No último dia 16 de setembro, a comissão de juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Lei do Processo Estrutural (CJPRESTR) apresentou relatório preliminar ao Senado com a versão inicial para a regulamentação do tema no Brasil. Antes mesmo de ser objeto de anteprojeto de lei, os processos estruturais, também chamados de estruturantes, vêm indicando direta relação com modos diferenciados de resolução de casos e conflitos jurídicos de alta complexidade, em especial na pauta ambiental, climática e também da agenda ESG no setor público e privado.
Os processos estruturais têm sua origem nos Estados Unidos, quando do caso Brown vs. Board of Education of Topeka (1954), em que se decidiu acerca da segregação racial nas escolas norte-americanas. A disseminação do tema no país se deve em grande parte a Marco Félix Jobim e Sérgio Cruz Arenhart, cujas publicações foram pioneiras no assunto. Por sua relevância, a temática tem avançado em diferentes áreas do Direito no Brasil e no mundo.
Os processos estruturais designam um modelo diferenciado de processo judicial que deve promover direitos e garantias fundamentais, previstas na Constituição de 1988, pela via Poder Judiciário ou de autoridade pública competente, normalmente envolvendo políticas públicas ou atos e procedimentos de interesse público e coletivo.
Dentro da lógica estrutural, costumam ser abordados casos jurídicos extremamente complexos e de conflitos de direitos que envolvam uma estrutura de causas e efeitos com múltiplos fatores, riscos, impactos, deveres e obrigações, normalmente exigindo o proferimento de decisões estruturantes, calcadas em medidas de resolução prospectiva e continuada.
Na maioria dos casos, o diagnóstico e a resolução seriam dependentes de diferentes órgãos e políticas públicas, podendo exigir uma atuação política que abarque a atuação integrada dos três níveis federativos. Inclusive, é relevante a atuação de atores privados e da sociedade civil organizada, transcendendo, portanto, o paradigma dual e tradicional das regras gerais do direito processual civil brasileiro.
Como o intuito é enfrentar problemas de grande porte, e a rigor já consolidados no tempo, faz-se mister observar os diversos pontos-de-vista regulatórios, bem como as mais diferentes visões e necessidades coletivas, a fim de que a abordagem do assunto seja verdadeiramente holística. É preciso considerar os aspectos estratégicos e macroeconômicos e sociais mais amplos, não se limitando a um único enfoque ou especialidade, uma vez que a “visão estreita” ou “visão em túnel” é um óbice às questões estruturais.
O tema vem avançando no país, e a prova disso é que o STF publicou a Resolução nº 790/2022, subscrita pela ministra Rosa Weber, então presidente da Corte, criando o Centro de Soluções Alternativas de Litígios com foco em litígios de natureza estrutural. Houve também várias discussões sobre a temática por parte de órgãos de controle, especialmente os Ministérios Públicos estaduais e federal.
Segundo a doutrina especializada [5], os processos estruturais são identificados, via de regra, pela presença de alguns principais predicados específicos, como:
a) a existência de um problema estrutural: chamado de “estado de desconformidade ou ilegalidade estrutural”, o problema estrutural tem origem ou ligação a uma condição permanente de violações ou irregularidades que atingem direitos e garantias fundamentais, como no caso de descumprimento de políticas públicas ou de conflitos jurídicos complexos em matéria de direitos coletivos, sociais, ambientais, de saúde e segurança pública etc.;
b) a exigência de um processo estruturante: o evento ou problema estrutural não terá resolução apropriada diante de atuação individual ou bilateral entre as partes e o Judiciário em um litígio processual civil dual, implicando a atuação de outros atores públicos e/ou privados para a restauração do “estado de coisas em conformidade ou de regularidade” dos direitos violados ou da política pública em análise, exigindo assim, por exemplo, uma concertação definidora de meios e fins a ser atingidos e estipulados entre autoridades, partes interessadas e demais afetados na matéria ou no ato/procedimento de interesse público demandado; e
c) a necessidade de uma decisão ou resolução estrutural: o caso ligado a um problema estrutural implicará a necessidade de tomadas de decisões estruturantes pautadas por fixação de objetivos, metas e medidas com prazos, controles e ações em relação continuada entre todos os atores públicos e privados envolvidos.
Como visto, a lógica estrutural transcende o modelo tradicional do sistema tradicional de processo judicial, cujos predicados são a definição objetiva de partes e pedidos, a ordenação de prazos e a tomada de decisão pautada, em maioria, na resolução de fatos ocorridos no passado. O processo estrutural, de modo distinto, terá suas lentes fixadas na resolução em grande parte de matiz prospectiva, para resolver fatos já ocorridos e, também, para prevenir e/ou mitigar para o presente e futuro a não ocorrência de mais irregularidades ou violações.
Em relação à proposta do referido anteprojeto de lei, a minuta do artigo 1º o define como “aquele que tem como objeto um conflito coletivo de significativa abrangência social, cuja resolução adequada depende de providências prospectivas, graduais e duradouras”. O §1º do dispositivo prevê que o processo estrutural será regulado pelas disposições da Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) e, supletiva e subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.
Além disso, o §2º cita que “as providências estruturais também podem ser definidas em Termo de Ajustamento de Conduta, nos termos do § 6º do artigo 5º da Lei nº 7.347/1985, aplicando-se, no que couber, o disposto na lei”. Isso possibilitaria, em princípio, a sua propositura de forma extrajudicial, embora seja necessário cautela com o grande número de legitimados.
Entre as normas fundamentais, o artigo 2º da proposta sugere diretrizes para a segura aplicação deste instrumento, como: “I – prevenção e resolução consensual e integral dos litígios estruturais, judicial ou extrajudicialmente, II – respeito às capacidades institucionais dos poderes e dos agentes tomadores de decisão”, “VI – consideração dos regramentos e dos impactos orçamentários e financeiros decorrentes das medidas estruturais”; e “IX – ênfase em medidas prospectivas, mediante elaboração de planos com objeto, metas, indicadores e cronogramas bem definidos, com implementação em prazo razoável”. Além de diretivas dessa modalidade de processo, chama a atenção a preocupação com os custos envolvidos, o que, inclusive, já tem sido objeto de especial preocupação da doutrina.
Em relação ao caráter participativo, prospectivo e resolutivo do processo estrutural, o §4º do artigo 4º do anteprojeto dispõe que, “se o caráter estrutural do litígio não for consensual, o juiz determinará a realização de audiência para oitiva das partes e dos demais interessados, podendo facultar a participação de especialistas, representantes dos grupos sociais impactados e de outros sujeitos que possam contribuir para o esclarecimento da questão”.
Trata-se de medida de especial pertinência em casos socioambientais e climáticos, em que a multidisciplinariedade é decisiva na concepção, desenvolvimento e execução de medidas estruturais de recomposição de danos ou da restauração do “estado de coisas regular ou de conformidade” em matéria ambiental.
No sentido de prover o processo estrutural de mecanismos efetivos, o anteprojeto de lei propõe o chamado “Plano de Atuação Estrutural”, a ser homologado em audiência específica, o qual conterá: “I – diagnóstico do litígio estrutural, II – metas específicas e aferíveis, III – Indicadores quantitativos e qualitativos, IV – cronograma de implementação de medidas, V – definição de responsáveis, VI – metodologia para supervisão, VII – prazos e parâmetros para encerramento do processo e VIII – observância das disposições legais e constitucionais sobre a alocação de recursos financeiros que forem exigidos, sujeitos a normas de orçamento público”. A preocupação com a efetividade é evidente, haja vista o detalhamento procedimental apontado.
Os processos estruturais, por sua natureza e importantes e amplos objetivos, remontam à discussão da atuação jurisdicional no controle de atos de competência de outros Poderes constituídos, em grande parte ligados ao Poder Executivo. Por essa razão, o instrumento deve ser lido e aplicado pelo viés dialógico, sempre com vistas a consagração da proteção e garantia dos direitos fundamentais, individuais e coletivos.
Existem casos no Brasil de Ações Civis Públicas (ACPs) e de ações constitucionais, estas em tramitação no STF, que não só possuem relações diretas e indiretas com a lógica dos processos estruturais, como também tocam em problemas e questões de caráter macroestrutural. São ações judiciais que envolvem matéria ambiental, climática e de responsabilidades de entidades públicas e empresas privadas por deveres ligados aos propósitos da agenda de responsabilidade e deveres ESG (Environmental, Social and Governance).
Um dos casos de ACP Estrutural mais citados pela doutrina é ACP do Carvão. Trata-se de um processo judicial proposto pelo MPF em 1993 com o objetivo de exigir a recuperação dos danos ambientais causados pela exploração de carvão mineral na região Sul do Estado de Santa Catarina.
A referida ação foi proposta contra empresas carboníferas, seus sócios e dirigentes e a União, que é a proprietária dos minérios. A sentença prolatada, que é tida como estruturante, determinou aos demandados a apresentação e execução um projeto de recuperação da região da Bacia Carbonífera envolvida, com metas e métodos para tanto. Criou-se página na internet, a fim de dar publicidade ao assunto, com a divulgação periódica de relatórios com o desempenho e os resultados das medidas de recuperação.
Dois outros exemplos advêm do STF, nas Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 708 (Fundo Clima) e 760 (Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia), em que foram proferidas decisões com caráter estrutural, em especial pelos eventos/problemas de natureza estrutural ligados às respectivas ações, bem como pelo conteúdo das medidas estruturantes que foram por elas determinadas ao Poder Executivo federal, quais sejam:
a) na ADPF 708, a determinação ao governo federal que adote as providências necessárias ao funcionamento do Fundo Clima, com a consequente destinação de recursos às políticas de mitigação às mudanças climáticas; e
b) na ADPF 760, para que União tome providências, no âmbito do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e de outros programas, para reduzir o desmatamento na Amazônia Legal para a taxa de 3.925 km anuais até 2027 e a zero até 2030.
Em matéria climática e de deveres ESG, há a ACP promovida pela ONG Conectas Direitos Humanos em face do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e o BNDESPar, subsidiária privada responsável por gerir as participações acionárias que o banco detém em diversas empresas. É a primeira ação civil climática contra um banco nacional de desenvolvimento no mundo.
Dentre os pedidos, está a criação de regras e mecanismos que vinculem os investimentos e desinvestimentos do BNDESPar à redução das emissões de gases do efeito estufa por parte das empresas financiadas, com base em padrões e frameworks consagrados.
Cabe ainda destacar a ACP estrutural movida pelo MPF em razão dos eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul, ocorridos em maio deste ano. A ação objetiva que União, Estado e Municípios da região atingida adotem medidas preventivas de curto, médio e longo prazos, com destaque para o pedido de elaboração de planos de ação contemplando — mediante providências a serem implementadas sucessivas e/ou simultâneas — a reconstrução das áreas atingidas com observância às necessidades de adaptação e resiliência climática da região do Vale do Taquari (RS).
Com um cenário de extremos climáticos e de danos socioambientais complexos cada vez maiores no Brasil, o instrumento de resolução judicial e extrajudicial encontrado no processo estrutural, por suas características, finalidades, mecanismos e conceitos, apresenta um relevante papel a ser desenvolvido e aplicado em matéria ambiental, climática e de deveres e responsabilidades da agenda ESG, nos setores público e privado.
Por tratar problemas multifacetados de forma mais abrangente, essa nova sistemática processual, que ainda se encontra em sua fase de formatação no país, tem tudo para poder agregar novos caminhos à efetiva promoção do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e do desenvolvimento nacional sustentável.
Fonte: Conjur