O efeito da novas normas contábeis sobre os dividendos é um exemplo prático de que o conceito da essência sobre a forma não é só um delírio de contadores: ele é tão poderoso que pode mexer no bolso dos acionistas.
A confusão começa com a aposentadoria forçada da lista de depreciação da Receita Federal. Todos sabem que ela pode estar muito longe da realidade, mas admita que foi uma mão na roda quando você quis saber quanto tempo sua galinha-d’angola (pintada) iria viver no balanço. Estava lá: dois anos de vida útil, independentemente de ela estar fraca ou forte. Agora o que vale é a vida econômica. Se ela ainda estiver ciscando, depois do prazo, seu acionista pode ter problemas. O ativo que já era zero, volta a ser despesa, o que significa menos lucros e menos dividendos.
É um problema, admite o professor da Universidade de São Paulo Eliseu Martins, um dos mentores da reforma contábil. Para ele, o ideal é que a empresa pague o dividendo pela regra antiga. “Se ela já deduziu 100% no passado, ela deveria pagar dividendos agora”, afirma. “Eu brigaria por isso seu eu fosse um acionista da empresa.”
O raciocínio de Martins é simples: a nova despesa com a depreciação não é um dinheiro que vai sair do caixa. A situação financeira é a mesma que ela teria se tivesse que pagar os dividendos.
Martins ressalta que não estamos diante de uma novidade. “É a mesma coisa que acontecia com a reavaliação espontânea de ativos [que foi proibida]”, diz. A diferença é que as reavaliações eram sempre para mais e, portanto, diminuíam o dividendo obrigatório. Desta vez, o dividendo pode até aumentar, dependendo do caso, mas a chance maior continua no lado da subtração, já que o ativo vai ser depreciado com base num novo valor.
Suponha que, além das galinhas, você tenha um ativo de R$ 100 milhões cuja vida útil econômica é de 20 anos, mas estava sendo depreciado em cinco pela tabela da Receita. Durante esses últimos cinco anos foram jogados R$ 20 milhões na conta de despesa de depreciação em cada um dos cinco anos, diminuído do lucro e do Imposto de Renda. Agora, o contador da empresa vem e, em nome da harmonização contábil mundial, diz que está tudo errado, que o valor do ativo tem que ser distribuído em 20 anos. Ou seja, o que era zero vira R$ 75 milhões.
A maior parte do problema cai no colo nos sócios que, no passado, já haviam “pago” a conta, recebendo menos dividendos. Se o critério anterior tivesse sido mantido, não haveria mais nada para depreciar e os dividendos seriam maiores.
Do ponto de vista jurídico, diz Martins, o que está acontecendo agora é exatamente o que acontecia com a reavaliação espontânea. A questão dos dividendos até poderia ter sido tratada no processo de reforma da parte contábil da lei, afirma. Mas como é uma questão societária, e não contábil, poderia atrasar ainda mais um processo que demorou sete anos.
“Por isso aparece, muito forte [na norma sobre novo custo de ativos imobilizados], a obrigação de a empresa dizer qual vai ser a política de dividendos em nota explicativa”, diz Martins. “Foi o que encontramos como paliativo.”
No fim, a decisão é da empresa, não há como obrigá-la a pagar os dividendos. “É um ‘trade-off'”, diz Martins. “Você melhora a qualidade do balanço, melhora a qualidade do lucro, mas pode ter repercussão nos dividendos.”