria se livrando deles assim como o FED e outros bancos centrais estão fazendo. O que se extrai disso é que o BC não está tomando a medida de política monetária correta muito provavelmente para não prejudicar o Tesouro Nacional e sua rolagem de dívida, o que acaba implicando em financiamento do Tesouro, o que é inconstitucional por violar o já mencionado artigo 164, §2º da Constituição.
O caso, portanto, é de inconstitucionalidade por desvio de finalidade. Diz o BC que está com títulos públicos federais em carteira para fazer política monetária, mas o que se percebe é que ele está na verdade é financiando o Tesouro Nacional, já que é sabido que uma redução substancial da posição em títulos federais pode dificultar a rolagem da dívida pública.
A consequência disso é mais inflação e se trata de um incentivo para o governo federal se preocupar menos com a questão fiscal, já que o BC estivesse vendendo títulos públicos federais em grande quantidade ou pelo menos deixando de recomprá-los após o vencimento haveria certamente uma pressão sobre o Tesouro Nacional e obrigaria o governo federal a pensar duas vezes antes de gerar mais dívida pública. Justamente por tais consequências negativas é que o legislador constituinte inseriu o artigo 164, §2º da Constituição, que resta violado.
Fonte: Conjur
