De acordo com informações divulgadas pelo Ministério da Economia, o número de novos fornecedores credenciados para participar de compras públicas atingiu recorde em 2022. Essa tendência de crescimento, que vem se repetindo nos anos posteriores, é explicada pelo baixo risco de inadimplência do Estado e pela simplificação dos processos concorrenciais, em decorrência, inclusive, da edição da Nova Lei de Licitações e Contratos, a Lei nº 14.133/2021. No campo prático, entretanto, a celebração desses negócios depende do preenchimento de uma série de requisitos pelas empresas licitantes, alguns dos quais ainda causam certa confusão no meio corporativo.
Até mesmo no âmbito jurídico, os debates sobre este tema revelam posicionamentos diversos e, por vezes, conflitantes. Apesar do esforço do legislador para fortalecer a governança das contratações, os atores envolvidos nos processos licitatórios ainda se deparam com muitas dúvidas e questionamentos, muitos dos quais serão invariavelmente levados à apreciação do Poder Judiciário. Destaca-se, entre as principais controvérsias, aquela que diz respeito à (i)licitude da exigência de compatibilidade entre o objeto social registrado no contrato social da empresa concorrente e o objeto do edital da licitação, requisito que não consta expressamente no texto legal.
Neste contexto, o Capítulo VI da Lei nº 14.133/2021, que aborda os requisitos para a habilitação jurídica das empresas licitantes, adquire particular relevância. Ao longo dos artigos nele contidos, está prevista uma série de premissas que visam, entre outros, à economia de recurso públicos, à efetividade e impessoalidade das contratações, enfim, à celebração daquele negócio que mais se adequar ao interesse coletivo. Daí exsurgir a imprescindível comprovação da qualificação técnico-operacional da empresa licitante para a execução do objeto contratual, sem a qual nenhum dos objetivos acima seria atingido.
A questão que se impõe, portanto, está em identificar eventual área de intersecção entre as definições de compatibilidade de objetos e de qualificação técnico-operacional para a execução do objeto do certame. Obviamente, não se pode inferir que as empresas com objeto social compatível com o edital necessariamente estejam qualificadas técnica e operacionalmente para serem habilitadas. Deve-se indagar, todavia, se, uma vez comprovada a sua qualificação, a licitante poderá ser eliminada do processo concorrencial em razão de uma suposta não correspondência entre os objetos social e editalício.
Em virtude da omissão legal em relação a esta controvérsia em específico, restará ao Judiciário, sempre que provocado, analisar caso a caso, sopesando as circunstâncias fáticas e evidências constantes dos autos, a fim de autorizar, ou não, a habilitação de um dado concorrente. Neste caminho, precisará contar com a colaboração da própria administração pública contratante, a quem cabe ser o mais específica e clara possível, dentro dos limites da legalidade e do formalismo, no momento da elaboração do edital, especialmente de suas especificações e dos requisitos exigidos das empresas licitantes.
Dito isto, sem perder de vista o objetivo maior da lei, que está na obtenção da melhor proposta para a administração pública, além, é claro, da necessária vinculação ao instrumento convocatório, deve-se evitar o formalismo excessivo nas licitações. E isto não apenas em relação à preferível correspondência de objetos, mas também no que se refere a quaisquer outras exigências editalícias que possam obstar a participação de empresas de forma isonômica, ou ainda, contratações dotadas de caráter impessoal. Não se pode exigir, portanto, que o serviço objeto da licitação esteja expressamente descrito nos contratos sociais das empresas participantes do certame, bastando que sejam com ele compatíveis.
Até mesmo porque, conforme pertinentemente pontuado pelo Ministro-Substituto Augusto Sherman Cavalcanti, relator do Acórdão nº 642/2014, proferido nos autos da Representação nº 015.048/2013-6, “o objeto social (…) devidamente registrado comprova não apenas o exercício da atividade empresarial requerida na licitação, mas também que a empresa o faz de forma regular”. A exigência de compatibilidade, portanto, prestigia o princípio da legalidade, do qual a administração pública jamais deve se afastar, não bastando que a empresa licitante detenha a capacidade comercial de fato, mas que também esteja em conformidade com a lei.
Em suma, à norma editalícia está autorizado exigir a compatibilidade de objetos, dado que é o mínimo que se espera das empresas licitantes com qualificação técnico-operacional para a execução do objeto do certame de forma legal. Nisto, entretanto, há relevante diferença se comparado a uma pretensa exigência de identidade de objetos, requisito cujos efeitos práticos estariam mais aptos a embaraçar do que otimizar tanto o processo concorrencial em si, quanto a execução do serviço contratado. Descabido, portanto, o formalismo excessivo nas licitações, especialmente quando em detrimento da isonomia e da efetividade dos contratos públicos.
Fonte: Conjur