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25 de agosto de 2025O Tribunal de Contas da União tem consolidado ao longo do tempo uma jurisprudência vasta quanto à responsabilização de agentes públicos. Contudo, persiste uma lacuna relevante: a ausência de critérios sedimentados de dosimetria da responsabilização.
Na prática, isso significa que, embora se reconheça a possibilidade de modular a responsabilidade do gestor conforme as circunstâncias do caso concreto, falta um método objetivo e transparente que oriente a decisão colegiada.
O resultado é um campo marcado por assimetria e ameaças à insegurança jurídica: em situações semelhantes, diferentes unidades técnicas ou colegiados do TCU podem chegar a conclusões desiguais quanto ao montante do débito, à gravidade da conduta ou à própria extensão do ressarcimento. Essa ausência de balizas claras acarreta duplo risco: de um lado, a imposição de responsabilizações desproporcionais, que ultrapassam a medida da conduta; de outro, a adoção de decisões meramente formais, destituídas de efeito pedagógico. Importa salientar que esse desafio não se restringe ao âmbito do TCU, mas se projeta igualmente sobre outros órgãos de controle e sobre a própria administração pública, manifestando-se, por exemplo, nos processos administrativos disciplinares (PADs).
O problema é ainda mais sensível quando se considera o comando expresso no § 2º do artigo 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), incluído pela Lei nº 13.655/2018, que determina:
“Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.”
Esse dispositivo funciona como verdadeiro mandado de dosimetria, vinculando o aplicador da sanção administrativa à análise concreta da conduta, dos efeitos e das condições pessoais do agente. Ainda assim, o TCU não estruturou metodologia uniforme que permita a aplicação prática desses critérios, permanecendo, em larga medida, preso a um modelo binário — de imputação integral ou absolvição completa.
A partir da edição do artigo 28 da Lindb), que passou a exigir dolo ou erro grosseiro para a aplicação de sanções administrativas, abriu-se um espaço para repensar o modelo. Não basta diferenciar entre responsabilidade e não responsabilidade: é preciso dimensionar a resposta institucional de acordo com critérios objetivos e verificáveis.
É nesse contexto que este artigo propõe articular a teoria do risco inerente — que distingue funções em que o insucesso é parte natural da atividade —, com a construção de um modelo de dosimetria aplicável pelo TCU, baseado em parâmetros como natureza da atividade, elemento subjetivo, nexo causal, benefício pessoal, resultado causado, responsabilidade profissional, antecedentes funcionais e capacidade econômica do agente dentre outros.
É certo que nem todas as funções estatais se equivalem em termos de risco. Atividades como a de um policial em perseguição, de um médico em cirurgia emergencial, de um diplomata em negociação internacional, de um piloto de caça em treinamento ou de um gestor público que conduz projetos inovadores, desenvolvedores de vacina envolvem margens inevitáveis de insucesso. Ainda que adotadas todas as cautelas razoáveis, resultados adversos podem surgir sem que isso configure dolo ou erro grosseiro.
Saulo Cruz/TCU
A responsabilização, nesses casos, só se justifica quando presentes condutas manifestamente incompatíveis com o standard mínimo de diligência esperado, especialmente diante de regras rígidas e formalizadas. Situação diversa ocorre em hipóteses de culpa em sentido estrito, sem risco inerente, como no caso do administrador que adquire gêneros alimentícios acima da capacidade de armazenagem, permitindo seu apodrecimento, ou do gestor que paga por serviços nunca executados por não conferir a documentação, ou o negociador que se omite em proceder à due diligence obrigatória, expressamente prevista nos protocolos institucionais. Aqui não se trata de risco inevitável da função, mas de negligência, suficiente para ensejar o ressarcimento ao erário.
O artigo 28 da Lindb instituiu a exigência de dolo ou erro grosseiro para a aplicação de sanções administrativas. Daí decorre uma diferenciação relevante:
Sanções administrativas (multas, inabilitação etc.): exigem dolo ou erro grosseiro.
Ressarcimento ao erário: pode decorrer de culpa em sentido estrito, por sua natureza de recomposição patrimonial.
Responsabilidade civil do Estado: objetiva, nos termos do artigo 37, §6º, da CF.
Como já assinalávamos outrora:
“As sanções administrativas, a exemplo de multas ou de inabilitação para exercício de cargo em comissão ou função de confiança, exigirão doravante a comprovação do dolo ou do erro grosseiro. Algo bem diferente da recomposição dos prejuízos causados ao erário, dado que não se trata de sanção, mas de medida de ressarcimento ao erário, a qual se aproxima mais da teoria da responsabilidade civil.”
Essa diferenciação é essencial. Enquanto a sanção possui natureza punitiva, sujeitando-se à reserva de dolo ou erro grosseiro, o ressarcimento busca repor o patrimônio público e pode ser exigido sempre que comprovada a culpa em sentido estrito.
A teoria do risco inerente atua, portanto, como filtro protetivo do servidor público, resguardando-o contra responsabilizações automáticas em atividades naturalmente expostas a insucessos. Não se cuida de tutela ao particular lesado, que permanece amparado pela responsabilidade objetiva do Estado ou pela reparação devida pelo contratado, sujeita ao critério da mera culpa.
Portanto, em atividades de risco elevado, não basta a mera culpa, devendo-se exigir dolo ou erro grosseiro para afastar a injustiça da responsabilização automática.
Matriz penal, transposição ao direito administrativo sancionador e contribuições de Dworkin
O princípio da individualização da pena (CF, artigo 5º, XLVI) assegura que nenhuma sanção deve ser aplicada de forma padronizada, mas graduada conforme as circunstâncias pessoais do agente e as peculiaridades do caso concreto. Como lembra Nucci, “não teria sentido igualar os desiguais, sabendo-se, por certo, que a prática de idêntica figura típica não é suficiente para nivelar dois seres humanos”.
Embora formulado no âmbito penal, esse princípio oferece parâmetros valiosos ao controle externo. A mera subsunção mecânica de condutas a tipos sancionatórios não garante justiça: é necessário distinguir entre a negligência (como o gestor que paga por serviços não executados) e os insucessos inevitáveis em atividades de risco inerente ou inovadoras, quando ausente dolo ou proveito próprio. A individualização funciona, assim, como antídoto contra decisões ineficazes ou injustas, evitando tanto a arbitrariedade quanto a impunidade, e permitindo que a dosimetria considere circunstâncias pessoais e contextuais — inclusive antecedentes funcionais — em nome da justiça distributiva.
Nesse ponto, as contribuições de Ronald Dworkin tornam-se particularmente úteis. O autor destacou que regras operam na lógica do “tudo ou nada”, enquanto princípios possuem peso variável, impondo ao intérprete a busca da solução mais justa diante do caso concreto. Transposto ao TCU, isso significa que a responsabilização não deve ser binária (débito integral ou absolvição), mas graduada.
Critérios como dolo, culpa, risco inerente, nexo causal, vantagem pessoal e capacidade econômica devem ser ponderados como princípios concorrentes. Em casos de dolo ou enriquecimento ilícito, pesa mais o princípio da proteção do erário; em atividades de risco inerente, sem dolo ou erro grosseiro, deve prevalecer a confiança legítima; em hipóteses condicionadas por fatores externos, impõe-se atenuação proporcional.
A lógica dworkiniana legitima, portanto, soluções intermediárias: imputação parcial do dano, aplicação de advertências ou reconhecimento de atenuantes. Dessa forma, rompe-se com a rigidez da lógica “all-or-nothing” e se inaugura um modelo de dosimetria capaz de oferecer respostas institucionais mais proporcionais e justas.
A fim de superar a atual ausência de critérios claros, propõe-se que o TCU adote metodologia estruturada de dosimetria da responsabilidade, tomando como base o § 2º do artigo 22 da Lindb, que estabelece a consideração obrigatória da natureza e gravidade da infração, dos danos dela decorrentes, das circunstâncias agravantes ou atenuantes e dos antecedentes do agente.
A partir dessa moldura legal, sugerem-se os seguintes parâmetros exemplificativos:
a) Natureza da atividade desempenhada
Corresponde ao exame da função exercida pelo agente. Algumas atividades públicas apresentam riscos intrínsecos de insucesso. Nesses casos, a margem de erro aceitável deve ser mais ampla, para evitar punições desproporcionais que desestimulem a atuação diligente.
b) Gravidade da conduta (elemento subjetivo)
Aqui se examina a existência de dolo, erro grosseiro ou culpa stricto sensu, propondo-se uma gradação das condutas: quanto maior a intensidade do dolo, maior deve ser o grau de responsabilização.
c) Resultado e danos causados
O montante do dano efetivo ou potencial à Administração deve ser considerado. Danos de maior vulto ou que afetem direitos fundamentais (como saúde, educação e segurança) justificam resposta mais severa, enquanto danos de pequena monta recomendam sanções atenuadas ou apenas pedagógicas.
d) Circunstâncias agravantes ou atenuantes
Devem ser ponderadas condições específicas que aumentem ou reduzam a censurabilidade da conduta, como: reincidência, omissão consciente diante de alertas técnicos (agravantes), ou a atuação em contexto de crise, escassez de recursos ou pressão institucional (atenuantes).
e) Antecedentes funcionais e disciplinares
Um histórico de conduta ilibada deve atenuar a sanção, enquanto a repetição de práticas irregulares deve agravá-la. A ficha funcional e a avaliação de desempenho do servidor oferecem parâmetros objetivos para essa aferição, permitindo distinguir entre falhas episódicas em trajetórias positivas e padrões reiterados de má gestão. Essa análise garante tratamento diferenciado entre gestores ocasionais e reincidentes.
f) Nexo causal e benefício pessoal
É necessário identificar a relação entre a conduta e o resultado. A sanção deve ser proporcional ao grau de contribuição do agente para o dano e se este agiu visando benefício próprio. Quanto maior a autonomia decisória e a apropriação pessoal do ilícito, mais severa deve ser a responsabilização.
g) Capacidade econômica do agente
A fixação de débitos ou multas deve observar a situação econômica do responsável, para que a sanção seja exequível e cumpra seu caráter retributivo, reeducativo e preventivo. Ressarcimentos inexequíveis não produzem efeito prático e apenas alimentam passivos impagáveis.
Em suma, no contexto da dosimetria, não basta exaltar um ideal abstrato do bem jurídico “interesse público”; é necessário demonstrar que a responsabilização produzirá efeitos justos, proporcionais e eficientes (artigo 20 da Lindb) que contribuem para o fortalecimento da governança pública.
A teoria do risco inerente não substitui as categorias clássicas da responsabilidade civil do Estado, mas atua como ressalva no âmbito das responsabilizações perante Tribunais de Contas, demais órgão administrativos de controle e ações regressivas contra agentes públicos, exigindo a demonstração de dolo ou erro grosseiro. Pode representar um avanço em relação à jurisprudência do TCU, por diferenciar com mais equidade atividades de risco de condutas ordinárias.
Esse avanço só se completa, entretanto, com a adoção de critérios objetivos de dosimetria. O princípio da igualdade impõe tratamento semelhante a casos semelhantes e o da individualização da pena — transposto ao campo administrativo sancionador — exige calibrar a responsabilização segundo a gravidade concreta da conduta, o contexto da atividade e os antecedentes do agente. Assim, a dosimetria permite que o TCU não apenas reconheça a responsabilidade, mas também dimensione sua extensão, admitindo soluções intermediárias como ressarcimento parcial, advertências ou atenuantes.
Não se trata de inovação voluntarista: o § 2º do artigo 22 da Lindb já impõe a consideração da natureza e gravidade da infração, dos danos, das circunstâncias agravantes ou atenuantes e dos antecedentes do agente. Cabe ao TCU internalizar esse mandamento, sob pena de perpetuar um controle avesso à experimentação administrativa. Como opinou Carlos Ari Sundfeld para quem “esses órgãos têm a natural tendência de serem ‘do contra’, pois isso os valoriza (…) e porque são treinados para desconfiar, querem encaixar tudo em moldes conhecidos e não têm compromisso com a ação, que cabe aos controlados, não a eles” .
A conjugação entre a teoria do risco inerente e a dosimetria, a nosso sentir, fortalece a segurança jurídica, valoriza a boa administração e evita que o temor da responsabilização excessiva paralise a ação dos gestores. O resultado esperado é uma Administração Pública mais eficiente, criativa e ousada — mas também mais responsável, justa e proporcional no tratamento de seus agentes.
Fonte: Conjur
