A regra mudou no meio do jogo: Tema 677 e riscos à segurança jurídica
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31 de julho de 2025Com a aprovação do IFRS 18, em abril de 2024, pelo International Accounting Standards Board (IASB), cuja versão em português foi recentemente colocada em audiência pública pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), as sociedades brasileiras se aproximam de uma fase adicional de adaptação mandatória aos padrões internacionais na apresentação de suas demonstrações financeiras.
Este novo pronunciamento, previsto para entrar em vigor em janeiro de 2027, ou seja, para as demonstrações contábeis relativas ao exercício iniciado a partir daquela data, tem duas vertentes relevantes. Uma delas, que foge ao escopo deste texto, finalmente dá reconhecimento contábil, por assim dizer, às chamadas medidas de desempenho gerencial, entre as quais ao já clássico Ebitda (sigla traduzida para Lajida, ou seja, o lucro antes de juros, tributos, depreciação e amortização). Outra, a mais importante, envolve uma significativa alteração na forma de apresentação da demonstração do resultado do exercício (DRE), prevista nos artigos 176, III e 187 e seguintes da Lei nº 6.404/76 (a Lei das Sociedades por Ações — LSA).
Sem querer detalhar aqui um longo pronunciamento, os exemplos de sua aplicação e as chamadas Basis for Conclusions (algo equivalente a uma exposição de motivos, mas bem mais extensa do que o nosso padrão), todos compondo um conjunto de algumas centenas de páginas, o objetivo essencial do IFRS 18 foi obter um nível maior de segmentação e detalhamento na apresentação do resultado do exercício. Em linguagem clara, apresentar de onde provém o resultado da companhia, dividido entre resultado operacional (de difícil definição, havendo o IASB encontrado em sua análise nove formas diferentes de apresentá-lo), resultado de investimento e resultado de financiamento, com os respectivos subtotais.
Assim sumariando, deixamos de lado aspectos peculiares como, por exemplo, as demonstrações contábeis de uma instituição financeira, onde as atividades dessa natureza são operacionais, tema que não comporta tratar aqui, mas que vai exigir aprofundamento pelos profissionais da área. Também não caberia analisar os efeitos do conceito, aparentemente novo, de dividir a apresentação das despesas conforme a sua natureza ou conforme a sua função, matéria bastante complexa.
Algumas companhias brasileiras já apresentam seus resultados de uma forma não muito diversa do determinado pelo IFRS 18, sem prejuízo das diferenças relevantes decorrentes da distinção entre o padrão básico do IFRS (i.e., apresentação de demonstrações financeiras consolidadas, que ocorre de forma exclusiva em certos países) e o padrão brasileiro (definição do resultado do exercício, dos dividendos passíveis de distribuição e dos tributos devidos com base exclusivamente nas demonstrações financeiras individuais). A título de exemplo, segundo o IFRS 18 e ao contrário do nosso padrão, o resultado de um investimento em controlada é operacional; o resultado de um investimento numa coligada é tratado como resultado de investimento, o que vai exigir certo esforço adaptativo.
Dito isto, a questão legal que devemos considerar é a necessidade ou não de uma nova adaptação legislativa, na linha da Lei nº 11.638, de 2007, que mal entrou em vigor, exigiu correções promulgadas pela Lei nº 11.941, de 2009. Alterações num monumento legislativo da qualidade da LSA, que já se aproxima de meio século de vigência, são delicadas. As modificações anteriores nem sempre resultaram positivas, tendo sido talvez excessivamente frequentes e pouco ou nada sistemáticas: a partir da última lei citada, pelo menos uma dúzia de textos legais introduziu alterações, boas ou más, na LSA, desafiando o conceito de que a segurança jurídica vem, antes de mais nada, de alguma estabilidade legislativa.
Assim, fica a pergunta básica: precisamos de um novo texto legal alterando as normas sobre a demonstração do resultado do exercício? Há várias linhas de argumentação que justificam a resposta negativa.
Em primeiro lugar, iniciando a análise pelas companhias abertas (e também pelas sociedades de grande porte constituídas ou não como sociedades anônimas, na forma do artigo 3º da citada Lei nº 11.638), estão elas sujeitas, na elaboração das suas demonstrações financeiras (inclusive a DRE) às normas editadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que a seu turno deve seguir, na edição dessas normas, os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários (LSA, artigo 177, §§ 3º e 5º).
Desta forma, a aprovação pela CVM da versão brasileira do IFRS 18 preparada pelo CPC, como feito na mais de meia centena de pronunciamentos, interpretações e orientações já existentes (alguns já objeto de várias revisões e de novas aprovações pela CVM), desde logo irá vincular as companhias abertas e sociedades de grande porte.
Argumentar-se-ia que a mudança na estrutura da DRE exigiria alteração legislativa, nos mesmos termos das leis nº 11.638 e 11.941, mas basta uma leitura atenta da LSA, na sua atual redação, para verificarmos que muitos aspectos relevantes decorrentes da aplicação de todas aquelas normas elaboradas pelo CPC e aprovadas pela CVM ultrapassam bastante o texto legal, fugindo inclusive à competência específica da CVM em caso de combinações de negócios, prevista no artigo 226, § 3º da mesma LSA.
São muitos os exemplos desse descompasso aparente entre a redação (alterada) da LSA e a apresentação da DRE, já atualmente existentes, sem que isto venha impedindo as companhias abertas de seguirem o padrão atual exigido pelos IFRS. Sem a pretensão de ser exaustivo, a indicação da receita bruta, prevista na LSA, é vedada pelos IFRS, sem falar na classificação exigida pela LSA de todas as receitas e despesas financeiras como operacionais, que tampouco segue o padrão dos IFRS.
E nem por isto se pode dizer que essas novas regras contrariam a LSA, já que a norma específica afasta a incidência da regra geral, e a norma posterior revoga a anterior, como é sabido. Se a norma posterior, ainda que de hierarquia inferior, decorre de uma expressa delegação legislativa, como prevista no já citado artigo 177 da LSA, há de prevalecer o mesmo princípio.
Não fora por isto, ainda é preciso lembrar, no tocante às companhias abertas, as disposições específicas do artigo 22, § 1º, incisos II e IV da Lei no. 6.385/76, que atribuem à CVM competência para estabelecer normas sobre demonstrações financeiras e sobre padrões de contabilidade aplicáveis às companhias abertas: aprovado pela CVM o pronunciamento contábil correspondente ao IFRS 18, com eventuais alterações decorrentes de sua adaptação ao sistema jurídico nacional, a nova sistemática de apresentação da DRE tornar-se-á por isto mesmo de aplicação automática e imperativa às companhias abertas e às sociedades de grande porte, sem necessidade de alteração legislativa.
Poderia talvez dizer-se que as sociedades não constituídas sob a forma de sociedade anônima e, entre estas, as que não se classificam legalmente como sociedades de grande porte, não estariam abrangidas pelos argumentos acima alinhados, tornando necessária uma nova lei, em sentido formal. O argumento, contudo, não está correto.
Como se sabe, o Decreto-Lei nº 9.295 de 1946, que criou o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), foi alterado pela Lei nº 12.249, de 2010, que lhe acresceu uma nova letra ‘f’ ao artigo 6º, dando ao citado CFC a competência de definir princípios contábeis, editando Normas Brasileiras de Contabilidade, de natureza técnica e profissional.
Esta competência normativa delegada do CFC tem sido pouco examinada, seja a partir de uma perspectiva histórica, seja do ponto de vista sistemático. É preciso lembrar que, quando da edição da Lei nº 6.404/76, o padrão moderno então adotado, que devemos ao trabalho e à competência técnica do professor Manoel Ribeiro da Cruz Filho, representou uma verdadeira revolução teórica, integralmente dependente do Congresso Nacional, então ainda não cabendo ao CFC estabelecer padrões contábeis de uso obrigatório, sempre dependentes de lei em sentido formal.
A inadequação, pela sua excessiva rigidez, dessa competência exclusiva do Congresso Nacional para matéria técnico-contábil, sempre em evolução, levou o próprio Congresso, no exame do Projeto de Lei nº 3.741, de 2000, elaborado pela CVM e pelo Ministério da Fazenda, a prever, no artigo 10-A da Lei nº 6.385, a criação de uma entidade tendo “por objeto o estudo e a divulgação de princípios e normas de contabilidade” que a CVM e o Banco Central poderiam adotar no âmbito da sua competência.
Nessa ordem de ideias, o CFC, através da Resolução CFC nº 1055, de 2005, criou o Comitê de Pronunciamentos Contábeis, com objetivo de estudar, preparar e emitir pronunciamentos contábeis. O texto desses pronunciamentos, que basicamente incorporam os IFRS (com as adaptações necessárias ao nosso ordenamento jurídico), tem resultado na aprovação pelo CFC, na sua competência reguladora aqui examinada, das correspondentes Normas Brasileiras de Contabilidade (as NBC-TG, baseadas nos ditos pronunciamentos do CPC), inserindo, por assim dizer, os pronunciamentos do CPC no sistema jurídico nacional (antes mesmo de serem referendados pela CVM).
Com essa nova organização normativa, evita-se o “congelamento” de padrões contábeis no texto legal, incompatível com o avanço do direito, societário e tributário, e da própria ciência contábil. Assim, em síntese, o CPC prepara os pronunciamentos, que o CFC referenda sob a forma de NBC-TG e a CVM e outros reguladores, como o Banco Central, Susep, ANS, Anvisa etc., tornam imperativamente aplicáveis.
Melhor exemplo não pode haver, por sinal, da conveniência do novo modelo legal de regulação das normas contábeis do que o texto do vigente Código Civil: elaborado no final da década de 1960 e dado a público em 1971, submete as sociedades empresárias não constituídas como sociedades anônimas a um regime de apresentação de resultados que está, pelo menos, 60 anos atrasado, e que foi objeto de críticas severas da doutrina contábil, a começar pelo professor Eliseu Martins, ex-diretor da FEA, da CVM e do Banco Central. Como não convém, repita-se, levar a matéria técnico-contábil a exame pelo Congresso Nacional a cada momento, como o dinamismo da vida empresarial termina exigindo, essa delegação legislativa tem se mostrado absolutamente adequada, e talvez devesse servir como exemplo na eventual reforma do Código Civil.
Assim, a partir do momento em que o CFC vier editar uma NBC-TC sancionando o pronunciamento do CPC correspondente ao IFRS 18, quanto à nova forma de elaboração da DRE, o novo padrão tornar-se-á desde logo obrigatório para todas as sociedades (anônimas ou não, companhias abertas ou não) que não se achem submetidas aos padrões contábeis simplificados que o CFC também estabelece, se diversos da regra geral.
Em outras palavras, também para as sociedades empresárias em geral, tornar-se-á nesse momento obrigatória a nova sistemática de apresentação da DRE prevista no IFRS 18, com as adaptações necessárias à sua integração ao sistema jurídico brasileiro, sempre independentemente de novo texto legal, em sentido estrito.
Deste modo, por qualquer dessas linhas de argumentação, autônomas entre si, torna-se desnecessária a alteração da LSA para que a aplicação da versão brasileira do IFRS 18 se torne imperativa no Brasil em caráter genérico, a partir de 2027.
Fonte: Conjur
