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15 de agosto de 2025O Supremo Tribunal Federal ocupa papel central na proteção da Constituição e na resolução de conflitos entre poderes. Antes, com uma atuação discreta, o Supremo passou a integrar o centro do debate público com a redemocratização do país, por meio da ampliação de seus poderes. A nova Constituição expandiu os mecanismos de controle de constitucionalidade, instituiu novos instrumentos processuais e estabeleceu um extenso catálogo de direitos fundamentais, cabendo ao Supremo um papel essencial na sua proteção. O STF ganhou, portanto, destaque ao interpretar e aplicar princípios constitucionais e, assim, resguardar a Carta Magna ganhando um protagonismo que às vezes se traduz em ativismo judicial.
Com um Judiciário cada vez mais protagonista, a redemocratização trouxe também uma crescente judicialização política, de forma que os partidos políticos passaram a recorrer estrategicamente ao STF para reverter derrotas políticas. Assim, o termo “ativismo judicial” ganhou espaço e diferentes interpretações na última década. A depender da legenda que o critica, o ativismo do Supremo foi utilizado como narrativa tanto por partidos de esquerda como de direita, porém, ambos os espectros também aprovaram conjuntamente as alterações legislativas que construíram a figura que o STF se tornou.
É importante examinar a expansão dos poderes do Supremo e como instrumentos judiciais têm sido usados politicamente, analisando os dados sobre o volume de ações concentradas e destacando o papel dos partidos como maiores proponentes. Entre elas, vale abordar a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes sobre o aumento do IOF, avaliando os limites constitucionais do Executivo e os riscos do ativismo judicial.
A Constituição de 1988 consolidou o STF como guardião da Carta Magna e estabeleceu mecanismos robustos de controle de constitucionalidade, inclusive mediante a introdução de instrumentos processuais inéditos. Além disso, adotou normas jurídicas abertas, que integram tanto regras quanto princípios, os quais admitem distintas interpretações e aplicações no ordenamento jurídico.
Isto posto, a jurisdição constitucional enseja uma interpretação ponderacionista, uma vez que não se limita a objetividade como se não existissem lacunas. O texto constitucional está repleto de cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados, como “dignidade da pessoa humana” ou “devido processo legal”, que exigem do intérprete uma responsabilidade hermenêutica. Por isso, o exercício da jurisdição constitucional demanda escolhas interpretativas que, inevitavelmente, afetam a separação dos Poderes e a dinâmica democrática do Estado. Entretanto, para além da escolha do legislador constituinte na construção da Constituição, ao longo da história, o Congresso promoveu alterações que adicionaram maior complexidade ao Poder Judiciário.
A Emenda Constitucional nº 3/93 representa um marco nesse processo ao introduzir a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e conferir efeito vinculante às suas decisões. A ampliação do protagonismo dos ministros relatores, a criação da repercussão geral e da súmula vinculante, ambas trazidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004, consolidaram o STF como o principal ator na salvaguarda da Constituição por meio do controle de constitucionalidade. Essas medidas não apenas expandiram o poder decisório da Corte, como também impuseram efeitos obrigatórios a suas deliberações, vinculando a administração pública e o Judiciário às orientações firmadas.
Isto posto, o Legislativo ao longo dos anos promoveu alterações que culminaram em uma Corte, de fato, Suprema como defende Oscar Vilhena Vieira. Segundo ele, houve uma “deferência” aos tribunais, de forma que esses institutos reforçam a relevância do STF não apenas na interpretação, mas também, na formulação das normas, inaugurando um novo paradigma de diálogo institucional.
O amplo poderio da Suprema Corte levou ao seu crescente acionamento por meio de partidos políticos que se tornaram protagonistas em ações constitucionais instando os ministros a se decidirem sobre questões políticas.
Ao se depararem com derrotas políticas ou com a omissão do Executivo, os partidos veem no STF uma oportunidade para reverter perdas ou pressionar a implementação de pautas alinhadas a seus interesses. Assim, a judicialização da política deixa de ser um reflexo passivo da ineficiência dos demais poderes e passa a ser compreendida também como resultado de uma ação estratégica e intencional dos próprios partidos.
Taylor (2008) aponta que os partidos acionam o Judiciário com pelo menos quatro objetivos: retardar, impedir, desmerecer ou se opor à implementação de políticas públicas com as quais não concordam. Isso demonstra que a ida ao STF não é neutra, mas está conectada às estratégias de disputa de poder, à construção de discursos públicos e à sinalização de posicionamentos perante a opinião pública. Por isso, mesmo quando derrotados no Congresso, os partidos recorrem ao Supremo para manterem coerência com suas agendas, evitarem o desgaste político e demonstrarem atuação diante de suas bases.
Essa dinâmica gerou um novo tipo de relação entre os Poderes. O Judiciário, na figura da Suprema Corte, deixou de ser apenas um árbitro neutro e passou a ocupar posição central no processo de formulação de políticas públicas. Carvalho (2009) destaca esse fenômeno como um processo de policy-making por parte do Judiciário, em que juízes participam ativamente da política. A judicialização da política, nesse sentido, se alia à politização da justiça, ou seja, não apenas se leva a política às cortes, mas as decisões judiciais também passam a influenciar disputas e arranjos políticos.
Isto posto, criticado ou defendido, fato é que as cortes judiciais se têm apresentado como alternativa para diferentes atores políticos, que atuam através de ações judiciais com objetivo de angariar vitórias. Nesse sentido, o Supremo já foi instado para decidir sobre variados assuntos, à exemplo da fidelização partidária, políticas de saúde e, mais recentemente, a constitucionalidade sobre o decreto que aumenta o IOF.
Segundo estudo do Partido Novo de 1988 a 2025, foram propostas 1.753 ações de controle concentrado por partidos políticos. Esse número supera o do próprio Executivo (1.432), ou seja, partidos correspondem por cerca de 20% das demandas concentradas registradas no STF nesse período, sendo que os partidos PT e PDT lideram esse uso do Judiciário, com 275 e 272 ações, respectivamente.
Recentemente, a revista Veja realizou um levantamento demonstrando que desde 2018 os partidos moveram 807 ações para contestar leis aprovadas, anular decisões do Executivo e do Legislativo ou forçar governantes a agir em casos de possível omissão. Esse número, porém, ainda que majoritariamente marcado por partidos de esquerda não se restringe a eles. Segundo o mesmo levantamento, o Partido Novo protocolou 12 processos na Corte desde o início do terceiro mandato de Lula e 8 foram movidas pelo partido durante o Governo Bolsonaro.
Esses números confirmam que lideranças partidárias recorrem sistematicamente ao STF para questionar normas após derrotas legislativas ou para suspender políticas adversas. Entretanto, percebe-se recorrentemente críticas ao ativismo judicial ganharem corpo nos corredores do Congresso. Por vezes capitaneado por partidos de esquerda, por vezes divulgado por partidos de direita, a crítica ao Supremo ganha diferentes espectros na medida de seu interesse eventual.
Um episódio recente ilustra esse conflito institucional. Em junho de 2025, o presidente Lula editou os Decretos 12.466, 12.467 e 12.499/2025, que majorou alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Em reação contrária, o Congresso aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 214/2025, que sustou as medidas restabelecendo a vigência do Decreto 6.306/2007. O governo, assim como o Congresso, judicializou. Tanto os decretos quanto o PDL foram questionados no STF. O PL pediu a declaração da inconstitucionalidade dos decretos, enquanto o PSOL pediu o mesmo em relação ao PDL. Já o presidente da República pediu que o Supremo validasse a norma que aumentou as alíquotas.
Assim, o ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, restabeleceu parcialmente a validade do decreto. A suspensão foi mantida apenas sobre as operações de “risco sacado”. Segundo Moraes, tal cobrança não teria previsão legal. Sobre esse ponto, ele entendeu que o governo extrapolou a competência legal, invadindo o princípio da legalidade tributária. Segundo o ministro, embora autorizada pelo artigo 153, §1º “não se tratou de simples alteração de alíquota […] mas de introdução de nova hipótese de incidência tributária, sem previsão legal anterior, configurando clara afronta ao princípio da legalidade tributária”. Essa ressalva indica que o reconhecimento da existência de um limite legal ao decreto: criar fatos geradores sem lei complementar ou específica é inconstitucional.
Sob a perspectiva dos limites constitucionais à atuação do Executivo, a majoração do IOF evidencia uma tensão relevante. De um lado, o artigo 153, §1º, da Constituição confere ao presidente a competência para alterar as alíquotas do tributo por meio de decreto. De outro, tal prerrogativa não é absoluta: sua legitimidade está condicionada à presença de finalidade extrafiscal, dado sua natureza regulatória.
Esse impasse demonstra a disputa entre os Poderes e a judicialização como instrumento político, dado que na ausência de consenso e com o agravamento do embate entre Legislativo e Executivo, restou ao Judiciário mediar o conflito.
Ocorre que a exceção aos princípios da legalidade e anterioridade justifica-se unicamente para permitir atuação imediata do Estado em defesa do interesse público, como a estabilidade monetária e o equilíbrio do sistema financeiro. Portanto, qualquer alteração deve ter como propósito corrigir distorções conjunturais no mercado. Quando a motivação é meramente fiscal, esvazia-se a função constitucional do tributo ante a ausência de falhas de mercado a serem corrigidas, ou sem que tais falhas tenham sido adequadamente justificadas.
Embora o IOF possa gerar receita, esse efeito acessório não pode ser convertido em finalidade principal. Seu caráter extrafiscal exige que a alteração de alíquotas seja orientada por objetivos de política econômica, não por necessidades orçamentárias. Utilizar a prerrogativa excepcional de alteração imediata para reforçar a arrecadação compromete a legitimidade do tributo e configura uso indevido da competência do Executivo.
Ora, conforme estabelece o artigo 153, §1º, da Constituição, a alteração do IOF por decreto é válida desde que observados os limites fixados em lei. O Executivo pode modificar alíquotas, mas não está autorizado a inovar em relação à hipótese de incidência nem a extrapolar os tetos previamente definidos. Trata-se, portanto, de uma competência condicionada. A majoração de alíquotas desacompanhada de justificativa extrafiscal, voltada exclusivamente à ampliação de receitas, configura abuso de poder. A prerrogativa constitucional para alterar alíquotas por decreto com vigência imediata não é ampla e irrestrita, ou seja, exige base fática e econômica que legitime a intervenção estatal. Se o Executivo se vale desse mecanismo para contornar o processo legislativo, sem fundamentação extrafiscal, trata-se de flagrante desvio de finalidade.
Isto posto, embora a decisão do ministro tenha reconhecido a inconstitucionalidade parcial do decreto, na prática, o Executivo obteve uma vitória significativa. A maior parte do aumento das alíquotas foi mantida, mantendo o ensejo arrecadatório e reafirmando a prerrogativa do governo de editar medidas tributárias com base em fundamentos economicamente discutíveis, mas juridicamente amparados por interpretações flexíveis.
Se ativista ou não, a decisão proferida pelo Ministro ilustra a centralidade política e institucional que o Supremo assumiu na política brasileira. Outrora protagonista de julgamentos marcantes na reafirmação dos direitos fundamentais e sociais, o STF se consolidou como arena privilegiada dos grandes embates nacionais, balizados, esses, por normas abertas, ou não.
Esse protagonismo, contudo, não surgiu por acaso nem é fruto exclusivo da vontade da Corte. Trata-se de um espaço de poder progressivamente delegado pelo Parlamento ao longo dos anos. Sempre que o Congresso se deparou com temas impopulares ou matérias controversas preferiu, por conveniência ou inércia, silenciar-se, transferindo ao Judiciário a responsabilidade política e institucional de decidir.
A consequência desse movimento é que o Supremo se tornou aquilo que o Parlamento lhe permitiu ser: um agente político autorizado a preencher vazios normativos e tensionar as fronteiras entre os Poderes, legitimado não apenas pela Constituição, mas também pelas alterações legislativas. Essa escolha, no entanto, que outrora atendeu aos interesses do Congresso, hoje cobra seu preço. Ao ver decisões judiciais interferirem em pautas caras ao Congresso sem baliza no devido processo legislativo, o Parlamento agora se vê refém da arquitetura de poder que ajudou a edificar.
A decisão sobre o IOF, mais do que um simples episódio de controle de constitucionalidade, revela a complexidade das dinâmicas institucionais entre os Poderes. Mostra como a Corte Constitucional, situada no centro da arena política, atua como árbitra de disputas estruturais que, em tese, caberiam à deliberação democrática. E, ao fazê-lo, reforça tanto sua autoridade quanto os dilemas de um sistema em que a separação dos Poderes é constantemente tensionada por crises políticas, omissões legislativas e estratégias institucionais.
Fonte: Conjur
