Com a promulgação da reforma tributária, por meio da Emenda Constitucional nº 132/2023, foi instituído o Imposto Seletivo (IS), de competência da União, mediante a inclusão do inciso VIII no artigo 153, da Constituição, o qual deverá incidir sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente“.
O Imposto Seletivo, por incidir sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e/ou ao meio ambiente, possui desejada função extrafiscal, conforme apontado pelo próprio Parecer da Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça do Senado, que aprovou a PEC 45/2019, de maneira que a sua incidência não possui uma função de apenas financiar as atividades da União, mas de incentivar certos comportamentos sociais. Ou seja, busca-se desestimular o consumo e a aquisição de produtos que estejam em desalinho com os ideais ecológicos e saudáveis, como é o caso do tabaco, bebidas alcoólicas e veículos mais poluentes.
Com o advento do Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024, apresentado em 4/7/2024, a Câmara dos Deputados aprovou a regulamentação da reforma tributária, incluindo a disciplina infraconstitucional do IS, muito embora sem realizar uma discussão mais aprofundada sobre o tema, e após a realização de diversas audiências públicas em ritmo acelerado.
Ao analisar o texto aprovado pela Câmara, o Imposto Seletivo, nos termos do artigo 404, § 1º, do PLP 68/24, irá incidir sobre veículos; embarcações e aeronaves; produtos fumígenos; bebidas alcoólicas; bebidas açucaradas; bens minerais; e concursos prognósticos e fantasy games (jogos de azar), conforme indicado em seu Anexo XVIII.
Em relação aos veículos, percebe-se que o PLP 68/2024 apenas excluiu os caminhões da incidência do IS, resultado da imprecisão apresentada pela EC 132/2023, que não indicou o alcance da expressão prejudiciais ao meio ambiente, sob a justificativa de que a economia brasileira depende, essencialmente, do transporte rodoviário realizado por caminhões.
Dessa forma, com exceção dos caminhões, todos os demais veículos produzidos e/ou importados estarão sujeitos ao IS, cuja alíquota será ainda definida por lei ordinária, de acordo com um conjunto de critérios, tais como potência do veículo, eficiência energética e pegada de carbono (artigo 415).
Embora a exclusão dos caminhões da incidência do IS seja medida acertada, uma vez que aproximadamente 62% do transporte de cargas no Brasil é realizado pela malha rodoviária, a inclusão de algumas categorias de veículos, em especial os elétricos e híbridos, bem como os veículos de transporte coletivo, sugere um equívoco por parte dos legisladores, na medida em que dificulta a transição para uma economia mais verde.
Em que pese o Imposto Seletivo seja o instrumento tributário com maior potencial para a defesa do meio ambiente, a positividade ou negatividade dos seus reflexos na sociedade depende muito da forma como ele será regulamentado. Nota-se, no entanto, que o PLP 68/2024 não tomou a precaução de esmiuçar os critérios objetivos da sua incidência, podendo ensejar a ocorrência de formas de tributação distintas para o mesmo setor social ou econômico.
Da mesma forma que o IS traz como premissa basilar a proteção do direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, também apresenta uma forte aptidão para afetar negativamente a concorrência do mercado — e até mesmo contrária aos princípios que supostamente nortearam a EC 132/2023. Significa dizer que a incidência do IS sobre veículos elétricos e híbridos, o PLP 68/2024 afasta o tributo do seu objetivo de tutela ambiental, assim como deixa passar uma excelente oportunidade de oferecer estímulos para a circulação de carros com melhor controle de emissão de gases de efeito estufa.
Vale recordar que a indústria de produção de veículos elétricos e eletrificados já apresenta grande dificuldade em se firmar no território brasileiro, em especial, diante da alta carga tributária sobre estes veículos. Por consectário lógico, a fixação desse setor industrial, no Brasil, é uma realidade distante de se concretizar e, com a incidência do IS sobre estes veículos, dificulta-se o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil em acordos internacionais que visam promover o desenvolvimento sustentável da indústria, como o Acordo de Paris.
O grande argumento em defesa do IS sobre os veículos elétricos e híbridos está na reciclagem das baterias, que, atualmente, é cara. Todavia, embora a importância de se analisar como se dará o descarte das baterias, é importante destacar que a legislação nacional já impõe a logística reversa sobre esse setor, com o fim de diminuir o impacto, bem como o desenvolvimento e disponibilidade da tecnologia somente se dará mediante investimentos no setor, que serão realizados apenas na hipótese de maior disponibilidade de veículos elétricos e eletrificados, possibilitando, assim, na redução dos custos na reciclagem de baterias veiculares.
Na mesma linha de raciocínio, a omissão quanto aos transportes coletivos também demonstra a desídia do PLP 68/2024 em atender aos princípios ambientais previstos na reforma. Recorda-se que a EC 132/2023 incluiu, na Constituição , a alínea “d” no inciso II, § 4º, do artigo 177, dispondo, na destinação obrigatória dos recursos arrecadados pela Cide-Combustível, o “pagamento de subsídios a tarifas de transporte público coletivo de passageiros”.
Na contramão do referido dispositivo, ao deixar de incluir o transporte coletivo como exceção para a incidência do IS, o legislador faz com que o tributo possa afetar diretamente o preço das passagens e prejudicar a parcela mais economicamente vulnerável da população – agravando, por conseguinte, a regressividade da tributação brasileira. Destaca-se que o transporte coletivo desempenha um papel de fundamental relevância para a redução da emissão dos gases de efeito estufa, bem como melhora o trânsito urbano. Trata-se de verdadeiro instrumento de integração social e incentivo à sustentabilidade, que foi negligenciado pelo PLP 68/2024.
É perceptível que o Congresso Nacional priorizou a celeridade da elaboração e tramitação do texto em detrimento da sua abrangência e qualidade. Em matéria ambiental, o PLP 68/2024 repetiu algumas falhas da EC 132/2023, como o distanciamento de um plano de transição energética adequada, bem como pode ter entrado em contradição com alguns de seus pontos positivos – como os exemplos supramencionados.
São muitas as possibilidades de medidas sustentáveis que podem ser adotadas durante a regulamentação do IS, a fim de alcançar um resultado positivo econômica e ecologicamente. Entretanto, somente será possível exercer uma aproximação com as finalidades de defesa do meio ambiente e da saúde pública após a discussão e o estudo, em profundidade, da forma como a regulamentação deve ocorrer. Deve-se levar em conta todos os aspectos econômicos e ambientais pertinentes e priorizar a completude do texto legislativo em detrimento da celeridade vertiginosa.