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24 de outubro de 2025Um dos maiores desafios do gestor público ao fundamentar a contratação direta por inexigibilidade em razão de fornecedor exclusivo (artigo 74, I, da Lei nº 14.133/2021) é demonstrar, correta e claramente, a inviabilidade de competição. De um lado, é indispensável delimitar a necessidade administrativa, especificando, com justificativas técnicas, o bem ou serviço que efetivamente atende ao interesse público; de outro, cabe comprovar que apenas um fornecedor consegue comercializar e entregar solução que adira integralmente às especificidades definidas.
O § 1º do artigo 74 explicita os meios probatórios para tanto (atestado ou contrato de exclusividade, declaração do fabricante ou outro documento idôneo) e reforça a vedação à preferência por marca. Ocorre que, na corrida por “um documento” que encerre a discussão, multiplicam-se erros de instrução: aceita-se, sem a devida verificação, declarações associativas genéricas e cartas-patentes tratadas como salvo-conduto, sem demonstrar a suficiência funcional do objeto pretendido, a inexistência de substitutos e a exclusividade de comercialização no mercado relevante. Invoca-se propriedade intelectual como atalho, quando é necessário prova concreta de que não há competição possível para atender à necessidade pública.
Os direitos de propriedade intelectual abrangem marcas, direitos autorais (inclusive sobre software) e patentes, cada qual com características e limites específicos. Marcas identificam e distinguem produtos ou serviços, conferindo ao titular o uso exclusivo daquele signo distintivo em seu ramo (Lei nº 9.279/96), mas não impedem concorrentes de oferecer produtos similares com outras marcas, tanto que a própria legislação proíbe preferência meramente baseada em marca em contratações públicas. Direitos autorais protegem obras literárias, artísticas e científicas (Lei 9.610/98), garantindo ao autor o direito exclusivo de reproduzir, distribuir ou licenciar sua criação. No Brasil, programas de computador são equiparados a obras literárias para fins de proteção autoral (Lei nº 9.609/98), o que significa que o software proprietário é resguardado contra cópias não autorizadas. Por fim, as patentes (regidas pela Lei nº 9.279/96) conferem um direito de exclusiva temporário sobre invenções ou aperfeiçoamentos uteis, dividindo-se em patentes de invenção (vigência de 20 anos) e patentes de modelo de utilidade (vigência de 15 anos).
Em todos os casos, tratam-se de direitos de exclusividade, isto é, poderes legais de impedir terceiros de explorar comercialmente aquela criação específica protegida sem autorização. Contudo, são direitos limitados: têm prazo certo de vigência, alcance restrito ao conteúdo protegido e, sobretudo, não eliminam por si sós a existência de produtos concorrentes ou substitutos funcionais no mercado. Em outras palavras, a propriedade intelectual garante exclusividade jurídica sobre determinada obra ou invenção, mas não assegura monopólio de mercado além do escopo específico daquela criação.
Direitos autorais (software) vs. exclusividade de fornecimento
No contexto das contratações públicas, direitos autorais — especialmente sobre software — costumam ser invocados para justificar a inexigibilidade de licitação sob o argumento de exclusividade. A lógica apresentada é que, por deter os direitos exclusivos sobre certo programa ou conteúdo, apenas o titular (ou licenciado autorizado) poderia fornecê-lo à administração, inviabilizando a competição. Esse raciocínio, porém, é equivocado quando considerado de forma isolada. Ter o direito autoral exclusivo não significa que não existam alternativas viáveis que atendam à necessidade administrativa.
Por exemplo, um órgão público pode precisar de um software com determinada função, embora o código específico de um programa seja protegido por copyright (direito autoral), nada impede que outro software, desenvolvido independentemente, ofereça funcionalidade equivalente. O direito autoral veda cópias ou distribuições não autorizadas da obra original, mas não impede a criação de soluções concorrentes. Assim, não se pode confundir o “direito de exclusividade” do autor com uma hipotética exclusividade de fornecimento do objeto pretendido. Mesmo quando o órgão deseja aquele software exato (por razões de interoperabilidade, continuidade etc.), é comum haver vários distribuidores ou revendedores autorizados no mercado, o que derruba a alegação de fornecedor único.
Em suma, a proteção autoral por si só não comprova inviabilidade de competição. É preciso verificar, na prática, se apenas um fornecedor no mercado pode satisfazer a demanda. Caso existam outros produtos ou prestadores que entreguem resultado equivalente (ainda que por meio diverso), não há justificativa para contratação direta fundamentada em direito autoral exclusivo.
Situação análoga ocorre com as patentes, frequentemente citadas para dispensar a licitação sob alegação de que determinado produto ou tecnologia é “patenteado” e, portanto, exclusivo. Porém, aqui é crucial diferenciar os tipos de patente e avaliar o alcance real da proteção.
Patentes de invenção conferem direito de excluir terceiros de produzir ou comercializar a invenção reivindicada, se o objeto a ser contratado coincide integralmente com uma invenção patenteada em vigor, de fato nenhum concorrente pode legalmente ofertá-lo, sob pena de violação de patente. Nesses casos, desde que não haja outros licenciados autorizados pelo titular, nem substitutos equivalentes fora do escopo da patente, configura-se a exclusividade de fato. Já as patentes de modelo de utilidade protegem aperfeiçoamentos menores em produtos já existentes. Seu âmbito é mais limitado: terceiros podem fornecer o produto básico sem o aperfeiçoamento patenteado, sem infringir o direito.
O Superior Tribunal de Justiça já esclareceu essa distinção ao negar a inexigibilidade pretendida por um detentor de modelo de utilidade. No caso, um fornecedor alegava ser o único capaz de fornecer capas de caixa d’água por deter uma carta-patente de modelo de utilidade. O STJ rechaçou o pleito, pois a patente versava apenas sobre um melhoramento, não impedindo outros de comercializar capas de modelo comum. Não havia exclusividade sobre o produto em si, apenas sobre o diferencial específico, de modo que a concorrência permanecia viável. Em contrapartida, o tribunal observou que, se fosse uma patente de invenção genuína abrangendo o objeto principal, aí sim ninguém além do titular (ou licenciado) poderia fornecê-lo sem infringir a lei, impondo-se a contratação direta.
Essa compreensão foi reafirmada em hipótese envolvendo medicamento patenteado: o Tribunal de Contas da União (TCU) considerou irregular contratar por inexigibilidade a empresa detentora da patente se existirem outros fornecedores por ela autorizados, pois isso evidencia a viabilidade de competição no mercado. Em síntese, possuir uma patente não equivale automaticamente a deter exclusividade de fornecimento. Deve-se investigar se a proteção patentária cobre integralmente o objeto necessário e se realmente não há alternativas técnicas ou licenças que viabilizem a concorrência.
Mesmo quando há um legítimo direito de exclusiva, a Lei nº 14.133/2021 exige prova robusta da inviabilidade de competição (artigo 74, I e §1º). Ocorre que, na prática, muitas instruções ainda se contentam com declarações genéricas de associações setoriais (v.g., Abes) ou certidões de juntas comerciais, sem uma verificação substantiva do mercado. Não basta um papel timbrado afirmando que “X é exclusivo”: essas peças não têm valor probatório autônomo para, por si, fechar o teste de exclusividade. Quando muito, valem como indício a ser confrontado com pesquisa efetiva de alternativas, análise funcional e conferência da exclusividade de comercialização no recorte territorial.
O TCE-SC já enfrentou precisamente o uso de certidões da Abes/entidades congêneres para instruir inexigibilidades em software, assinalando que tais “atestados” não eximem o gestor do dever de verificar a existência de outros fornecedores e produtos similares. Havendo outros fornecedores aptos, há viabilidade de competição e a contratação direta se fragiliza. Em processo envolvendo a Secretaria de Educação, a área técnica registrou que atestados da Assespro/Abes não substituem a análise de mercado e não comprovam por si a exclusividade do objeto; em outro, indicou-se que a menção a “certificado ABES” ou declarações equivalentes não bastava ante indícios de soluções concorrentes.
Vale lembrar o conteúdo da Súmula 255 do Tribunal de Contas da União, segundo a qual é dever do gestor público averiguar a veracidade e abrangência das alegações de exclusividade antes de contratar diretamente. Em outras palavras, cabe ao órgão contratante investigar o mercado, buscar outros potenciais fornecedores e confirmar que, de fato, apenas aquele agente dispõe das condições de suprir o objeto.
A exclusividade capaz de legitimar uma contratação por inexigibilidade não se presume. Ela deve ser comprovada. Direitos de propriedade intelectual podem, em certos casos, ser parte da justificativa. Uma patente válida pode indicar monopólio legal daquele invento, ou o titular de software pode ser o único com acesso ao código-fonte. Porém, conforme exposto, nenhum desses direitos, isoladamente, dispensa a Administração do dever de verificar a real inviabilidade de competição. É preciso demonstrar, com evidências atuais e confiáveis, que não há efetiva alternativa concorrencial para atender à necessidade específica.
Gestores públicos e empresas fornecedoras devem ter cautela redobrada ao fundamentar contratações diretas em supostos exclusivismos. O uso apressado ou indevido desse argumento, sem investigação de mercado, sem delimitar se o objeto é realmente único e sem checar se há outros distribuidores ou equivalentes, pode levar à nulidade do contrato e à responsabilização dos envolvidos.
Em última análise, a regra matriz permanece: a licitação é a via de preferência, e a inexigibilidade, uma exceção de rito estrito. Portanto, propriedade intelectual não deve ser usada como atalho para burlar a concorrência, mas sim analisada com rigor técnico e jurídico, assegurando que o interesse público seja atendido sem sacrificar a isonomia e a legalidade no processo de contratação.
Fonte: Conjur
