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28 de agosto de 2025A Lei Global Magnitsky de responsabilização por violações de direitos humanos é um instrumento unilateral de política externa dos Estados Unidos que evoluiu de uma resposta legislativa a um crime na Rússia para uma ferramenta de aplicação global. Sua doutrina e uso têm sido objeto de intenso debate, com especialistas questionando sua natureza, que transita entre a “diplomacia coercitiva” e uma forma de “justiça retributiva extraterritorial”. As sanções, que incluem bloqueio de bens e restrições de visto, são implementadas por uma ordem executiva que ampliou seu alcance e flexibilizou os critérios.
Recentemente, a legislação ganhou protagonismo com sua aplicação, pela primeira vez, a um magistrado de uma democracia consolidada: o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil Alexandre de Moraes. A sanção, justificada pelos EUA com alegações de “graves violações de direitos humanos”, violações da liberdade de expressão e prisões arbitrárias, gerou uma crise diplomática e levantou questões sobre soberania e a instrumentalização política do direito internacional. A reação do STF, que classificou a medida como uma “afronta à soberania nacional”, ilustra as complexas ramificações do caso. Mas quais são os fundamentos da lei e as implicações de sua aplicação ao contexto brasileiro?
Para compreender a Lei Global Magnitsky, é fundamental traçar sua origem e evolução (8). A lei tem sua gênese na história de Sergei Magnitsky, um advogado russo que, em 2008, denunciou um esquema de corrupção envolvendo autoridades do governo. Em consequência, Magnitsky foi preso e, em 2009, morreu na prisão com evidências de tortura, tornando-se um símbolo global da luta contra a impunidade estatal.
Em resposta, o Congresso dos Estados Unidos aprovou em 2012 o “Sergei Magnitsky Rule of Law Accountability Act”. Sancionado por Barack Obama, o ato inaugural visava a responsabilizar as autoridades russas envolvidas na morte de Magnitsky. Pela primeira vez, uma lei norte-americana permitia sanções direcionadas a indivíduos por crimes de direitos humanos cometidos fora do território americano, com um alcance reativo e focado em um país.
O sucesso do ato original levou à sua globalização. Em 2016, o Congresso promulgou o “Global Magnitsky Human Rights Accountability Act”, estendendo o mecanismo de sanções a qualquer agente de governo estrangeiro responsável por graves violações de direitos humanos ou corrupção sistêmica. A lei tornou-se um veículo para projetar os valores legais americanos extraterritorialmente.
A Ordem Executiva (EO) 13.818, de 2017, consolidou este movimento, estabelecendo o arcabouço para a implementação da lei e delegando as sanções ao secretário do Tesouro. A EO foi o ponto de inflexão que transformou a lei em uma ferramenta de ampla aplicação, flexibilizando os critérios. O padrão de “violações graves de direitos humanos reconhecidas internacionalmente” foi alterado para “abuso sério de direitos humanos”. Esta mudança eliminou a exigência de que os crimes fossem cometidos por atores estatais, permitindo sanções por um único caso e contra atores não governamentais. Analogamente, a corrupção deixou de ter que ser “significativa”, ampliando o leque de comportamentos passíveis de sanção.
A Lei Global Magnitsky tem gerado intenso debate no direito internacional. Diferentes correntes analisam sua natureza e legitimidade. Ela é vista como “diplomacia coercitiva”, estratégia que busca objetivos políticos por sanções econômicas. Uma corrente teórica argumenta que o programa funciona de forma retroativa para punir abusos passados, classificando-o como “justiça retributiva extraterritorial” fora dos mecanismos penais internacionais. Argumenta-se que a Teoria da Guerra Justa não se aplica a essas medidas punitivas.
Outros especialistas sugerem que governos usam sanções direcionadas como instrumentos de justiça criminal para combater corrupção e abusos de direitos humanos. Outra abordagem teórica ilustra o efeito dissuasivo das Sanções Globais de Direitos Humanos (GHRS) como uma nova camada de defesa no sistema internacional, preenchendo falhas de mecanismos anteriores. As sanções Magnitsky superam a necessidade de consentimento estatal (permitindo ação mesmo sem a participação de um país no TPI) e intervêm em estágios iniciais, com um critério menos rígido que o de convenções internacionais. A aplicação da lei a estrangeiros por atos fora do território americano levanta questões de soberania nacional.
A aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro dAlexandre de Moraes em 30 de julho de 2025 foi um momento sem precedentes. As alegações oficiais dos EUA incluíram “graves violações de direitos humanos”, detenções arbitrárias e negação de garantias de julgamento justo. O ministro foi acusado de abuso de autoridade ao emitir “ordens sigilosas que obrigaram plataformas online, incluindo empresas americanas de mídias sociais, a banir as contas de indivíduos por publicarem discursos protegidos”. A declaração dos EUA afirma que as ações de Moraes foram parte de um “esforço direcionado e politicamente motivado para silenciar críticos políticos”.
A sanção foi recebida como um ataque à soberania brasileira. Em nota, o STF classificou a medida como uma “afronta à soberania nacional” e um uso inaceitável de sanções por discordância com decisões judiciais, manifestando solidariedade ao ministro. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) reforçou que a interferência em outro país com leis de aplicação extraterritorial viola o Estado democrático de direito. A aplicação da lei contra Moraes é vista como um uso “inédito” contra um magistrado por suas decisões jurisdicionais, o que ataca a independência do Judiciário. A sanção representa uma colisão de narrativas: de um lado, os EUA defendendo a liberdade de expressão e, de outro, o Brasil invocando a soberania e a defesa de sua democracia.
As sanções diretas incluem o bloqueio de bens e contas sob jurisdição americana, representando uma “morte fiscal do CPF”. O impacto se estende a efeitos indiretos, como a interrupção de serviços de empresas que operam sob leis americanas, incluindo big techs. A sanção impõe uma “morte social” no cenário internacional, tornando o indivíduo “tóxico”. A repercussão no mercado brasileiro foi imediata, com perdas dos principais bancos somando quase R$ 42 bilhões em valor de mercado em um dia.
A sanção a um magistrado de uma nação aliada foi vista pelo Brasil como um ataque à soberania. A crise criou um problema para as empresas brasileiras. O STF proibiu que empresas punam cidadãos com base em decisões unilaterais estrangeiras. Em reação, a Embaixada dos EUA afirmou que “nenhum tribunal estrangeiro pode anular as sanções impostas pelos EUA”. Isso colocou as empresas em um dilema: obedecer às leis brasileiras e arriscar sanções dos EUA, ou acatar as sanções americanas e violar uma determinação do STF. O caso de Moraes testa os efeitos da lei em uma “democracia ocidental consolidada”. O uso da legislação contra um magistrado expõe o risco da instrumentalização de uma medida de direitos humanos para pressionar politicamente nações aliadas, afetando sua soberania e estabilidade econômica.
A Lei Global Magnitsky evoluiu para um instrumento de política externa de alcance global. A análise da doutrina revela que a lei é vista de forma ambivalente: como “justiça retributiva extraterritorial” ou como “diplomacia coercitiva” que levanta questões de soberania. A aplicação da lei a um magistrado do STF expôs esta ambivalência de forma inédita. A sanção contra Alexandre de Moraes tornou-se um ponto de atrito entre a defesa de padrões universais de direitos humanos e a proteção da soberania nacional. A crise subsequente ilustra que as consequências vão além dos alvos individuais.
O precedente estabelecido levanta uma questão crucial para o futuro do direito internacional. Se a Lei Magnitsky puder ser utilizada para sancionar autoridades de democracias por decisões judiciais, o que era um instrumento de combate a autocratas pode se tornar uma ferramenta para pressionar aliados e interferir em assuntos internos. Isso sugere que a lei, em sua forma atual, não é apenas um mecanismo de responsabilização, mas um instrumento de poder político que, dependendo de sua aplicação, pode tanto defender a justiça quanto minar a soberania de nações.
Fonte: Conjur
