Concessões e gestão associada dos serviços públicos de resíduos sólidos urbanos por convênio de cooperação
26 de junho de 2025A decisão do STF sobre desapropriação ambiental e seus impactos no agronegócio
26 de junho de 2025Após oito anos do julgamento sobre a constitucionalidade da lei que efetuou reforma sobre o sistema de gestão coletiva (ADI 5.062 em conjunto a ADI 5.065), e após dois anos do julgamento sobre a (in)constitucionalidade de lei catarinense que legislava sobre isenção em execução pública (ADI 6.151), o Supremo Tribunal Federal revelou que exercerá jurisdição constitucional sobre direito de autor mais uma vez, ao atribuir repercussão geral em sede do ARE 1.542.420.
A petição de recurso extraordinário interposta por consagrados recorrentes (requerentes e apelantes, por sua vez, na origem e em segundo grau de jurisdição), que tem como parte contrária editora de obras musicais (publisher), esquadrinha dois pedidos para além da admissibilidade. Desafiando acórdão do TJ-SP, um deles trata do reconhecimento de “aplicação do cânone da interpretação restritiva” e de declaração da “inexistência de direitos autorais patrimoniais da recorrida sobre a exploração econômica das obras dos recorrentes por intermédio de tecnologias inexistentes à época das contratações” (p. 21). O outro trata do reconhecimento da “possibilidade de desfazimento dos vínculos contratuais dada a vedação a obrigações perpétuas em matéria de direitos autorais” (p. 21-22). Inadmitido o RE pela Presidência da Seção de Direito Privado do TJ-SP, a admissibilidade do ARE teve bom destino.
Os fundamentos de tal admissibilidade, exarados pelo relator ministro Dias Toffoli e seguido por todos os pares, com exceção do ministro Edson Fachin, estimam com destaque “[…] o caráter constitucional e a relevância jurídica da questão em discussão nestes autos” (p. 13), salientando ainda que “[…] a matéria constitucional debatida nos autos é relevante do ponto de social e econômico, ultrapassando o interesse subjetivo das partes” (p. 14).
Por mais que o título seja sugestivo, este texto não visa a especular grosseiramente sobre o futuro de um caso nem “cantar pedra” sobre ele. Apenas é apontada curiosa dúvida a partir de um dado objetivo: a questão em discussão nos autos também passa pelo debate sobre qualificação — a tipologia, a (a)tipicidade, a causalidade — contratual (e isto facilmente se depreende a partir da leitura da sentença e do acórdão).
Autores estrangeiros, em publicações doutrinárias difundidas nos últimos anos, iluminam a matéria de direito contratual com perfis abrangentes de direito constitucional, a exemplo do catedrático valenciano Francisco de Paula Blasco Gascó que, situado no ordenamento espanhol, sustenta o seguinte:
“Atualmente, a configuração do contrato deve necessariamente partir das normas constitucionais, que incidem direta ou indiretamente na conformação do conceito de contrato, superando uma concepção liberal do século XIX. Essa configuração se manifesta na mudança progressiva da ideia de liberdade formal […] em prol de uma concepção social do contrato, na qual, no âmbito constitucional de um sistema econômico de mercado […], primam outros valores igualmente constitucionais, como os da igualdade, dignidade das pessoas e proteção do contratante vulnerável (consumidor ou usuário de bens e serviços essenciais). […]. A livre iniciativa [libertad de empresa], que decorre necessariamente do reconhecimento de uma economia de mercado […], também encontra limites constitucionais que se manifestam, com maior ou menor intensidade, no âmbito do contrato […]. Assim, não há dúvida de que os direitos fundamentais conformam a disciplina constitucional do contrato, ao poderem configurar o limite da ordem pública e manifestar assim a sua presença e eficácia nas relações jurídico-privadas (a chamada Drittwirkung der Grundrechte). Desta forma, a disciplina constitucional do contrato impede a celebração de contratos contrários à dignidade da pessoa […] e ao livre desenvolvimento da sua personalidade […]. […]. Obviamente, uma pessoa pode contratar quem quiser, mas não pode contratar ou recusar-se a contratar após formular a oferta discriminando arbitrariamente, nem pode estabelecer um conteúdo contratual que seja vexatório ou desumano”
Também o perfil manifestado pelo professor de Bogotá Carlos Julio Giraldo Bustamante é de se apreciar, haja vista as pluralidades e diversidades jurídicas que as pesquisadoras e pesquisadores colombianos imprimem ao ordenamento que lhes é materno:
“[…] a matéria contratual vê-se irradiada, em termos de interpretação e aplicação, pelos princípios e valores de teor constitucional, abrangendo de forma muito especial tanto o conteúdo contratual como as partes contratantes, questionando assim a distinção típica entre direito privado e direito público; significa, portanto, que a Constituição, como norma das normas, é fonte de direito e, bem assim, de direito privado contratual. Este efeito normativo da Constituição não implica o desaparecimento das categorias e das regras do direito privado, mas sim um novo sentido vitalizador que é atribuído a estes princípios do direito privado, através dos princípios constitucionais. A liberdade contratual, ou autonomia da vontade em matéria contratual, está agora ao serviço do livre desenvolvimento da personalidade; ou seja, dos postulados constitucionais que são atribuídos à pessoa a partir desse princípio. Esta é a consequência da penetração na ordem jurídica dos valores constitucionais que, em matéria contratual, gravitam em torno da dignidade humana, da liberdade pessoal, da igualdade e da solidariedade. Isto tudo conduz à problemática que tem sido chamada de eficácia horizontal dos direitos fundamentais. […]. O contrato deixou de ser ato de vontade [essencialmente] privado e isolado, como a doutrina tradicionalmente apresenta. Disto se observa que o contrato não inclui apenas o que foi acordado pelas partes, mas também todo um sistema de princípios e valores constitucionais que, associados a vontade dos indivíduos interessados nele, devem orientar seu sentido e determinar as obrigações que derivam da relação negocial, bem como a modalidade de sua execução” .
Propriamente sobre qualificação contratual na doutrina brasileira, que também conta com o artesanal labor lapidado em formidáveis teses por Giovana Cunha Comiran, Angelo Prata de Carvalho, bem como em artigo por Rodrigo Xavier Leonardo, quem se destaca a partir da escola/vertente civil-constitucional é o professor carioca Carlos Nelson Konder, com marcante tese no escopo:
“[…] a constatação da necessária sistematicidade do direito que conduz o intérprete à consideração do ordenamento como um todo, não aplicando as normas de forma isolada, se projeta no âmbito contratual na exigência de que a normativa para cada contrato seja identificada sem a miopia de restringi-lo necessariamente a um único modelo típico, mas tendo em vista os diversos tipos disponíveis, as relações horizontais traçadas entre eles, e especialmente sua relação com os preceitos gerais que regem, com amplidão, os contratos, os negócios, as situações jurídicas subjetivas patrimoniais. Toda a principiologia do sistema, em especial aquela dotada de superioridade hierárquica por sua alçada constitucional, deve participar do processo de qualificação do contrato, de determinação dos efeitos jurídicos que lhe são aplicáveis”.
A recomendação do ministro Toffoli para que o Supremo “se pronuncie, na sistemática da repercussão geral, sobre o direito de fiscalização da exploração econômica das obras intelectuais inseridas em plataformas de streaming, com fundamento nos dispositivos constitucionais que compõem o sistema de proteção da propriedade intelectual” (p. 16) pressupõe considerações, por direito público e privado, de qualificação contratual? A dúvida está no ar. Quem sabe a possível atuação de futuros amici curiae auxilie no esclarecimento.
Fonte: Conjur
