Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cristina Kirchner, da Argentina, não conseguirão distender o embate que contamina as relações bilaterais no encontro que terão hoje em Brasília. Para o Itamaraty, não há possibilidade de solução imediata para o imbróglio, causado pela decisão de Buenos Aires de impor licenças para a importação de produtos brasileiros – medida rebatida com iniciativa equivalente de Brasília a 35 bens argentinos, adotada mês passado.
A Argentina promoveu uma “escalada” de medidas protecionistas contra o Brasil. O número de produtos brasileiros sujeitos a licenças de importação no mercado argentino subiu de 53 em setembro de 2008, antes do impacto da crise global, para 411 neste mês, revela estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Cristina desembarcou na noite de ontem em Brasília trazendo a ameaça de levar a represália brasileira ao tribunal de solução de controvérsias do Mercosul. O governo argentino argumenta que o Brasil descumpriu a regra do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), que determina a divulgação prévia da adoção de licenças não-automáticas. Para o Brasil, o contencioso escamotearia uma questão mais profunda – a necessidade de reestruturação de setores argentinos que requerem proteção comercial há duas décadas.
“Não vejo como o assunto possa ser resolvido de imediato”, afirmou ontem o embaixador Enio Cordeiro, subsecretário de Assuntos de América do Sul do Itamaraty, depois de ser sabatinado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado sobre sua indicação para a representação do Brasil em Buenos Aires. “Mas não vejo como um país pode fazer administração de comércio por décadas e décadas. Essas medidas são tomadas, necessariamente, em um horizonte temporal.”
Em médio prazo, o embaixador acredita ser possível negociar um cronograma de eliminação gradual das barreiras bilaterais. Aos senadores, Cordeiro confirmou que o comércio Brasil-Argentina em 2009 terá uma inevitável queda, a primeira desde 2002. De janeiro a outubro, as trocas caíram 30,5%, em relação a igual período de 2008. A recuperação é esperada apenas para 2010, em razão da retomada do crescimento, mas as barreiras, em princípio, continuarão em vigor.
Cordeiro argumentou que o Brasil “foi levado” a adotar as medidas de licenciamento para os produtos argentinos. Fabricantes de móveis e calçados relatam que a liberação das licenças pela Argentina só se tornou mais ágil depois que o Brasil retaliou. Mas persistem problemas. Em autopeças e têxteis, as exportações de alguns itens seguiam paralisadas até ontem.
O diretor executivo da Associação Brasileira da Indústria Calçadista (Abicalçados), Heitor Klein, disse que a Argentina acelerou a importação de calçados, “mas não recuperou o fluxo normal”. Segundo ele, 2 milhões de pares, previstos para embarque entre junho e novembro, estão à espera de licenças.
O presidente da Associação Brasileira da Indústria de Móveis (Abimóvel), José Luiz Fernandez, confirmou que a liberação de licenças está normal. Na semana passada, a Argentina retirou a exigência para que a importação de móveis recebesse visto consular.
Conforme a consultoria Abeceb.com, as medidas protecionistas da Argentina atingem hoje 17,3% das exportações brasileiras para o país. Em setembro de 2008, antes da crise, as medidas prejudicavam 6,8% das exportações brasileiras.
Os empresários argumentam que as medidas argentinas provocam desvio de comércio e favorecem a China. De janeiro a outubro, a exportação de produtos sujeitos a licenças para a Argentina caiu 53% em relação a igual período de 2008. Já as vendas dos mesmos itens chineses cederam 38%.
Os acordos de restrição de exportações aceitos pelos setor privado foram incapazes de conter o protecionismo da Argentina. Quando o primeiro compromisso foi selado, em abril, o número de produtos sujeitos a licença de importação estava em menos da metade do atual: 196.
Para alguns setores, não há solução à vista. As vendas de baterias, embreagens e freios estão paralisadas, relata Antonio Carlos Meduna, negociador do Sindicato da Indústria de Autopeças (Sindipeças). No início de novembro, o Brasil adotou restrições para autopeças argentinas, atingindo o setor mais importante do comércio bilateral. “Se não melhorar, talvez o governo tenha de endurecer mais. Mas vamos dar um voto de confiança e aguardar a reunião”, disse Meduna.
Na reunião de hoje em Brasília, Cristina Kirchner e Lula deverão assistir à assinatura de apenas três acordos de menor relevância e revisar as metas ambiciosas de integração bilateral fixadas no fim de 2007.
FRASES
Enio Cordeiro
Subsecretário de Assuntos de América do Sul do Itamaraty
“Não vejo como o assunto possa ser resolvido de imediato”
“Mas não vejo como um país pode fazer administração de comércio por
décadas e décadas. Essas medidas são tomadas, necessariamente, em um horizonte temporal”