É possível fazer alterações contratuais originariamente unilaterais por acordo entre as partes na Lei 14.133?
3 de setembro de 2025Com dano presumido, STJ adota posição mais rigorosa sobre compartilhamento de dados
9 de setembro de 2025A complexidade crescente do sistema tributário brasileiro, especialmente com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a implementação do IVA-dual através do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), exige uma reflexão aprofundada sobre os mecanismos de estabilização das relações jurídico-tributárias.
A transição de um regime fragmentado para um sistema com sofisticados mecanismos tecnológicos de apuração introduz novos desafios interpretativos que demandam instrumentos adequados para a preservação da segurança jurídica. Inclusive, o regime do IBS e da CBS introduz a tributação por fora, em que o valor desses tributos não integra a contraprestação devida nas operações com bens e serviços.
Neste cenário, a nossa teoria da conservação do ato irregular oferece fundamentos para compreender como o sistema jurídico positivo convive com a produção irregular de atos jurídicos e, mais especificamente, como essa convivência pode ser operacionalizada através de acordos de não persecução tributária.
Na constituição do crédito tributário pelo contribuinte (lançamento por homologação), constata-se um verdadeiro “bloco de conservação” fundamentado na segurança jurídica subjetiva: a confiança legítima do contribuinte foi protegida pelo artigo 146 do CTN, pelo artigo 100, parágrafo único, do CTN, por súmulas e práticas vinculantes e pelos prazos decadenciais. No caso dos acordos de não persecução tributária, os dispositivos do Código Tributário Nacional poderão servir de fundamento de validade para regulação da matéria no direito tributário brasileiro.
Adicionalmente, a consensualidade, que já é uma realidade no direito tributário brasileiro, pode fundamentar a utilização do acordo de não persecução tributária (ANPT) para dirimir conflitos na tributação do consumo. De igual modo, o ministro Roberto Barroso também vislumbra uma modificação paradigmática:
“o Direito Tributário, que historicamente foi concebido sob uma perspectiva conflituosa e adversarial, vem passando por uma importante mudança de paradigma. Atualmente, há uma forte tendência de estabelecer meios consensuais de resolução de conflitos, como a transação, o negócio jurídico processual e outros instrumentos que promovem a pacificação social e a segurança jurídica”.
Aliás, a consensualidade foi abordada no Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que trata de toda a operacionalização do IBS e da CBS. Para fins meramente exemplificativos, citem-se o artigo 2º, §1º, inciso IX, e o artigo 82.
Logo, a consensualidade também pode servir de baliza ou fundamento de validade da instituição dos acordos de não persecução tributária (ANPT).
O artigo 156-A, §1º (O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte), elegeu o princípio da neutralidade como pilar para criação do novo modelo de tributação sobre o consumo.
No mesmo sentido, a Lei Complementar nº 214/2025 estabelece expressamente no artigo 2º que “o IBS e a CBS são informados pelo princípio da neutralidade, segundo o qual esses tributos devem evitar distorcer as decisões de consumo e de organização da atividade econômica“.
Assim, a tributação por fora do IBS e da CBS visa à neutralidade fiscal, impedindo que o tributo influencie as decisões econômicas e assegurando que não seja suportado pelos contribuintes de direito, salvo expressa determinação. Ela será operacionalizada pela não cumulatividade, que busca eliminar a tributação em cascata e assegurar igualdade tributária entre bens e serviços.
Logo, considerando que a neutralidade deve servir de baliza para interpretação das normas da Lei Complementar nº 214/2025 e regulamentações posteriores, deve-se observar uma situação peculiar: destaque e recolhimento equivocado (a menor) pelo fornecedor e seguido por apropriação de crédito inferior pelo adquirente.
Para ilustrar a situação, adotaremos o seguinte exemplo:
A Empresa A, fabricante de produtos eletrônicos, interpretou que teria direito à alíquota reduzida de 19% para IBS/CBS devido à natureza do produto que comercializava. Com base nessa interpretação, realizou a venda de uma mercadoria por R$ 100, calculando o IBS/CBS em R$ 19, totalizando R$ 119 na nota fiscal, dos quais R$ 19 foram efetivamente recolhidos ao erário.
A Empresa B, adquirente da mercadoria, pagou os R$ 119 e aproveitou o crédito de R$ 19 referente ao IBS/CBS destacado na etapa anterior. Posteriormente, ao revender o produto ao consumidor final por R$ 200, a Empresa B calculou o IBS/CBS devido em R$ 60 aplicando a alíquota de 30%, mas pôde deduzir o crédito de R$ 19 da operação anterior, recolhendo efetivamente apenas R$ 41 aos cofres públicos.
Contudo, durante fiscalização posterior, a administração tributária constatou que a Empresa A havia interpretado incorretamente a legislação, não fazendo jus à alíquota reduzida de 19%. Na visão do fisco, a alíquota aplicável deveria ter sido de 30%, resultando em um tributo devido de R$ 30 em vez dos R$ 19 originalmente recolhidos. Consequentemente, a diferença de R$ 11, acrescida de juros e penalidades, seria objeto de lançamento de ofício contra a Empresa A.
O problema surge quando se analisa o impacto dessa correção na cadeia tributária. Se a fiscalização cobrar os R$ 11 adicionais da Empresa A, o fisco arrecadará um total de R$ 71 considerando toda a cadeia, sendo R$ 19 do recolhimento original da Empresa A, R$ 11 da diferença cobrada posteriormente, e R$ 41 recolhidos pela Empresa B. Entretanto, o valor correto que deveria ser arrecadado seria apenas R$ 60, correspondente a R$ 30 na primeira etapa e R$ 30 na segunda etapa após o aproveitamento do crédito integral.
Portanto, a cobrança adicional de R$ 11 da Empresa A, sem o correspondente ajuste do crédito na Empresa B, resulta em tributação de R$ 71 sobre valor agregado de R$ 200, representando uma alíquota efetiva de 35,5%, superior aos 30% legalmente previstos. Isso ocorre porque o crédito de R$ 19 aproveitado pela Empresa B permanece inalterado, enquanto a obrigação da Empresa A é majorada para R$ 30, criando uma duplicidade tributária na diferença de R$ 11.
Analisando a situação acima com base na legislação brasileira devemos considerar alguns aspectos. O primeiro é que a norma não realiza nenhuma distinção sobre o regime de lançamento de ofício em decorrência de erro na interpretação da legislação sem o devido repasse do crédito na cadeia de consumo.
O artigo 330 da Lei Complementar nº 214/2025 dispõe que para “a constituição do crédito tributário decorrente de procedimento fiscal, por lançamento de ofício, a autoridade fiscal integrante da administração tributária da União e as autoridades fiscais integrantes das administrações tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios deverão lavrar auto de infração”.
Não obstante a existência de disposição de lançamento para imposição de multa isolada, a legislação não tratou de hipóteses de não constituição do crédito tributário quando a infração não resultar em recolhimento a menor do IBS e da CBS na cadeia de recolhimento. Todavia, a ausência de clareza sobre o conteúdo da expressão “hipóteses em que, constatada infração à legislação tributária, dela não resulte exigência de crédito tributário” não pode servir de escudo para a tributação em desacordo com o princípio da neutralidade.
Aliás, ao regular a restituição dos tributos, o artigo 38 da Lei Complementar nº 214/2025 estabelece um mecanismo restritivo para a restituição de pagamentos indevidos ou a maior, condicionando-a à verificação de que “a operação não tenha gerado crédito para o adquirente dos bens ou serviços”.
A ratio legis desta restrição reside na necessidade de preservar a integridade do sistema de créditos e débitos que sustenta a não cumulatividade. Caso fosse permitida a restituição sem a verificação do repasse, haveria o risco de dupla vantagem: o contribuinte receberia tanto a restituição quanto o crédito seria mantido na cadeia subsequente, gerando distorção tributária e comprometendo a neutralidade almejada pelo sistema.
Por outro lado, seguindo a mesma premissa, em hipóteses de pagamento a menor sem o respectivo destaque adequado do tributo, o adquirente não receberá o crédito correspondente, impedindo o repasse na cadeia produtiva.
Inclusive, os artigos 39 e 45 da Lei Complementar nº 214/2025 estabelecem um sistema estruturado de ressarcimento para situações em que o montante de créditos supera o montante de débitos. O artigo 39 assegura ao contribuinte o direito de “solicitar seu ressarcimento integral ou parcial” do saldo a recuperar, enquanto o artigo 45 disciplina a apuração destes saldos através da diferença entre débitos e créditos em cada período.
A análise sistemática dos dispositivos revela que, em procedimentos fiscalizatórios onde se constate destaque indevido do IBS e da CBS sem o correspondente repasse para a cadeia seguinte, o valor constituído como principal deverá constituir crédito apropriável caso seja recolhido diretamente pelo vendedor (contribuinte) ou não deve ser constituído o valor principal, nos termos do artigo 331, parágrafo único, da Lei Complementar nº 214/2025.
Isto é, se o tributo foi efetivamente recolhido pelo contribuinte fiscalizado, mas não houve o repasse do crédito na cadeia produtiva, a manutenção do débito sem a correspondente apropriação de crédito resultaria em bis in idem tributário, violando tanto o princípio da neutralidade quanto os fundamentos da não cumulatividade.
A lógica subjacente é que, se o tributo não onera o consumidor final por não ter sido repassado no preço da operação, e se o sistema de não cumulatividade garante o crédito ao contribuinte que o absorveu, então um lançamento que ignora a impossibilidade de repasse e a consequente acumulação de crédito gera cobrança que, economicamente, será desfeita, tornando-se mera movimentação burocrática inócua para o fisco.
Nestas situações, os acordos de não persecução tributária (ANPT) assumem relevância especial, permitindo que se reconheça a inutilidade econômica da cobrança e se estabeleça acordo que preserve a interpretação do contribuinte para períodos passados. A racionalidade econômica e a justiça tributária exigem que se considere o efetivo repasse do tributo na cadeia como elemento de avaliação da pertinência da cobrança.
Aqui, o contribuinte obtém segurança quanto aos períodos passados em contrapartida ao compromisso de seguir a nova interpretação de modo prospectivo para fatos geradores futuros. O instrumento, além de possuir fundamento na nossa legislação, é extremamente adequado para situações envolvendo imposto sobre o valor agregado como o IBS e a CBS.
Os ANPT devem estruturar-se da seguinte forma: (1) o reconhecimento da ausência de fraude e da razoabilidade que justifica a conservação da interpretação anterior; (2) a delimitação temporal dos efeitos conservatórios; (3) o compromisso de observância da nova interpretação para o futuro; e (4) as condições para monitoramento do cumprimento do acordo.
Portanto, a implementação dos ANPT oferece vantagens significativas para o sistema tributário: (1) redução da litigiosidade, através da resolução consensual de conflitos interpretativos; (2) estabilização das expectativas normativas, proporcionando maior previsibilidade para o planejamento empresarial; (3) otimização dos recursos administrativos, evitando fiscalizações e processos administrativos desnecessários; e (4) fortalecimento da cooperação entre fisco e contribuinte, criando ambiente mais propício ao cumprimento voluntário das obrigações tributárias.
Fonte: Conjur
