O instituto da alienação fiduciária é um instrumento jurídico consolidado e amplamente utilizado pelas instituições financeiras, desempenhando um papel crucial na garantia de operações de crédito, bem como no financiamento de bens móveis e imóveis. A formalização desse negócio jurídico se dá por meio de contrato escrito, o qual estabelece a transferência fiduciária da propriedade do bem ao credor, com a previsão de que, havendo a quitação da dívida, a propriedade será transferida de volta ao devedor.
O contrato que envolve bens imóveis tem gerado interpretações conflitantes. O artigo 38 da Lei nº 9.514/97 “dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Ele vem sendo alterado por diversas vezes e, em 2004, passou a admitir que todos os contratos de alienação fiduciária em garantia pudessem ser celebrados por instrumento particular.
Meses depois, a redação desse dispositivo foi novamente alterada e passou a dispor que apenas os atos e contratos referidos nessa lei (ou seja, no âmbito do SFI) ou resultantes da sua aplicação poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a seguir o provimento 172 de 5 de junho de 2024 dispondo que:
“A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da Lei n. 9.514/1997), incluindo as cooperativas de crédito.”.
De outro lado, o CNJ, por meio do Provimento nº 175, de 15 de julho de 2024, ampliou o rol de entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) legitimadas a celebrar contratos de alienação fiduciária em garantia por instrumento particular, nele incluindo as cooperativas de crédito, as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários ou do Banco Central do Brasil relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI, bem como e considerou regulares aqueles contratos lavrados antes de 11 de junho de 2024 (data da entrada em vigor do Provimento CN nº 172).
A partir dos dois provimentos do CNJ acima referidos, duas interpretações são possíveis.
Ricardo Campos afirma que o Provimento CNJ 172/2024 assegura maior proteção aos consumidores, pois os agentes do SFI e SFH “atuam de forma imparcial, pois têm exclusivo objetivo de fomentar o crédito imobiliário, ou seja, não têm interesse próprio no negócio jurídico garantido por alienação fiduciária, como outros agentes, a exemplo de construtoras, loteadoras e imobiliárias”, e que a celebração dos contratos por meio de escritura pública contaria com a assessoria de “terceiro imparcial na análise das escrituras de alienação fiduciária, tendo — por dever legal — obrigação de coibir abuso do poder econômico de uma das partes”.
De outro lado, seria possível sustentar que o artigo 4º, VI, da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) veda a criação de “demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros”. Por ser essa lei posterior à Lei nº 9.514/97, ela vedaria a exigência de escritura pública para a celebração dos contratos em tela, pois esta aumentaria os custos e o tempo na concessão de financiamentos imobiliários.
Ocorre que a necessidade de escritura pública para a celebração de negócios imobiliários está estabelecida como regra geral no artigo 108 do Código Civil/2002. A redação atual do artigo 38 da Lei nº 9.514/97 estabelece exceções à regra, permitindo o uso de instrumento particular nas hipóteses que especifica, e as exceções devem ser interpretadas restritivamente de maneira que não se pode afirmar que esse dispositivo legal estaria criando “demanda artificial” dos serviços a serem prestados pelos cartórios de notas.
O Provimento CNJ 172/2024 apenas explicitou o disposto na lei, sem ampliar a competência dos tabeliães de notas, ao passo que o Provimento nº 175, de 15 de julho de 2024, ampliou o rol de entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) legitimadas a celebrar esses contratos por instrumento particular, estabelecendo novas exceções.
Fonte: Conjur