Necessidade de combate à litigância abusiva e efeitos práticos da Recomendação CNJ 159
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5 de dezembro de 2024Já há alguns anos, a criação de exigências legais e de mercado impuseram uma significativa mudança de cultura no campo criminal fazendo crescer consideravelmente a atividade consultiva nos escritórios de advocacia, em especial àquelas relacionadas ao compliance e à governança corporativa.
O consultivo tem se tornado até mais importante que o contencioso, na opinião de alguns advogados. Com centenas de infrações criminais, é importante que empresas estejam constantemente alertas sobre os riscos que correm, pelas áreas de toque do Direito Penal com outras, haja visto o caráter transversal do Direito Penal.
A crescente regulamentação e a necessidade de as empresas agirem de acordo com padrões éticos e legais têm impulsionado a demanda por advogados e departamentos jurídicos de compliance, que garantem que as organizações estejam em conformidade com as leis e regulamentos, reduzindo o risco de sanções e promovendo uma cultura de integridade. O mercado se tornou bastante profissional e, por isso, pede que as empresas demonstrem que cumprem a lei, especialmente aquelas com atuação internacional.
Determinados setores econômicos precisam implementar programas de compliance que abram canais de comunicação de atividades suspeitas. Mas o criminalista Pierpaolo Bottini observa que esse pilar, embora seja uma realidade no meio empresarial, não pode engessar a atividade das companhias. “Por insegurança jurídica ou por falta de clareza das normas, os profissionais que atuam nesses setores acabam adotando cuidados em excesso em seus sistemas de integridade, o que termina por engessar a atividade das companhias”, diz.
“Esse é um fenômeno que nós chamamos de overcompliance. E é justamente esta a problemática que nós precisamos discutir: até que ponto esse excesso de cautela no âmbito do combate à lavagem de dinheiro está sendo contraproducente, levando as empresas a gastar muito dinheiro com o compliance, apesar da pouca efetividade?”, questiona.
Os acordos de leniência são outra onda que vem sendo surfada pela advocacia criminal empresarial. Espécie de delação premiada empresarial, os acordos surgem como possibilidade de resolução consensual quando a empresa se vê envolvida em atos ilícitos administrativos ou de corrupção, admite sua culpa e oferece informações úteis e provas para as autoridades como colaboração, em troca da extinção ou da redução das penas.
A Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) prevê as regras para a celebração do acordo de leniência, mas outras normas e dispositivos também dão base jurídica.
Caso as negociações sejam feitas em conjunto pelos órgãos de controle, tais como a Controladoria-Geral da União, a Advocacia-Geral da União, o Cade, o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União (este atua apenas como fiscal), os acordos devem ser lavrados em instrumentos independentes. Assim, a colaboradora poderá obter a extensão dos efeitos do acordo de leniência a mais de uma esfera sancionatória.
Os maiores acordos de leniência já feitos se deram no Ministério Público Federal com empreiteiras envolvidas na “lava jato” e estão sendo hoje questionados perante o Supremo Tribunal Federal. Em julho de 2024, o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, dentro da ADPF 1.051, que discute a validade dos acordos, abriu prazo de mais 30 dias para a conclusão da conciliação entre entes públicos e as empresas. O estranho é que o ator central desses acordos, o MPF, não quis subscrevê-lo.
A validade dos acordos de leniência firmados pelas empreiteiras foi questionada em março de 2023 pelo Psol, pelo PCdoB e pelo Solidariedade. Na ADPF 1.051 os partidos solicitam que o STF avalie a possibilidade de revisar os acordos com a alegação de que a equipe da “lava jato” usou as negociações para chantagear os acusados. Sustentam que os acordos foram feitos em um ambiente jurídico de anormalidade, com excessos acusatórios e uso indiscriminado de medidas inconstitucionais pelo MPF e juízes. Nesse estado de coação, não houve voluntariedade, argumentam. Alegam, ainda, que houve erros matemáticos na imposição de multas e na qualificação de fatos ilícitos quando não eram ilícitos. Também questionam a competência do MPF para tocar os acordos, que deveriam ter ficado a cargo da CGU.
Dados da AGU e da CGU mostram que, com a “lava jato” e suas investigações-filhote, foram combinados pagamentos de mais de R$ 17,6 bilhões – o equivalente a 96% dos acordos firmados de 2017 a 2022. Entre 2014 e 2022, a PGR firmou 49 leniências, sendo que 34 delas se referem à “lava jato” ou a investigações correlatas.
A AGU já apresentou uma proposta final, oferecida em conjunto com a Controladoria-Geral da União, que foi aceita pelas empresas, mas ainda faltam negociações sobre os prazos de pagamento das dívidas restantes previstas nos acordos de leniência. Em fevereiro de 2024, o TCU aprovou uma instrução normativa que garante sua participação na definição dos cálculos dos acordos firmados com a CGU. O texto prevê que o TCU informe à CGU se os valores atendem aos seus critérios para apuração do dano e se são suficientes para o ressarcimento.
Igor Tamasauskas, advogado especialista em acordos de leniência e sócio do Bottini & Tamasauskas, afirma que a decisão do ministro André Mendonça tenta trazer racionalidade à negociação entre empresas e autoridades. Sobre o acordo do MPF com a J&F, feito em 2017 e do qual participou, Tamasauskas afirma que, à época, a demora nas negociações poderia afetar a empresa permanentemente do ponto de vista de liquidez. “Houve um descasamento entre os acordos de colaboração e de leniência, cujo efeito reputacional – e também econômico – seria catastrófico. E agora faz sentido que seja revisitado, porque está fora da realidade aquele valor”, disse Tamasauskas à revista eletrônica Consultor Jurídico. A empresa tenta diminuir o valor da multa a ser paga, que ultrapassa os R$ 10 bilhões.
Para o advogado, a mesma movimentação que ocorreu em torno das delações premiadas, cujo pente fino da Justiça acabou por anular uma série de ações e condenações, deve também acontecer com os acordos de leniência firmados por Curitiba e suas sucursais. Mas ele não acha que dá para fazer um processo no atacado, pegar todos os acordos e dizer que todos os acordos foram maculados. “A minha compreensão é que esse tipo de erro tem que ser depurado pontualmente em cada um dos casos para saber se ali houve abuso, se ali houve erro, se ali houve dolo, se ali houve coação, isso tem que ser tudo depurado mesmo e isso se faz caso a caso.”
O próprio ministro da Controladoria-Geral da União, Vinicius Marques de Carvalho, reconhece que esse instrumento precisa ser aprimorado. Cita que os acordos na CGU exigem que a empresa pague um terço do valor da multa. Exigem também que a empresa repare o dano. “Isso faz com que o acordo de leniência na CGU seja muito menos atrativo do que os acordos de leniência no Cade na área de defesa da concorrência. Então, a gente precisa repensar esses acordos, avaliar se tem como fazermos alguma alteração para torná-los também mais atrativos da perspectiva de que a empresa possa trazer novos casos ao conhecimento da autoridade”, disse Carvalho, que presidiu o Cade de 2012 a 2016.
Nem só leniências milionárias podem ser assinadas. Em dezembro de 2023, CGU e AGU assinaram acordo de leniência pela primeira vez com empresa de pequeno porte. No valor total de R$ 196 mil o acordo foi firmado com uma empresa do ramo de máquinas e equipamentos agrícolas e tem como base os dispositivos da Lei Anticorrupção. Além das implicações financeiras, o acordo estabelece que a empresa implementará medidas de integridade, uma ação para evitar recorrências de práticas ilícitas contra a Administração Pública. Segundo o Secretário de Integridade Privada, Marcelo Pontes Vianna, “este caso exemplifica que os acordos de leniência podem ser uma solução tanto para grandes esquemas de corrupção quanto para a resolução de situações de inconformidades pontuais.”
O primeiro acordo de leniência no Brasil de que se tem notícia foi assinado em 2003 no âmbito de um processo no Cade que investigou cartel em licitações de serviço de vigilância privada no Rio Grande do Sul. Em 20 anos, o Cade celebrou 109 acordos de leniência. Em média, são cinco casos por ano.
Fonte: Conjur