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3 de setembro de 2025A Lei nº 14.133/2021 instituiu um novo marco normativo em contratações públicas, buscando maior eficiência, planejamento e consensualidade nas relações contratuais. Entre as inovações, destacam-se as disposições sobre a alteração dos contratos, que mantêm a prerrogativa da administração de impor mudanças unilaterais, mas também possibilitam a alteração por acordo entre as partes. Essa dualidade, no entanto, com a atual redação (diferente da revogada Lei nº 8.666/1993) gera controvérsias interpretativas, notadamente em relação aos limites das alterações quantitativas e qualitativas.
Em um primeiro momento, este autor, debruçando-se sobre a nova redação, compreendeu que, havendo consenso entre as partes, seria possível ultrapassar os limites percentuais previstos às alterações unilaterais. Contudo, há de se dizer que não é assim.
Participo do prestigiado Instituto Nacional da Contratação Pública (INCP), instituição sem fins lucrativos que congrega cerca de cinquenta reconhecidos professores, estudiosos da área, que se volta aos estudos, debates, aprofundamentos e contribuições no cenário das contratações públicas.
No INCP, tenho a honra de ladear, juntamente com outros colegas de elevado grau que também tomam assento em suas cadeiras, dois grandes ícones na área, professores que formaram, ensinam e continuam influenciando várias gerações do direito administrativo, os memoráveis professores Hamilton Bonatto e Paulo Reis. Aprender, discordar e concordar com esses mestres é um privilégio que se carrega por uma carreira inteira.
Após um aprofundamento nos debates acadêmicos, em especial a partir das discussões e posicionamentos desses jurisconsultos (até certo ponto divergente entre eles), venho, neste artigo, estabelecer a minha posição (de revisitação) sobre o tema. Isso porque minha percepção inicial de que a consensualidade seria uma via para superar os limites impostos pela própria natureza da alteração não se demonstra a melhor.
Este artigo propõe uma análise crítica da interpretação de que o acordo mútuo dispensa os limites, defendendo a tese de que as alterações qualitativas ou quantitativas, previstas como prerrogativas unilaterais da administração, devem se submeter aos limites de 25% (ou 50% em reformas), mesmo quando realizadas por acordo entre as partes.
Parto de um pressuposto: quem possui o poder de impor também detém o de consentir. O que pode ser imposto, pode ser aceito. Não obstante, a consensualidade, nesse caso, é a forma de efetivação de um poder e não a criação de uma nova categoria de alteração que se sobreponha aos limites legais.
A Lei nº 14.133/2021 divide as alterações contratuais em duas categorias principais:
previstas no artigo 124, inciso I, as quais conferem à administração a prerrogativa de modificar o contrato por meio de cláusulas exorbitantes. Essas alterações podem ser qualitativas (mudança no projeto ou especificações para melhor adequação técnica) ou quantitativas (acréscimo ou supressão de quantitativo e, consequentemente, do valor). O artigo 125 da mesma lei nº 14.133/2021, expressamente, limita as alterações qualitativas e quantitativas, realizadas de modo unilateral, a 25% do valor inicial atualizado do contrato para obras, serviços e compras, e 50% para reformas de edifícios ou equipamentos. O artigo 126, por sua vez, veda expressamente que essas alterações, quando efetivadas unilateralmente, possam transfigurar o objeto (isso é extremamente relevante ao tema e não pode ser desconsiderado).
Estatuídas no artigo 124, inciso II, essas modificações dependem da concordância de ambas as partes. Elas são aplicadas em situações como a substituição de garantia, modificação do regime de execução e, mais importante, para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro em casos supervenientes à celebração da avença. A lei não impõe limites percentuais a essas alterações específicas, pois seu objetivo é restaurar o equilíbrio da contratação e não expandir ou alterar o objeto.
Preciso dizer que a limitação percentual à alteração unilateral (os percentuais) constitui direito subjetivo concreto do contratado, à medida que veda que a administração lhe imponha “goela abaixo” alteração supressiva ou adicional que não possa suportar e, ao mesmo tempo, direito subjetivo abstrato da sociedade, ao passo que veda a atuação mal planejada (ou até) fraudulenta da administração.
Assim é que a controvérsia surge, ou seja, quando uma alteração de natureza quantitativa ou qualitativa — que se enquadra na prerrogativa unilateral da administração — é realizada por acordo, ou seja, parte de uma proposta do contratado e não do poder público, sendo por este consentida.
Recentemente, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG) enfrentou a questão, no Processo nº 1188209, de 6 de agosto de 2025, em processo resultante de consulta. O acórdão do órgão de controle externo argumenta que, nessas situações (originariamente unilaterais, mas que também comportam consensuais), “não há limitação expressa quanto ao percentual” (interpretou semelhante como eu fiz inicialmente).
A interpretação feita no acórdão do TCE-MG, embora baseada na literalidade do texto, pode ser revista à luz de uma análise sistemática da lei e aos princípios fundamentais que regem as contratações públicas (principalmente os princípios do planejamento, da igualdade e da segurança jurídica).
O principal lapso do meu raciocínio inicial foi a desvinculação da forma (acordo) do conteúdo (natureza da alteração). O artigo 125 estabelece um limite à própria alteração quantitativa (ou qualitativa), independentemente de como ela é formalizada. O percentual de 25% não é apenas um limite para o poder de imposição, mas sim um balizador à expansão do objeto contratado. Permitir que o acordo supere esse limite é, essencialmente, viabilizar que se contorne a lei e o processo licitatório.
Se a administração e o contratado puderem, por meio de um “acordo”, aditar o contrato em 50%, 80% ou mais, a licitação perde sua razão de existir. Esse cenário incentiva práticas desleais, como o “jogo de preços”, em que um licitante oferece um valor inicial abaixo do valor praticado no mercado para vencer o certame, com a intenção de expandir o objeto e o lucro por meio de aditivos futuros.
Isso viola a isonomia e a competitividade, e desrespeita o princípio do planejamento, que exige que a administração preveja a contratação (sob os aspectos qualitativos e quantitativos) de forma diligente e técnica na fase preparatória da licitação. O aditivo, nesses casos, se tornaria uma espécie de contratação direta “disfarçada”, violando a obrigatoriedade de licitar.
A própria lei, em seu artigo 124, inciso II, já prevê a modalidade de acordo para alterações que buscam o reequilíbrio econômico-financeiro (o qual, obviamente, não estão sujeitas à limitação percentual, mas ao impacto financeiro comprovado pelas partes). As modificações qualitativas e quantitativas não se encaixam nessa categoria, pois seu objetivo não é restaurar o equilíbrio original, mas sim melhor qualificar ou expandir o objeto da contratação.
Portanto, aplicar a ausência de limites da modalidade consensual às alterações unilaterais quantitativas e qualitativas é um erro lógico e jurídico que compromete a integridade do sistema (preciso ter a humildade intelectual de vir a público reconhecer o lapso interpretativo inicial).
A interpretação mais alinhada aos princípios da Lei nº 14.133/2021 é a que defende que a forma de formalização (imposição unilateral ou acordo) não altera a natureza da alteração. A prerrogativa unilateral da administração, de modificar unilateralmente o contrato, pode, inegavelmente, ser exercida de duas formas:
Quando o contratado é obrigado a aceitar o acréscimo ou a supressão, nos limites de 25% (ou 50% em casos específicos). Ressalta-se que, se a diminuição for superior a esses limites, ele poderá pleitear a rescisão (consensual, arbitral ou judicial) do contrato com base no inciso I, do § 2º, do artigo 137.
Quando a administração, em vez de impor, consente a mesma alteração. Esse acordo, no entanto, deve se limitar aos mesmos limites percentuais (objetivos) de 25% (ou 50% em reformas), pois seu objeto (material) é o mesmo da prerrogativa unilateral.
Essa abordagem preserva a segurança jurídica, a vinculação ao edital e a isonomia entre os licitantes. O acordo se torna uma ferramenta de gestão e pacificação da relação contratual, demonstrando-se a boa-fé da administração e do contratado, sem se transformar em uma exceção ilimitada que derrogue as proteções do processo licitatório.
Conforme ressaltado no próprio acórdão do TCE-MG supracitado, a administração deve comprovar, de forma fundamentada, a vantagem de qualquer alteração em relação à realização de um novo certame. Se um acréscimo (desproporcional) se faz (necessário), a solução (adequada) é a realização de um novo processo licitatório, assegurando-se a competitividade e o melhor resultado para o erário.
Obviamente que, como já se admitia na Lei nº 8.666/2021, a impossibilidade de alteração excepcionalíssima, in concreto, acima dos percentuais, não é absolutamente vedada, principalmente quando se demonstrar o evidente prejuízo ao interesse público, especialmente à conclusão da execução contratual (o que já era, inclusive, admitido pelo TCU). Para tanto, é indispensável que o gestor motive contundentemente as razões de fato e de direito que levam à necessidade e adequação da medida tomada.
Em sede conclusiva, afirmo que a flexibilidade na alteração da redação na Lei nº 14.133/2021, no ponto discutido neste artigo, é sim uma realidade, mas não pode ser interpretada de forma a comprometer os princípios mais caros do direito administrativo, tampouco à efetivação do direito fundamental (do cidadão) a uma boa administração pública.
O entendimento de que não há limites percentuais às alterações quantitativas consensuais (nos casos unilaterais) cria um caminho perigoso, passível de uso indevido e de burla ao processo licitatório. O ideal é que a via consensual às alterações qualitativas e quantitativas seja vista como uma alternativa de gestão e não como uma exceção aos limites legais.
A administração, ao ter o poder de impor um acréscimo de 25% (ou 50%), também tem a faculdade de negociá-lo, desde que o resultado final se mantenha dentro dos limites impostos pela lei à própria imposição. Essa interpretação garante que a consensualidade sirva ao propósito de tornar a gestão mais eficiente, sem que a integridade do processo licitatório e a proteção ao interesse público sejam comprometidas.
Fonte: Conjur
