De quem é o ônus de comprovar a regularidade dos depósitos do FGTS: empregado ou empresa?
16 de outubro de 2025Planejamento Tributário: Recentes decisões do CARF asseguram Segurança Jurídica
17 de outubro de 2025Notícias recentes revelam um paradoxo inquietante: enquanto o agronegócio brasileiro colhe safras históricas, também atinge níveis recordes de pedidos de recuperação judicial.
A cena é, no mínimo, curiosa. Enquanto colheitadeiras recolhem grãos a perder de vista e o país celebra mais uma colheita recorde, cresce como nunca o número de empresas do agronegócio batendo às portas do Judiciário para pedir recuperação. Os campos florescem. As dívidas, murcham.
Pode parecer poético. Mas algo não bate.
Como pode um setor em plena produtividade, colhendo, exportando, movimentando bilhões, protagonizar também o maior número de pedidos judiciais para adiar ou evitar pagamentos? Seria o agro vítima de sua própria grandeza? Ou será que estamos diante de um fenômeno mais silencioso e incômodo: o uso indevido da recuperação judicial como instrumento de alívio financeiro, uma espécie de moratória com verniz legal?
A ideia por trás da recuperação é nobre: dar fôlego a quem, mesmo viável, atravessa uma fase ruim. Preservar empregos, manter a engrenagem funcionando. Mas, quando essa ferramenta vira escudo para quem colhe bem, vende melhor e mesmo assim se esquiva de honrar compromissos, algo está fora do lugar.
Não se trata de exceção. Os números mostram que o expediente virou tendência. Só no primeiro trimestre de 2025, os pedidos de recuperação judicial no agro cresceram quase 45% em relação a 2024, alcançando 389 casos. No segundo trimestre, o número chegou a 388 pedidos, uma alta de 60% frente ao mesmo período do ano anterior. Produtores pessoas físicas lideraram esse avanço, com aumento de 83,9% nos pedidos. Trata-se da maior incidência proporcional entre todos os setores da economia: em cada mil empresas do agro, 11,49 estão em recuperação, contra 6,33 na indústria.
Grandes grupos do agro, com estrutura sólida e capital de giro de dar inveja, têm optado pela recuperação como estratégia. E não como último recurso. Ganha-se tempo, empurra-se a dívida, suspende-se a execução. E a lavoura segue firme.
Na prática, virou um excelente negócio: planta-se, colhe-se, vende-se — e não se paga. Ao menos, não agora. E talvez nem no futuro. Muitos planos de recuperação judicial são aprovados com abatimentos de até 90% da dívida e prazos de pagamento que ultrapassam duas décadas. Difícil não enxergar nisso um calote com benção judicial.
Não por acaso, 2024 já havia fechado com recorde histórico de 1.272 pedidos no setor, alta de 138% em relação ao ano anterior — e a curva não dá sinais de desaceleração.
Enquanto isso, os credores esperam. Alguns quebram. Outros recorrem ao Judiciário tentando reverter o que já se tornou um desequilíbrio estrutural. A recuperação, que nasceu para socorrer empresas viáveis em momentos de sufoco, tem sido usada por gigantes do campo como instrumento de alívio financeiro artificial, um modo elegante de fugir de obrigações.
Mais do que isso: o instituto, quando mal aplicado, rompe a lógica que sustenta as relações comerciais. Quebra-se a confiança. O crédito encolhe. E quem cumpre seus compromissos termina, ironicamente, financiando o privilégio de quem soube usar o instituto a seu favor. A esperteza vira estratégia. E a honestidade, ônus.
O uso indiscriminado da recuperação traz riscos e não apenas jurídicos. Quando se normaliza o calote com respaldo judicial, todo o setor perde credibilidade. E não demora para que bancos fechem a torneira, fornecedores fiquem receosos e o custo do crédito aumente para quem apenas quer trabalhar com honestidade.
A Justiça, nesse cenário, corre o risco de ser usada não para corrigir injustiças, mas para institucionalizá-las. É justamente aqui que se perde de vista a essência do instituto: a recuperação judicial deveria ser um remédio extremo, reservado a quem de fato não encontra outra saída.
A conjuntura lembra o quadro Checkmate, de Retzsch. Nele, um jovem enfrenta o diabo em uma partida de xadrez que tem por prêmio a própria alma. À primeira vista, a derrota é certa: o tabuleiro anuncia um xeque-mate inevitável. Conta-se, porém, que o grande enxadrista Paul Morphy, ao contemplar a obra, percebeu o improvável. Ainda havia um movimento capaz de reverter o destino, de salvar o jogador.
Assim também deveria ser no direito empresarial. A recuperação judicial existe para aquele momento em que tudo parece perdido, quando não resta alternativa. Se há outras saídas, o instituto não se legitima. O problema é que, no agro, ela vem sendo acionada não como a jogada final, mas como uma estratégia antecipada, calculada e confortável. Uma inversão perversa: transforma-se o que deveria ser a tábua de salvação em simples atalho para postergar dívidas.
Talvez seja tempo de rever critérios, endurecer filtros e tratar com mais cuidado esses pedidos. Nem toda crise é real. Nem todo balanço vermelho traduz desequilíbrio. Muitas vezes, trata-se apenas de uma escolha conveniente: a de não pagar.
É preciso restaurar o espírito original da recuperação. Aquele que socorre, não que premia. Que acolhe quem precisa, mas não protege quem apenas lucra com a espera.
Fonte: Conjur
