Foram discretas, até agora, as comemorações, no governo, pela declaração do chanceler britânico Gordon Brown, sobre a morte do chamado Consenso de Washington, regras aceitas como indispensáveis ao bom funcionamento do sistema capitalista, compiladas em 1989 pelo economista John Williamson. Reservadamente, não foram poucos os que comemoraram, entre os conselheiros do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Mas Brown, que expediu o atestado de óbito durante a reunião do G-20, na semana passada, pode ter se precipitado.
A crise não matou, por exemplo, a crença da abertura de mercados como instrumento de desenvolvimento. Mantém-se, nesse campo, a atitude cínica ou esquizofrênica anterior ao colapso das finanças mundiais: os governos anunciam comprometimento com o fim das barreiras comerciais, avançam gradualmente na queda de tarifas de importação, mas asseguram os interesses de setores “sensíveis” com os instrumentos que têm à mão, sejam eles mecanismos de controle não-tarifário de importações, subsídios a produtores ou incentivos perversos a exportadores ineficientes.
Antes de o mundo descobrir que era ameaçado por “ativos tóxicos” criados pela mente fértil de operadores do mercado financeiro, já fracassava a rodada de liberalização da Organização Mundial de Comércio, a chamada rodada Doha. Um dos resultados da cúpula do G-20, na semana passada, foi um apelo por mais, e não menos, abertura de mercados, com a retomada da rodada na OMC. Os líderes podiam marcar uma data para isso, mas não o fizeram. Sabem que o apelo, por enquanto, é mera declaração de intenções. Isso não impede que a abertura de mercados seja eleita como prioridade defendida enfaticamente pelo próprio presidente Lula – líder classificado como “o cara” pelo presidente, Barack Obama.
Um dos principais motivos para o atolamento da rodada da OMC é o fato de que o consenso pela abertura de mercados não era tão consensual assim nos próprios centros do capitalismo mundial. O Congresso americano resistia, como ainda resiste, a eliminar as altíssimas tarifas remanescentes sobre produtos industriais em que o não é competitivo, como o etanol. Os EUA e outros países de gente loura de olhos azuis também relutam, sempre, em reduzir significativamente subsídios agrícolas que dão competitividade desleal aos produtores locais e distorcem o comércio mundial.
Ambiguidades na lista de John Williamson já levaram analistas como Moisés Naim, editor da especializada Foreign Policy, a falar em “Confusão de Washington”, ao mostrar que a quantidade de exceções, adaptações e contradições nas políticas baseadas no Consenso de Washington tornavam esse receituário bastante flexível. E que, como notou o economista Joseph Stiglitz quando ocupava o posto de economista-chefe do Banco Mundial, “instituições são importantes”: nenhum modelo de política econômica pode ter êxito sem o controle de instituições fortes e bem equipadas para atender ao interesse público.
A morte decretada por Gordon Brown não foi a do Consenso de Washington, mas a da crença fundamentalista em apenas um de seus dez itens, a desregulamentação como ferramenta para promover a melhor alocação dos recursos e o desenvolvimento. O novo consenso global estabelece que o mundo pós-crise terá instituições mais fortes e ativas no controle dos agentes de mercado.
Como todo consenso econômico internacional, o novo consenso não é levado integralmente em conta pelos países mais poderosos, no momento de formulação de suas políticas. Entre as medidas recém-editadas por Obama, está a permissão aos bancos para fixar, sem fidelidade às regras rígidas de contabilidade, o valor dos “ativos tóxicos”, os papéis que serão vendidos com generosa ajuda do governo americano para socorrer as instituições financeiras. Analistas como o próprio Stiglitz já alertam para o “capitalismo artificial” de Obama, que mantém o jogo de ficção do mercado, em transações pouco transparentes.
Há quem fale na derrubada de outro princípio do Consenso de Washington, o que entroniza a disciplina fiscal como regra de ouro nas economias sérias. Os EUA nunca respeitaram essa regra, nem pretendem fazê-lo agora. Os europeus, apesar das manifestações em favor de estímulo fiscal, continuam firmes na crença de que muita generosidade agora pode acabar em descontrole inflacionário mais à frente. Os programas de socorro do FMI, agora turbinado com mais US$ 750 bilhões, não eliminaram a exigência de sustentabilidade fiscal.
Heresias ao Consenso de Washington defendidas agora nos países ricos, como a possível estatização de bancos americanos, ou generosidades fiscais, são apontadas como soluções de emergência, a serem descartadas assim que passar o pior da crise. Nem Gordon Brown defende o contrário, o que leva a crer que, se acredita na morte do Consenso de Washington, ele não descarta a ideia de reencarnação.
Autoridades brasileiras lembram, como signo da mudança, a criação do novo mecanismo financeiro criado no FMI para empréstimos, sem condicionalidades ou monitoramento, para países com políticas sólidas. Não lembram que os países considerados aptos a lançar mão desse socorro são só aqueles que mostram um histórico de respeito ao… Consenso de Washington. Boa parte do êxito de Lula no G-20 é exatamente o respeito devotado pelo governo brasileiro a boa parte dos princípios sacramentados pelo consenso.
Ao lado do respeito às políticas ortodoxas, herdado do governo anterior, a contribuição nada desprezível de Lula foi a obstinação em realizar uma política ativa de transferência e distribuição de renda, com programas sociais e o forte aumento do salário mínimo. Conseguiu fazer isso sem romper o consenso washingtoniano de fazer as despesas caberem nas despesas. Intuitivo, ele deve saber que será sua credibilidade quem estará morta, se acreditar, mesmo, que encerrou-se a era da disciplina fiscal para os países de gente morena.